Viver em uma biblioteca como a do Vaticano era viver cercado de grandes ideias; e dos espíritos que as conceberam e as preservaram através dos séculos. E logo descobri que eu e Khosr não éramos os únicos sujeitos esquisitos a frequentar a instituição. Aquelas salas atopetadas de livros também estavam repletas de fantasmas, que ali pairavam como mariposas atraídas pela luz de um lampião.
Os fantasmas dividiam-se em três grandes categorias: os cativos, os de família e os errantes. Os cativos eram espíritos de leitores, colecionadores ou, mais raramente, autores dos livros que assombravam. Não tinham um compromisso com a biblioteca propriamente dita, e sim com as obras através das quais se manifestavam. Eram os mais chatos, os mais lamurientos, os mais pegajosos. Arrastavam-se pelos corredores madrugada afora, murmurando trechos de seus livros preferidos — sempre os mesmos malditos trechos, é bom que se diga, para que eu não passe por um diabo desalmado. Tinham também o mau hábito de se imiscuir na leitura alheia, tentando “vender” o seu livro como uma leitura mais agradável. Daí que lá estava eu a decifrar um parágrafo particularmente espinhoso de um complicado códex bizantino, quando, subitamente, as letras se embaralhavam e começavam a correr pelo papel como num letreiro luminoso: “Há quanto tempo você não relê Os Lusíadas?” Ou: “Contra o tédio das leituras maçantes, Rabelais é a solução!” E outros truques baratos de publicidade.
Já os fantasmas de família eram assim chamados por serem membros da outrora poderosa família Borgia, antiga proprietária do prédio da biblioteca. Eram fantasmas barulhentos, irascíveis, mas que tinham a vantagem de não se intrometerem com os vivos, preferindo focar energias em suas vendetas particulares, sempre muito trágicas, escandalosas e vulgares. Mas era difícil se concentrar na leitura com o barulho que faziam.
Por último, os fantasmas errantes, espíritos em desenvolvimento que vez por outra vinham consultar os alfarrábios. Esses eram discretos, breves e objetivos. Vinham, pegavam o que queriam e partiam. Raramente tornávamos a vê-los.
Khosr parecia não se importar com as manifestações. Eu as detestava. Afinal, diabo que fosse, eu era um ser vivo, de escamas e cartilagens, e não me dava muito bem com a desfaçatez daqueles espectros sobrenaturais. Sim, é verdade, havia espíritos muito ilustres frequentando os corredores, almas que já haviam encarnado grandes gênios da literatura. Mas e daí? Viviam num limbo atemporal, imaterial, parafísico. Era impossível estabelecer um diálogo coerente com qualquer um deles.
Calímaco, por exemplo, costumava aparecer na seção de livros gregos. Ficava quieto num canto, ruminando os seus verbetes, sem se dar conta do que se passava à volta. Às vezes dormia. E roncava. E fazia ventar forte no departamento. Era um fantasma, digamos, pacífico. Contudo, não podia me ver entretido com um livro mais volumoso sem exclamar, angustiado: “Um grande livro, um grande mal!” — e cair em um choro compulsivo. Outros ilustres não pareciam menos insanos.
Aturei os fantasmas durante décadas, até que, certo dia, aturdido com a algazarra que faziam, disse lá qualquer palavrão.
— É comigo que está falando? — perguntou Khosr, interrompendo a leitura.
— Com você? Claro que não. Estou falando com esses malditos fantasmas.
Khosr pareceu intrigado.
— Você se dá ao trabalho de sintonizar fantasmas?— perguntou afinal, num tom de voz irritante que beirava a tolerância paternal.
Em seguida, bocejou, fez um gesto com o indicador e... clique!
— M-mas que diabos! — exclamei assustado, ao perceber que os fantasmas tinham desaparecido.
Khosr sorriu com complacência e disse:
— Você tem o mau hábito de manter todos os seus canais parapsíquicos ligados ao mesmo tempo, e no volume máximo. Isso não é econômico. Tampouco é salutar.
Khosr abanou a cabeça de um lado a outro, dando a entender que eu era um caso perdido.
— Fantasmas, pois não? Era o que nos faltava! Somente um idiota se dá ao trabalho de sintonizar fantasmas.
E ainda zombando de minha inexperiência paranormal, voltou a mergulhar na leitura.
Trecho do romance Memórias de um diabo de garrafa, Garamond 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário