ENCONTRAVAM-SE NO MESMO SONHO, na mesma noite atemporal e interminável, havia mais de trinta anos. Ela dirigia enquanto ele cuidava de encontrar uma boa música no rádio, acariciar o rosto da amada, emaranhar-lhe os longos cabelos ou, simplesmente, lançar-lhe olhares apaixonados. Nem sempre a cidade era a mesma, tampouco o carro. Eles mesmos não eram os mesmos, vez por outra se surpreendendo como estavam sábios e envelhecidos ou como ainda eram jovens e ingênuos. A única coisa eterna, imutável, era a noite que passava lá fora, a noite densa e perpétua de seu amor impossível.
Beijavam-se a cada sinal fechado, embora não fosse necessário parar em sinais naquele seu sonho exclusivo. As ruas estavam sempre desertas, as vagas desimpedidas, e, para sua frustração, os sinais quase sempre abertos.
Flanavam por restaurantes de luxo, biroscas de beira de estrada, aconchegantes e silenciosos bistrôs, pés sujos de torresmo e cachaça. Pouco importava. A comida era sempre ótima, a bebida inebriante e sempre saíam dali com a impressão de que nunca haviam se divertido tanto em suas vidas.
O mesmo se aplicava aos lugares onde se hospedavam. Fosse um hotel suntuoso ou um motel de beira da estrada, pairava sempre ao seu redor a magia transfiguradora da noite eterna de seu amor proibido. Então, abstraíam a paisagem em torno, o luxo ou o desconforto que os cercava, e, a depender da disposição do momento, amavam-se como deuses olímpicos; ou faziam sexo como cavalos selvagens. Cão e cadela. Gato e gata. Homem e mulher. Alfa e ômega. O circuito completo entre o divino e o profano. A mais perfeita comunhão entre o espírito e a matéria.
Certa vez, em um restaurante, ele disse: “Para Lord Byron, a única refeição delicada o bastante para o paladar de uma bela dama é salada de lagosta com champanhe.”
Ela sorriu.
“A salada estava esplêndida. Mas e se a bela dama também quiser uma sobremesa?”
“Nesse caso,” disse ele, “em nome da simplicidade, sugiro uma singela porção de morangos com creme.”
Como por encanto, uma terrinha de morangos vermelhos como o pecado materializou-se sobre a mesa. Ela escolheu a fruta mais terna, mergulhou-a no pote de creme e, em seguida, levou-a aos lábios do amante. Ele repetiu o gesto.
Lá fora, através da janela panorâmica do restaurante do hotel, a espetacular enseada espreguiçava-se, lânguida, sob uma lua indecentemente rubra, que salpicava o oceano escuro com luzes tintas de Cabernet Sauvignon.
Ela estendeu as mãos através da mesa. Ele as tomou e ficou algum tempo brincando de rodar os anéis da amante, admirando-lhe os dedos longos e bem formados, saboreando o toque de suas palmas macias, tentando adivinhar-lhe a idade através das dobras dos nós dos dedos.
“Isto é agora, foi antes ou ainda será?” perguntou ele, dentes rosados de morango e desejo. “Quem somos nós fora desse sonho perfeito?”
Ela recolheu as mãos e disse:
“Pessoas muito tristes, com certeza. Mas não pensemos nisso agora. É sempre tão bom estar com você...”
Já no elevador, a caminho do quarto, ele disse:
“Já fomos jovens, já fomos livres...”
“...tivemos a nossa chance,” acrescentou ela, nostálgica. “Várias chances, na verdade. Não me lembro de quantas vezes eu o pedi em casamento...”
Ele baixou a cabeça, tardiamente arrependido.
“Desencontros... tempos diferentes... avaliações precipitadas... privação de sentidos...”
Ela tocou-lhe os lábios, para que parasse de falar.
“Não importa. A única coisa que realmente conta é que estamos aqui, agora. E para sempre.”
A porta se abriu no andar da suíte.
“Vá na frente,” disse ela. “Prepare tudo. Ponha uma boa música. Encha a jacuzzi e abra a garrafa de vinho para que possa respirar um pouquinho. Vou à bombonière e já volto. Deu-me vontade de comer chocolates com licor e cereja.”
Quando ela voltou o hotel já era outro. Desta vez, um chalé de beira de praia, as ondas arrebentando a poucos passos da varanda. No céu, entretanto, a mesma lua vermelha, as mesmas estrelas de prata.
Ouviam, então uma seleção de músicas previamente gravadas por ele.
“Engraçado,” disse ela. “Assim como o personagem desta canção, eu também esqueci nosso começo inesquecível... você se lembra?”
Ele sorriu, beijou-lhe os lábios brevemente e respondeu:
“E como haveria de esquecer?”
“E como foi?” exclamou ela, ansiosa, um lampejo da adolescente de outrora em seu sorriso perfeito.
“Estou curiosa! Conta!”
“Conto. Foi assim: eu discursava no alto de um palanque no pátio da faculdade, brincando de líder estudantil. Você estava parada na periferia da multidão, uma bandana vermelha ao redor da testa, cabelos muito longos e muito negros esparramados sobre os ombros e aquele par de olhos divinos irradiando beleza, juventude, felicidade. Eu te olhei, você me olhou, eu gaguejei no discurso, você sorriu e eu pensei cá comigo: ‘eu vou amar aquela mulher para sempre, até o fim de meus dias.’ Não deu outra.”
“Agora me lembro,” murmurou ela, nostálgica. “Eu tinha apenas dezessete anos...”
A música mudou. Eles trocaram um beijo tão prolongado que só terminou no começo da música seguinte.
“A maioria dos casais tem uma canção que consideram só sua,” disse ele após recuperar o fôlego. “A gente tem ao menos quarenta e oito horas ininterruptas de músicas exclusivas.”
“Só quarenta e oito?” queixou-se ela, decepcionada.
“É o que cabe nesse iPod...”
“Tenho certeza de que há mais...”
E havia mesmo. Uma música para cada momento de suas vidas.
Foram até à varanda. O marulhar das ondas estava apenas um grau abaixo do intolerável. Ele a enlaçou pela cintura sentindo a maciez da camisola de seda sobre o contorno dos quadris da amada, inspirou uma lufada de maresia e disse:
“Você é minha musa. Disso eu não tenho a menor dúvida.”
Ela voltou-se para ele, olhos atentos e apaixonados.
“Mas eu sou escritor,” prosseguiu ele, falsamente contrariado. “Ainda assim, você só traz música para a minha vida!”
Ela fez uma careta de dúvida.
“ E isso é ruim?”
“Não. É maravilhoso, embora incomum... como tudo o mais que diga respeito à nossa vida.”
“Vida, louca vida...” murmurou ela.
“A mais estranha história que alguém já escreveu.”
Passaram um longo tempo admirando o mar noturno, respirando o vento salitrado, carregado de maresia. Subitamente, porém, ela emitiu um soluço contido, esticou o braço trêmulo e apontou para o horizonte ao longe. Estava pálida, extraordinariamente pressurosa.
“Vê aquilo?” balbuciou em um fio de voz.
“S-sim...” gaguejou ele. “Mas... “
Instintivamente ele a abraçou pelos ombros, com força, como se com medo de perdê-la, embora soubesse que o gesto de nada adiantaria. Na ponta de seus dedos, a pele da amada já começava a parecer-lhe tênue, etérea, no limiar do ausente.
Ao longe, uma fímbria rosada anunciava a iminência da aurora.
Ao que tudo indicava, sua longa noite dos sentidos finalmente chegava ao fim.
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