Edson Fredrico, Danuza Leão e Candice Bergen |
Em 1987, quando eu era chefe da sucursal carioca de famosa revista erótica paulistana, fui encarregado de redigir uma matéria sobre os pianos bares do Rio de Janeiro. A pauta pedia que eu pegasse pesado, contando todas as baixarias ocorridas no lusco fusco daqueles inferninhos de luxo e cometendo todo tipo de indiscrição a respeito das grandes celebridades que freqüentavam a noite chique carioca — no que, como verão ao seguir, fui muito bem sucedido.
Infelizmente, a pauta era uma armadilha do lado negro da Força para derrubar este pobre cronista que vos narra. Justamente por ter cumprido à risca aquilo que me fora pedido, acabei demitido e, obviamente, a matéria não foi publicada. No ano seguinte, porém, o texto acabou nas páginas da concorrente carioca, para onde eu voltava alegre e faceiro após aquele triste (e broxante) purgatório na Terra da Garoa. O texto que segue reúne trechos daquela matéria “polêmica”, na qual fui mais que ajudado pelo maestro Edson Frederico que, afinal de contas, é o grande protagonista da reportagem.
Portanto, minhas queridas Gabriela e Catarina, aí vai: um apanhado de histórias sobre a juventude de seu pai, um pequenino — diria microscópico — exemplo de como meu primo era engraçado e espirituoso, um sujeito tão seguro de si que não se importava em fazer troça de si mesmo, que trabalhava com enorme prazer e estava sempre muito, mas muito de bem com a vida:
NÃO EXISTE, A RIGOR o que se convencionou chamar de a noite carioca. Enquanto os gatões e gatinhas da juventude dourada se espalham pelos baixos e pelos circos (que de voadores só têm as latas de cerveja), enquanto boêmios, intelectuais e jornalistas disputam os bares da Lapa, do Centro e adjacências — vez por outra fazendo concessões à Zona Sul apenas para visitarem o tradicional Antonio’s —, o beautiful people tupiniquim se esconde em um tipo de estabelecimento ímpar em suas características: o piano-bar.
O piano-bar se divide em piano, público, garçom e barman. Ao redor do nobre instrumento de cordas percussivas, imersos em uma atmosfera carregada de fumaça, requinte e desejo, debruçados sobre generosas doses de scotch ou vodca importada, as maiores celebridades do jet set e do showbiz deste e de outros planetas fazem a sua noite carioca particular, embora a mesma cena possa estar acontecendo em Hong Kong, Nova Iorque ou Alfa Centauri uma vez que tais ambientes têm a mesma variedade étnica e cultural de um McDonalds. Brasileiríssima, mesmo, só a música, e ainda assim, bem de vez em quando.
Entretanto, seria incorreto afirmar que a noite chique é a mesma todo o tempo. A verdade é que, mesmo comprimida, estratificada e pressurizada nas pequeninas naves espaciais que são os pianos-bares, até mesmo essa noite carioca tem as suas sensíveis variações. (...)
Entre as oito e as onze horas, ocorre nesses recintos o fenômeno do pré-motel executivo. Ainda trajando seus indefectíveis uniformes de trabalho (gravata, paletó e pastinhas 007) e trazendo a tiracolo a secretária do terceiro andar, executivos de grandes e médias empresas executam a dança da corte, ritual que vale a pena ver para crer.
A dança do pré-motel começa em passos lentos, pianinho, passa a um alegro vivace em crescendo para desaguar num gran-finale de pano rápido. Primeiro, executivo e secretária sentam-se afastados, falam amenidades, fofocas profissionais (ele de olho no decote dela, ela se esforçando em disfarçar o decote indisfarçável). Em dado momento, já alegrinhos por causa do segundo uísque, ou ele ou ela — pouco importa — vai ao banheiro. Na volta, sentam-se mais próximos e estão líricos, carinhosos, falando baixinho, aos arrulhos. Então, quando menos se espera, o beijo rasgado de extrair amídalas, a conta por favor e o motel, na certa. (...)
Após a saída do último casalzinho executivo, começa o que chamamos de horário nobre, ditado pela saída dos grandes shows e pelo fim das funções de teatros e casas de espetáculos. E é aí que, usando a velha expressão, o circo pega fogo. O álcool já fez efeito e, protegidos pelas paredes surdas de seus redutos revestidos de veludo e espelhos, artistas, celebridades e colunáveis aprontam das suas, pra valer. (...)
Depois do horário nobre (que não tem hora para acabar, dependendo da disposição das feras), tem início o deprimente espetáculo da xepa de feira, quando os garis já estão varrendo a rua, o chuchu das bichas já está brotando e quem até então não cantou ninguém vai ter de se virar mesmo é no cinco contra um. As mulheres remanescentes estão desesperadas e os homens, nem se fala. Nessas horas, até a garota que vende cigarros vira a Brooke Shields.
A respeito da xepa de feira, vale lembrar que é o horário em que ocorrem as melhores piadas espontâneas — e as piores baixarias. Foi numa hora como essa, por exemplo que vimos certa portentosa cantora carioca de sexualidade alternativa perseguindo o gerente do Chiko’s Bar com um sapato na mão por que ele ousara acordá-la para, gentilmente, convidá-la a se retirar, já que estavam fechando a casa. O gerente fugiu pelos fundos, atravessando a cozinha em ritmo de papa-léguas, levando alguns pratos na correria desabalada. Foi uma fuga vergonhosa mas a verdade é que a estratégia deu resultado, já que a feroz cantora saiu correndo atrás e o maître, espertamente, trancou a porta.
