A VELHA TINHA MAIS DE OITENTA anos e morava só em um prédio em ruínas na periferia de uma grande metrópole. Tivera outrora um marido, depois um gato mas, naquela altura da vida, contava apenas com o silêncio e as memórias de um passado idealizado.
Sempre fora uma mulher miúda e encolhera ainda mais com a idade. Tinha as mãos engelhadas pela artrose e a coluna dobrada por décadas de trabalho burocrático em repartições públicas do estado. A pele assumira pouco a pouco o tom macilento das paredes que a cercavam e os olhos eram opacos, obnubilados pela catarata.
E foi talvez por ser tão pequena, tão discreta e silenciosa, por integrar-se tão bem ao meio que habitava, que os técnicos não deram pela sua presença ao fazerem a última vistoria no prédio. De fato, por incrível que pareça, a velha chegou a ter um deles dentro de casa sem, contudo, ser percebida.
O homem entrou apressado, fixou uma massa amarela à parede do vestíbulo e saiu antes que ela tivesse tempo de dizer adeus. A velha também não teve tempo de perguntar para que servia o fio comprido que o homem esticava atrás de si, embora imaginasse que a massa amarela grudada à parede fosse algum tipo de veneno japonês contra insetos.
Implosão em época tão inoportuna recebeu ampla cobertura da mídia e as redes de tevê já prometiam cenas espetaculares nos telenoticiários da noite seguinte. Até mesmo as baratas já sabiam que todo aquele quarteirão de velhos edifícios seria varrido do mapa para dar lugar a um grande centro de abastecimento.
Apenas a velha ainda não havia sido devidamente notificada que, em menos de vinte e quatro horas, exatamente às dez horas da manhã de primeiro de janeiro de 2042 a.D., o lugar que escolhera para passar calmamente o resto de sua velhice seria reduzido a um monte de escombros.
A velha só se lembrou de que era véspera de Ano Novo ao ouvir o repicar dos sinos da igreja, às seis da tarde. Sentiu uma vaga alegria, resquício de alegrias antigas, vividas em tempos de mais esperança. Logo, porém, lembrou-se do marido, do gato, a vaga alegria minguou em melancolia e ela limitou-se a voltar ao interminável bordado.
Bordou horas a fio e caiu adormecida por volta das dez horas. E provavelmente teria dormido até o momento da implosão não fosse despertada à meia-noite pelo espocar de fogos de artifício e, logo em seguida, por um estrondo ensurdecedor, seguido de um projétil luminoso que entrou pela janela e ricocheteou nas quatro paredes antes de pairar ao centro da sala, espalhando fagulhas para todos os lados.
O busca-pé abriu os braços e anunciou, bombástico:
— FELIZ ANO NOVO! — e voltou a dar cabeçadas pelas paredes.
A velha franziu as sobrancelhas.
— O senhor sabe que horas são?
O busca-pé pairou ao centro da sala, olhou para o relógio que trazia no pulso esquerdo, voltou a abrir os braços e respondeu:
— MEIA-NOITE! FELIZ ANO NOVO!
Antes que o busca-pé voltasse a dar cabeçadas, a velha perguntou:
— E quem lhe dá o direito de vir fazer bagunça em minha casa a uma hora dessas?
O busca-pé não esperava tamanha rabugice. O sorriso de animador de auditório murchou numa expressão de desânimo:
— Oh, não! Era só o que faltava! Essas coisas só acontecem comigo! Tantas casas em festa, tanta gente alegre celebrando pelas ruas e me toca entrar justamente pela janela de uma senhora mal-humorada!
Ela percebeu o abatimento do busca-pé mas não deu o braço a torcer.
— Cuidado! Veja que ainda me queima o tapete! Onde já se viu uma coisa dessas?
O busca-pé empertigou-se. Jamais, em toda a sua fulgurante carreira pirotécnica, queimara um estofado que fosse. E já estava a ponto de dar uma resposta malcriada, dizendo que tapete tão úmido, tão mofado, tão ensebado, era absolutamente à prova de fagulhas quando os seus olhos bateram na massa explosiva afixada na parede do vestíbulo.
— M-mas o que é isso? — disse ele, pálido de pavor.
— Massa japonesa contra insetos — respondeu a velha. — Certamente deve ser promoção de uma nova empresa de dedetização que abriu nas redondezas. O homem veio ontem pela manhã e...
— Massa japonesa uma ova! — interrompeu o busca-pé, aterrorizado. E disparou corredor afora seguindo o fio do detonador.
A velha chegou a pensar que havia se livrado do intruso mas ele voltou minutos depois, ainda mais histérico:
— Mulheres e crianças primeiro! — gritou. — Todos ao convés! Vamos evitar o pânico! SOS! SOS! SOS!
