Bar Luís |
Hoje eu o convido a uma visita à boêmia do passado. Caminhemos lado a lado por becos estreitos, travessas e praças iluminadas por bicos de gás e lamparinas de óleo de baleia, ouvindo atrás das portas as gargalhadas, o ruído das taças, o murmurar da primeva farra carioca.
Não será preciso, no entanto, o expediente
wellsiano da máquina do tempo. De fato, com um pouco de imaginação e um bom
roteiro, somos capazes de resgatar — ao
menos em parte — o esplendor da lendária noite carioca, que assoma, ora
travestido em antigas construções, ora personificado em bares e restaurantes
que ainda preservam todas as glórias de um Rio há muito perdido no tempo, no
espaço e na memória.
É preciso lembrar que em fins do século XIX,
tempo em que começamos a nossa viagem gastronômica pelo Rio antigo, não primávamos
nem pela higiene nem pelo civismo. A cidade era um formidável viveiro de
doenças infecto-contagiosas. E bastava a um turista desavisado saltar do navio
e fazer um passeio pelo cais do porto para ser infectado por alguma ziquizira
das brabas. Não seria por outro motivo que o estabelecimento
comercial tipicamente carioca desses tempos imundos era o sórdido quiosque.
Para quem não sabe, quiosque era uma barraquinha de
rua onde nossos bisavôs costumavam fazer as suas boquinhas. Tipo de precursores
dos atuais trailers de praia, os quiosques serviam, entre muita miudeza, lascas de
bacalhau salgado regadas com cachaça-de-matar-o-guarda. Não sobreviveram, porém, à gestão civilizadora de Pereira Passos e hoje só os encontramos em fotografias
antigas. A perspectiva de café frio e cachaça aguada, manteiga rançosa sobre pão
dormido, troco a menos ao fechar a conta e disenteria nos sete dias seguintes, indica que os quiosques merecem ser observados à distância, apenas a título de
referência. Então, voltemos à máquina para um pequeno salto no futuro.
Também não é propriamente nobre o tipo de
estabelecimento que nos espera algumas décadas mais adiante. Mas a comida é saborosíssima. Geridas por portugueses e espanhóis, as petisqueiras faziam a
delícia de nossos antepassados. Não eram limpas. Em verdade, eram consideradas verdadeiros antros de imundície. Mas a comida boa e farta ganhou fama e gerou uma tradição que
chegou aos nossos dias.
Luiz Edmundo, célebre cronista da cidade, autor de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, diz que, nessas casas, sendo iletrada a freguesia, não se podia usar o expediente do menu,
novidade que só chegaria muito tempo mais tarde. “Canta, por isso, o caixeiro o que há
como cardápio, arrancando à memória (porque também ele é analfabeto) o nome das
iguarias que viu fazer ou sabe que se preparam na cozinha.”
Descendentes diretas das antigas petisqueiras
ibéricas são as muitas adegas e tabernas que hoje se espalham pelo Rio e aonde
ainda se come o bom bacalhau, o cozido, a
dobradinha, e aonde bebe-se o verde com a mesma deselegância do passado.
Das petisqueiras remanescentes, podemos visitar a Adega Flor de Coimbra, perto
da Sala Cecília Meirelles, a Taberna da Glória (agora de cara nova), a Adega
Pérola, na Siqueira Campos, em Copacabana, a Adega D’El Rey, no Posto 6, O Petisco da Vila, em Vila Isabel, e
dezenas de outras tantas casas “portuguesas com certeza” espalhadas pela
cidade.
Durante muito tempo bebeu-se vinho — e apenas vinho
— no Rio de Janeiro. Afora a cachaça da terra, o trust
ibérico parecia disposto a impedir a intrusão de qualquer
outra bebida em seu mercado exclusivo. Cerveja, em certa época, só a importada
ou aquela fabricada por uma ou outra companhia pioneira, corajosa o bastante
para enfrentar a sabotagem galega. Não seria por outro motivo que, lá pelo começo do
século XX, chegávamos a importar a enorme quantidade de 43 milhões de litros de
vinho português por ano!
Foi quando chegaram os alemães.
A chegada dos alemães alterou completamente a vida
boêmia e os hábitos alimentares do carioca. Justamente por não poderem negociar
suas cervejas com as petisqueiras, os cervejeiros alemães foram obrigados a
criar os seus próprios bares, estabelecimentos, esses sim, limpos, “muito bem
postos”, bem diferentes das “sórdidas tendinhas e baiucas onde o labrego
continuava a vender a vinhaça malsã”, como nos dá notícia Luiz Edmundo.
Nessa época, surgiram as marcas Brahma,
Franciscana, Book-Ale e Guarany, servidas em canecas nas hoje
lendárias Stadt Munchen, Maison Desiré e no Zum Nachte, três das melhores
cervejarias cariocas do princípio do século.
A supremacia dos restaurantes alemães resistiu até
a Segunda Guerra Mundial, época em que os estabelecimentos germânicos foram barbaramente depredados
e obrigados a mudar de nome. Assim, o antigo Bar Berlim virou o atual Bar
Lagoa, o célebre bar do Adolf virou o Bar Luís, ainda hoje à Rua da Carioca,
39. Apenas uma grande casa, o Zeppelin, manteve o nome antigo, apesar das
muitas represálias.
Se existe um bar tradicional no Rio de Janeiro,
este é o Bar Luís, cujas origens remontam ao século XIX. Estabelecido na época à Rua da Assembléia, chamava-se Zum Shlauch e era de propriedade de Jacob Wendling. Em 1901, o bar transferiu-se para uma casa defronte, onde ficou até 1927, quando foi transferido para seu endereço definitivo, à Rua da Carioca.
Pouco após a primeira transferência, o Zum
Schlauch (assim apelidado porque seu salão era comprido e estreito como uma salsicha) passou a
se chamar Braço de Ferro, graças a seu jovem gerente, Adolf Ruyaneck, imbatível
na queda-de-braços. O braço de ferro de Adolf também lhe valeu nos negócios.
Em pouco tempo, o rapaz tornou-se sócio do velho Jacob e, em 1907, acabou como único proprietário do estabelecimento. Seu sucessor, Ludwik Woit, emprestou o nome definitivo à casa.
Hoje o Bar Luís entra na quarta geração de proprietários e seu chope
continua admirável graças à sua impressionante serpentina de prata, com 70 metros de comprimento. A inigualável salada de batata, as saborosíssimas linguiças, salsichas, kasslers e demais iguarias germânicas ainda regalam o carioca,
habituado, desde 1887, à qualidade dos produtos da casa.
Tão famoso quanto o Luís, o Bar Brasil também
impressiona pelo chope bem tirado. O cardápio, que inclui os mesmos pratos servidos
no Luís, embora o Bar Brasil também seja famoso pelas suas costeletas de porco à
mineira, servidas às terças-feiras.
Não poderíamos encerrar o capítulo da contribuição
alemã ao paladar carioca sem citar o Bar Ficha, comandado pela lituana Maria
Schaade, à Rua Teófilo Otoni, 126. A especialidade da casa é o labskaus (pasta
de peito de boi defumado com salada de batata, ovo e pepino) servido às
quartas-feiras. Outra boa pedida no Ficha é o haddock com batata e molho de
manteiga. Bom e barato.
Mas carioca mesmo, e mais que tradicional, foi (e ainda
é) o Café Lamas. No começo do século XX, o Lamas era o lugar mais badalado da noite carioca. Suas portas nunca fechavam e a casa era freqüentada por estudantes, escritores, músicos, atores, dramaturgos, enfim, por toda a elite cultural de uma cidade que, então, sob a batuta de Pereira Passos, se arvorava ao título de pequena Paris dos Trópicos.
Na década de 70, por conta das obras do metrô, o Lamas do Largo do Machado foi posto abaixo e transferido para a rua Marquês. de Abrantes, no Flamengo. Apesar da mudança, o filé continua o mesmo, um dos melhores do Rio. Uma vez lá, frente ao vistoso prato de fritas à francesa, antes de dar a primeira garfada, lembre-se — ó, turista incauto! — que na esteira deixada pelo aroma deste filé uma infinidade de gerações boêmias o contempla. Coma com extrema reverência.
Na década de 70, por conta das obras do metrô, o Lamas do Largo do Machado foi posto abaixo e transferido para a rua Marquês. de Abrantes, no Flamengo. Apesar da mudança, o filé continua o mesmo, um dos melhores do Rio. Uma vez lá, frente ao vistoso prato de fritas à francesa, antes de dar a primeira garfada, lembre-se — ó, turista incauto! — que na esteira deixada pelo aroma deste filé uma infinidade de gerações boêmias o contempla. Coma com extrema reverência.
