É MUITO POUCO PROVÁVEL QUE Martines, o barman mexicano do Hotel Knickerbocker, em Manhattan, soubesse
exatamente o que estava fazendo naquele fim de tarde do verão de 1910 quando,
atendendo a um pedido de ninguém menos que John Delano Rockefeller, preparou um
drinque “jamais experimentado por alguém”.
Rockefeller chegara ao
bar pouco antes das 18 horas, gravata frouxa, rosto cansado, gestos bruscos e
frases lacônicas. “Mas que hombre seco" pensou Martines, encastelado em seu
balcão, meio que se escondendo por trás das garrafas de scotch. Não que tivesse
medo daquele executivo mal ajambrado que, segundo lhe contara o maitre, era “o
homem mais rico do mundo”. Afinal, Martines não era apenas um barman. Era o
melhor barman de toda a ilha e, ainda por cima, tinha um remoto co-parentesco
com o lendário Emiliano Zapata. Pelo lado da mãe, de origem venezuelana, era
bisneto de uma criada de Simon Bolívar, o que lhe garantia uma altivez
soberana, uma certa superioridade condescendente sobre a barbárie saxônica dos
filhos do Mayflower. “Pai perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem!”
O que incomodava
Martines era começar a noite de quinta-feira servindo aquele homem sisudo,
arrogante e aparentemente bronco que, com os pés apoiados no encosto da
poltrona ao lado, lia o Wall Street Journal letra por letra, numa cadência
truncada, guiada pela ponta do dedo indicador da mão direita.
Mas Martines era um
profissional. Conhecia o seu métier. Além disso, “coño!” ele era descendente de
Emiliano Zapata e não tinha por que temer o baixo astral do chefe dos gringos
executivos. Saiu de trás de seu esconderijo e esperou que o velho magnata
terminasse de ler a cotação da bolsa, extinguisse o charuto para, num tom de voz
seguro e até um pouco impertinente, perguntar: “O que gostaria de beber,
senhor?”
Rockefeller estava em
um transe hipnótico, perdido no cálculo de cifras astronômicas. A frase de
Martines interrompeu bruscamente a viagem do magnata, que voltou à realidade de
uma mesa de bar de hotel justamente quando estava prestes a descobrir um meio
de ganhar mais de dois milhões de dólares em menos de um ano (o que, naquela
época, era dinheiro pra burro).
Quase estarrecido,
visivelmente irritado, Rockefeller se voltou para Martines como o anjo
exterminador, espada flamejante em punho. Entretanto, ao se dar conta da
fragilidade de seu oponente, do subdesenvolvimento atávico que entrevia nos
olhos ligeiramente amendoados de Martines, resolveu trocar a espada laser por
um jogo de gato e rato. Mediu o barman de cima a baixo, farejou sua origem
espúria e, crudelíssimo, lançou o desafio:
“Desejo tomar um drinque jamais experimentado
por alguém.”
A essa altura, o
sensível Martines já se havia dado conta de que estava em meio a um Armagedon
etílico, o confronto final entre as hostes bárbaras da Saxônia — representadas
por Rockefeller —, e o último bastião da cultura romana — no caso ele, o altivo
barman do Hotel Knickerbocker, em Manhattan.
Os movimentos que fez
daí para frente foram inteiramente inspirados pelo acaso, o destino... e o
talento. De posse de uma coqueteleira de prata trabalhada com finos entalhes
art déco, um mixer igualmente de prata com o cabo cravejado de brilhantes e um cálice de cristal, foi a vez de Martines medir Rockefeller
de alto abaixo e se inspirar na personalidade do antagonista: “Hay que ser
seco”, intuiu. “Y, para los secos, nada como el gin. “ Voltando-se
para a prateleira, escolheu um Thanckeray, após algumas frações de segundo de
hesitação entre o Gordon e o Beefeater. “Pero también es helado...
” ,
prosseguiu, enquanto imaginava como conseguir um gelo enxuto que não
conspurcasse a secura do gim. Por um instante, pensou em usar gelo seco. Mas
seria uma combinação mortal. Optou pelo gelo mais seco de sua geladeira, aquele
gelo opaco, fumegante, do tipo que gruda na mão e na bandeja. Despejou quatro
pedras deste gelo dentro da coqueteleira e, por pura intuição, deixou pingar
sobre as pedras uma gota de um excelente vermute branco francês, o
Noilly-Pratt, que encontrou sobre a bancada. Logo acrescentou
uma dose do gim escolhido e, delicadamente, revolveu com o mixer. Evitou a
agitação de modo a impedir que o gelo minasse água em demasia.
Rockefeller
acompanhava a performance do barman com atenção crescente. Gostou de tudo: da
coqueteleira, do mixer, do gelo, não percebeu o truque do vermute, mas estava
adorando o modo cuidadoso com que Martines despejava o resultado de sua mágica
na delicada taça de cristal, retendo o gelo na coqueteleira.
O magnata era, afinal
de contas, um bom sujeito. Não tinha culpa de ser bilionário. Quando criança,
sem nenhum tostão no bolso, ganhou certa vez uma maçã de um desconhecido na
rua. O primeiro impulso foi o de comer a maçã, mas se conteve. Ao invés disso,
vendeu a maçã e comprou mais duas maçãs. Ficou fascinado com o truque e o
repetiu tantas vezes que, ao fim do dia, já tinha conseguido duas caixas de
maçãs. No dia seguinte, seu avô morreu e ele herdou uma fortuna. Por isso, não
tinha culpa de ser milionário. Da mesma forma que Martines, sua soberba (e tino
comercial) era herança dos precursores.
Martines, em seu
transe de feiticeiro asteca, arrematou o encanto cortando um pedaço de casca de
limão que torceu sobre o cálice. Ao cortar, teve o cuidado de evitar a parte
branca do bagaço da fruta, o que certamente amargaria a bebida. Respirou fundo,
inalou a distância o resultado de sua genialidade e, em seguida, com a coragem
dos loucos, ofereceu-o ao homem mais rico do mundo.
“Very dry,
Martines! Very dry”, exclamou o magnata ao provar o primeiro dry martini já
preparado na face da Terra. Rockefeller já tinha o rosto descontraído, corpo
menos tenso, e estampava um sorriso franco de orelha a orelha. Estava deliciado
com o sabor realmente incomparável daquele drinque fabuloso. Inclinando-se
sobre o balcão, deu dois tapinhas nas costas de Martines e sussurrou-lhe ao
ouvido:
“You tough, guy”,
o que mais ou menos quer dizer: “Tu és porreta, rapaz!”
Foi assim que John
Delano Rockefeller — que, afinal de contas, como denuncia o Delano, também era
latino, pombas! — e o brilhante barman mexicano do Hotel Knickerbocker (em
Manhattan, bem lembrado), começaram uma sólida amizade. E foi também assim,
fruto do acaso, que, do capricho de um capitalista selvagem e da engenhosidade
de um cucaracho romântico, nasceu um dos drinques mais populares do mundo, bebida
símbolo do american way.
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