E voltou a ricochetear pelas paredes do apartamento.
— Você poderia fazer o favor de parar com essa balbúrdia?
O busca-pé mirou-a consternado:
— Minha senhora, este edifício vai voar pelos ares a qualquer momento!
A velha não deu atenção à advertência do busca-pé.
— Veja só! — disse ela — você está chamuscando os meus moldes de costura! Assim não é possível!
O busca-pé desesperou-se:
— Mas eu estou dizendo...
— Cale-se.
— ...que este edifício...
— Cale-se.
— ...vai voar pelos ares...
A velha fulminou-o com os olhos e ameaçou extingui-lo com a água do copo no qual guardava a dentadura. O busca-pé pressentiu o perigo e não terminou a frase. Em vez disso, enxugou o suor da testa, recompôs-se e perguntou, casualmente:
— Posso usar o seu banheiro?
Por um momento a velha não soube o que responder.
— S-sim, claro... — balbuciou, desconcertada.
O busca-pé ricocheteou até lá e voltou pouco depois, com um sorriso tranqüilizador.
— Foi o que pensei — disse ele. — Os cabos principais dos detonadores correm pela coluna de ventilação dos banheiros. Podemos usar parte deste explosivo — e apontou para a massa amarela — para provocar uma pequena detonação que destrua os cabos e...
A velha interrompeu-o abruptamente:
— O quê? Não contente em invadir a minha casa a uma hora dessas ainda quer provocar uma explosão no meu banheiro?
— Pequena detonação, se me permite o reparo — interrompeu o busca-pé com um sorriso otimista. — Caso contrário, kaput! Banzai! Capice? Em poucas horas, tudo isso vai virar entulho. Urge tomar decisões imediatas.
A velha olhou fixamente para o busca-pé durante algum tempo. Em seguida, sorriu, puxou os óculos até a ponta do nariz e disse calmamente:
— A quem você pensa que engana?
O busca-pé fez cara de que não sabia do que ela estava falando.
— A quem você pensa que engana? — repetiu com firmeza.
O busca-pé manteve a expressão atônita, mas já sem muita convicção.
— Alberto, meu tolo Alberto! Esses são modos de aparecer diante de sua viúva? Já faz mais de trinta anos que você morreu e, convenhamos, era de ser esperar uma aparição mais clássica, mais romântica...
O busca-pé fez menção de retrucar mas acabou corando de vergonha.
— Contudo, pensando bem, é uma fantasia adequada — prosseguiu a velha. — Você sempre foi irrequieto, explosivo e imaturo. Também sempre esteve com a cabeça nas nuvens de modo que a fantasia lhe cai muito bem.
O busca-pé esteve ao ponto de extinguir-se de tão embaraçado. Mas logo recuperou o lume:
— Você também não mudou nada — retrucou. — Continua a mesma criatura resmungona e apática de sempre. Também continua incapaz de se entusiasmar com minhas idéias. Talvez, se eu tivesse tido um pouco mais de apoio...
— Como no caso da máquina de sorvete? — ironizou a velha.
— Como no caso da fábrica de gelo! — corrigiu o busca-pé, irritado.
— Mas se você era incapaz de operar uma simples máquina de sorvete como é que podia pretender administrar uma fábrica de gelo?
— No entanto — respondeu o busca-pé, amuado —, teria dado certo.
— O que me consola — disse a velha a si mesma, simulando tédio —, é que isso é um sonho idiota do qual nem vou me lembrar amanhã de manhã.
— Não! Não! — atalhou o busca-pé. — Nem tudo é sonho. Os explosivos, por exemplo, são verdadeiros. Por favor, ao menos dessa vez, concorde comigo!
Ela quase cedeu. Mas logo mudou de idéia:
— Impossível. Você quer dinamitar o meu banheiro.
— Dentro em breve não haverá mais banheiro!
— Haverá sim!
E ambos se deram conta de que estavam discutindo exatamente como nos bons e velhos tempos.
— O caso — disse a velha com frieza —, é que talvez eu esteja pouco me importando se o edifício vai voar pelos ares.
— Você não pode estar falando sério — disse o busca-pé, consternado.
— Estou sim. Seria uma morte espetacular. Talvez até saísse nos telejornais...
— Os seus quinze minutos de fama — ironizou o busca-pé.
— Tanto assim?
— Tudo bem — disse ele após um profundo suspiro. — Não quer detonações no banheiro? Então será sem detonações no banheiro. Pensarei em outra coisa. Como sempre, você venceu.
A velha sorriu.
— Considerando que isso é um sonho e que nada disso está acontecendo realmente — prosseguiu o busca-pé, medindo as palavras —, você seria capaz, ao menos uma vez, de apoiar uma de minhas idéias?
— Desde que não exploda o banheiro...
— Pois muito bem — disse ele. — Não saia daqui.
E disparou janela afora.
A velha despertou por volta das três horas da madrugada, ainda sentada na cadeira de bordar. Deixou-se ficar ali durante alguns minutos, recuperando-se do estranho pesadelo. Um busca-pé falante que, em realidade, era o seu falecido marido. Que idéia mais extravagante! E, no entanto, parecera tão real...
Ela levantou-se com dificuldade, fechou a janela e deitou-se na cama estreita nos fundos do aposento. O sono não tardou a vir e ela novamente teria dormido até a hora da implosão não fosse despertada pouco depois pelo ruído de alguma coisa que se chocava repetidamente contra a vidraça.
— Você de novo! — disse a velha em meio a um bocejo.
O busca-pé gesticulou para que ela abrisse a janela. A velha obedeceu.
— Suba até o terraço! — gritou o busca-pé, ainda do lado de fora.
— O que?...
— Suba até o terraço! Não temos tempo a perder.
A velha hesitou. O busca-pé voltou a entrar no apartamento.
— Vamos! Você prometeu!
— Mas são dez andares de escada!
— Você consegue. Por favor!
— Mas o que há lá em cima?
— Você não tarda a saber. Vamos, siga-me! — e disparou corredor afora.
Ela estava certa de que jamais conseguiria chegar até o terraço. Certamente teria um infarto antes de alcançar o segundo piso. Mas não foi o que aconteceu. A princípio, ela não se deu conta mas logo ficou evidente que quanto mais subia, mais bem disposta se sentia. E a sensação de bem-estar era tão grande que, ao chegar ao quinto piso, já vencia os degraus de dois em dois.
O busca-pé a esperava, ansioso, ao fim da escadaria.
— Venha não temos tempo a perder.
E abriu a porta do terraço.
— Mas o que é isso? — exclamou ela ao dar com o imenso foguete pousado lá fora.
— Sou um busca-pé, não sou? Tenho amigos influentes no ramo de explosivos — e fez uma expressão de auto-estima quase caricata. — Devemos este belo foguete à iniciativa de milhares de rojões, cabeções, busca-pés, estrelinhas, traques e outros fogos de artifício, meus companheiros de ofício os quais, graciosamente, abriram mão de estourar nesta noite de festa para tirá-la deste edifício condenado.
De fato, por um momento, o foguete pareceu ter sido construído com toneladas de fogos de artifício enfeixados numa única e explosiva estrutura. O aspecto geral era de um tosco foguete de desenho animado e não inspirava a menor confiança. No momento seguinte, porém, já era uma autêntica nave espacial, com uma ampla cabina envidraçada, rampas retráteis, antenas, refletores, luzes coloridas, escotilhas, e muitos outros dispositivos que ela não fazia a menor idéia de para que serviam.
O busca-pé havia disparado na sua frente e ela o perdera de vista. E qual não foi a sua surpresa quando, ao aproximar-se da nave, encontrou Alberto, não mais travestido de busca-pé e, sim, com a aparência que tinha quando jovem. Vestia, então, o mesmo terno de linho branco, a mesma camisa de seda, o mesmo sapato de crocodilo que usara em suas bodas.
— V-você... Você está tão jovem, tão bonito!
— Não tanto quanto você — respondeu Alberto. E apontou para o reflexo da esposa na superfície platinada da espaçonave.
Somente então ela se deu conta do resultado de sua corrida prédio acima. Por algum sortilégio, ela havia rejuvenescido um lustro por lance de escada, chegando ao terraço no esplendor de seus vinte e poucos anos de idade.
— E para onde vamos? — perguntou enquanto examinava o rosto com as mãos e surpreendia-se com a maciez da própria pele.
— Para certo lugar nas cercanias de Beta da Ursa Maior — respondeu Alberto, sonhador.
— E onde fica isso? — disse ela, ajeitando os cabelos, novamente bastos e sedosos.
— A uns sessenta e dois anos luz daqui.
— Assim tão longe?
— Você não vem? — perguntou Alberto em tom de súplica.
Ela hesitou alguns instantes mas acabou entrando na espaçonave. Ele alegrou-se, entrou em seguida, fechou a escotilha e, tomando o microfone do painel de controle, disse:
— Piloto, estamos prontos para decolar.
Ela sobressaltou-se.
— Piloto...?
— Mas é claro — respondeu Alberto. — Como você sabe, sou incapaz de manejar uma simples máquina de sorvete.
— Mas quem é o piloto? — perguntou ela, incomodada com a idéia de ter que fazer viagem tão longa ao lado de um estranho.
Alberto tomou as mãos da esposa e sorriu.
— O gato — disse ele.
E partiram num clarão silencioso.
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