Outra grande contribuição ao paladar carioca foi a
da culinária francesa. Vivemos uma época de cafés fervilhantes, de estudantes “duros”, insolúveis penduras e muito romantismo. Deste tempo de cafés requintados, de decoração à belle époque e cortesias, resta hoje, em
todo o seu esplendor, a Confeitaria Colombo, inspiradora, inclusive, de velhos
sambas e marchas, como esta: “Sa-sa-saricando, todo mundo leva a vida no arame!
Sa-sa-saricando, a viúva, o brotinho e a madame! O velho, na porta da Colombo,
é um assombro, sassaricando...” As cadeiras continuam as mesmas. Os espelhos,
também. Os mesmos mandados vir da Bélgica. E ainda ornamentam os quadros molduras
de jacarandá do século passado.
Entre muita gente ilustre, foram freqüentadores da
Colombo Olavo Bilac, Washington Luís, Dutra, Arthur Bernardes, Getúlio Vargas,
Nilo Peçanha e Epitácio Pessoa. Quem conhece a Colombo hoje jamais poderia
imaginar sua origem humilde em 1894, à Rua dos Latoeiros, como mero restaurante
colonial. Quem a conheceu em seu apogeu ainda morre de saudades.
É impossível enumerar todas as casas cariocas que
guardam — ao menos na concepção — algo de tradicional, algo que lembre os bons
e antigos restaurantes do Rio. Seria injusto não citar, por exemplo, o
Cervantes, à Rua Prado Júnior, que oferece os mais saborosos sanduíches da cidade aos noctívagos
famintos. Ou o Shirley, que tem 20 anos de inalterada qualidade em seus pratos de frutos do mar, e que fica à Rua Gustavo Sampaio, no Leme.
Boa pedida para quem anda pelo Centro atrás de uma
refeição substancial, é o Penafiel, à Rua Senhor dos Passos, a dez passos da Avenida Passos, cuja cerveja
gelada é servida com as garrafas metidas em cumbucas de isopor e onde o freguês pode
escolher o filé (a posta) ainda cru, na vitrine frigorífica.
Igualmente saborosa é a comida da Casa Urich, que
fica ao pé do Terminal Menezes Cortes e é um dos mais tradicionais restaurantes
do Castelo. Além do chope bem tirado, sempre gelado, o cardápio é saborosíssimo, com toque de comida caseira. Boa pedida é a rabada, ou o bacalhau (à portuguesa, desfiado ou à
espanhola). As carnes são vistosas, em filés generosos. Casa de pé-direito
altíssimo, a Urich tem as paredes em simples azulejos, sem frescura. Aliás,
esta é uma das características mais marcantes dos restaurantes do Centro e
adjacências: lá o papo é matar a sede e a fome, deixando as firulas para os
bistrozinhos da moda da Zona Sul.
Seria igualmente injusto não darmos um pulinho ao
Amarelinho do Centro, ao Aurora, em Botafogo, ao Jangadeiros, em Ipanema, ao
Bismark, em Botafogo. Seria uma pena se em nossa tournée boêmia não passássemos
pelo Villarino, pela boa e amiga Casa do Pará, no Castelo, pela Fiorentina, no
Leme, pelo Lucas, na Avenida Atlântica, pelo Alpino, pelo Alvarus, pelo
Albamar, por aquele excelente restaurante, a Casa da Suíça, da Glória, por aquele
outro que tem fondue de carne espetacular e por um que não me lembro a rua mas
cujo alho-e-óleo faz a delícia de meus sonhos...
Se os restaurantes paulistas são famosos pela
variedade, diria que aqui, entre nós, lendária é a qualidade dos poucos
restaurantes tradicionais que nos restam. De fato, bastando saber aonde ir,
qualquer pessoa poderá fazer no Rio um excelente tour gastronômico.
Terminamos por aqui nosso passeio pela boêmia
carioca de ontem e de hoje. Visitamos os melhores e mais antigos restaurantes
da cidade, onde a comida é farta, o chope honesto e a conta justa. Andamos por
casas modestas e suntuosas, lugares onde cada azulejo, cada letreiro, cada
retrato tem mil e uma noites de farras a contar. Enfim, conhecemos os últimos redutos gastronômicos de um Rio de Janeiro que pouco a pouco, inexoravelmente, acabará para sempre relegado ao campo da saudade e da memória.
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