Em 1996, a Rede Globo levou ao ar as novelas Explode coração e Quem é você,
nas quais protagonizavam dois personagens de muito apelo popular: respectivamente,
a cigana Dara e o executivo Yuri. Por essa mesma época, entraram em nossas
vidas um casal de filhotes de gatos siameses, ambos extremamente magros e
desnutridos, resgatados de uma situação infame da qual agora não me recordo em
detalhes. Nenhum dos dois parecia que sobreviveria muito tempo e, confirmando as
nossas expectativas, o macho, Yuri, que chegara a ganhar peso e parecia ter
superado as agruras de seus primeiros meses de vida, morreu pouco depois, vítima
de uma panleucopenia súbita, devastadora e fulminante que o levou ao cabo de
alguns breves e misericordiosos segundos de agonia.
Mas Dara sobreviveu. E esteve conosco até hoje
à tarde. Foram muitos anos de uma deliciosa convivência, na qual ela nos ensinou muito
a respeito de coragem, dignidade, respeito ao próximo e, obviamente, carinho e
amor ilimitados. Dara foi uma guerreira até o fim. E lutou mais de seis anos
contra a inexorabilidade de um par de rins deficientes que, entretanto, não
impediam que ela continuasse a ser uma gata linda e orgulhosa, capaz de fazer
todas as coisas que os gatos devem fazer para continuarem a ser gatos. Continuava
a ser respeitada por todos os animais da casa, inclusive pelos cães, como a
matriarca, a sócia fundadora de nossa Arca de Noé.
Anteontem, entretanto, ela parou de comer e beber
água e, apesar de ainda ser capaz de se levantar de sua cama e, tropegamente, se
arrastar até a bandeja sanitária para fazer as suas necessidades ou ir até a varanda
para tomar o seu sol matinal, também nos deixou muito claro, através de miados
e gemidos pungentes, que estava sofrendo muito mais do que seu aristocrático orgulho
era capaz de dissimular.
Foi uma decisão difícil. Em minha mente, nunca
consegui resolver muito bem a questão da eutanásia de animais, embora a de
seres humanos me pareça muito mais simples de ser resolvida, aceita e
assimilada. Afinal, seres humanos sabem que vão morrer e, caso desejem abreviar
as suas existências, podem deixar isso bem claro, seja em um documento, um murmúrio
ao pé do catre ou, até mesmo, através de um olhar de súplica e desespero lançado
para a pessoa certa no momento adequado.
Por conta dessa parada mal resolvida em minha
mente, deixei que três de meus gatos mais queridos tivessem mortes excruciantemente
dolorosas, memórias das quais procuro fugir a todo custo mas que ainda me assombram e
atormentam noite e dia passados tantos anos.
Eu não queria que Dara passasse pela mesma
provação, mas, por outro lado, não me sentia capaz de determinar o fim da vida
de um animal que certamente, e apesar de toda dor que deveria estar sentindo, não
desejava morrer. Na última vez em que eu a vi, e apesar de muito trêmula e
emitindo miados quase inaudíveis de tão doloridos, ela estava sentada na grama
do jardim, cabeça erguida, ainda procurando apreender o que ocorria à sua
volta. Ainda tentando sobreviver. E com dignidade.
Coube à minha mulher, que era a verdadeira “dona”
de Dara — isso, é claro, se você for ingênuo o suficiente para crer que gatos
podem ter donos — e que, como toda mulher, tem o instinto e o
sangue frio para encarar de frente a crueldade dos fatos da vida, tomar a decisão
definitiva.
E, apesar de todas as minhas dúvidas, todo o
meu egoísmo, toda a minha covardia, não tenho como negar que sinto uma ponta de
orgulho ao saber que Dara morreu como sempre viveu: senhora de si, orgulhosa de
quem era, e com a cabeça erguida, como cabe a um gato honrado.
Gostaria de encerrar esta elegia com uma frase que ouvi há
muito tempo e da qual, infelizmente não me lembro o autor, mas que reproduz com
fidelidade o que estou sentindo no momento: “O Paraíso não será o Paraíso se,
ao lá chegar, meus gatos não estiverem esperando por mim.”
Adeus, Dara. E obrigado por tudo o que você nos ensinou nesses últimos 16 anos.