Algumas noites depois, ao se levantar para levar sua amiga Zezé Motta em casa, este pobre repórter ouviu às suas costas a voz tonitruante desta mesma maldita cantatriz das trevas a esbravejar: “Aí, ô garotão... Como você não vai dar conta da crioula mesmo, depois leva ela lá em casa para o café da manhã.” (...)
Boa mesmo aconteceu outro dia, em célebre piano-bar de Ipanema: fora das paradas por um bom tempo, após uma temporada naturalista em Mauá, Odile Marinho (ex-Rubirosa) encontrou seu ex-namorado, o pianista Edson Frederico, e disse: “Oh, meu querrido, há quanto tempo: Como é que eu estou? Ainda bonita?” E, antes que o jovem maestro pudesse responder, tirou a camiseta, expondo a todos os seios que, justiça seja feita, ainda fariam a cabeça de qualquer cristão. Foi um pega pra capar: “Ninguém se mete!” “Tira!” “Bota!”, até a intervenção do maître e de alguns garçons, que acabaram por vesti-la. Mas ainda assim ela esperneava e gritava: “Seus merdes, ele já foi meu namorrado, viu? Tão pensando o quê? Eu compro essa merde desse bar...”
Há quem diga que Frederico é chave de cadeia. Mentira, a culpa não é dele. Seu único defeito, talvez, seja esse perigoso hábito de comer a carne aonde ganha o pão (ou vice versa). Nós, da noite, sabemos que, naquela vez em que um sujeito chegou ao Chiko’s Bar e descarregou um revólver em sua direção — alvejando gravemente um garçom, que ficou paraplégico —, ele não tinha culpa nenhuma. Também não teve culpa quando uma mulher desconhecida entrou no bar cambaleante, olhou para o pianista com cara de poucos amigos e perguntou: “Cadê o Luís Eça?” E, ao não receber resposta, emendou: “Quem é esse merda?”, para logo depois pegar um cinzeiro de cristal e atirá-lo em direção ao american bar, causando um estrago de alguns milhões de cruzeiros ao estabelecimento. É o que diz Frederico: “Se tudo correr bem, você é uma gracinha. Mas se alguma coisa der errado... cherchez le pianiste!”
Frases de efeito (ou com defeito) é o que mais se ouve em um piano-bar. Tais como aquelas presenciadas por todos os freqüentadores do Calígola quando da discussão entre uma freqüentadora e um garçom: “Tá pensando o quê? Eu sou uma lady, viu, seu filho da puta?” Ou a resposta na ponta da língua dada por certo pianista mal-humorado: “Você toca por música?” E ele: “Não. Por dinheiro.”
Aliás, o pianista é uma criatura bem sacrificada na noite dos piano bares. É ele quem tem a obrigação de, além de tocar, ficar de olho em tudo que acontece ao redor (nunca se sabe se terá de dar no pé quando da chegada de algum corno furioso), além de aturar galhardamente a bolina do brotinho sentado na mesa ao lado. Mas a sua verdadeira cruz são os bêbados-chatos-musicais.
Bêbado-chato-musical é aquele sujeito que faz sempre o mesmo pedido: “Toca aquela!” Mas os bêbados-chatos-musicais chegam às raias do inconveniente quando, por exemplo, ao se apoiarem na borda do piano para pedirem “aquela”, fecham a tampa na mão do pianista. Ou quando, em meio a um solo complicadíssimo, chegam no ouvido do músico e começam a cantarolar outra melodia: “Toca aquela que é assim ó: tralalalá...” (...)
Para encerrar a parte dos chatos, é bom lembrar o ocorrido no Chiko’s faz uns seis meses. Lá pelas duas da manhã, em pleno horário nobre, o pianista começou a receber uma série de bilhetinhos insistindo para que tocasse a mesma música: “Rosas Vermelhas para uma Dama Triste”. Como não se lembrasse do título, no primeiro intervalo perguntou quem estava requisitando a canção. O garçom apontou para uma mesinha no fundo do bar onde conversava um casal. “Com licença, senhor, mas poderia solfejar o comecinho dessa ‘Rosas Vermelhas para uma Dama Triste’, que eu não estou me lembrando?” E o chato, com uma cara de quem não gostou da intervenção: “Agora não precisa mais, era surpresa para ela...” (...)
Certo fim de noite, já completamente de porre, a famosa cantora baiana se oferece para “dar uma canja”. O pianista, que está a ponto de fechar a loja, se recusa. A cantora adverte: “Se você não deixar eu dar uma canja, vou fazer xixi no piano!” O pianista não acredita na ameaça e qual não é a sua surpresa quando a cantora sobe no Yamaha, arria a calcinha, se agacha e urina sobre as cordas. No dia seguinte, ao sentir o cheirinho característico, o ceguinho afinador que prestava serviços à casa lamentou-se: “Tratam tão mal este piano...”
Aliás, piano de bar é realmente um instrumento muito sacrificado. Certa noite de bruxas, este mesmo pianista que teve o piano batizado, foi obrigado a ver o seu instrumento de trabalho pisoteado por uma mulher que resolveu usá-lo como palco de show erótico. Além de contrariado com o gesto, ainda teve de fazer um esforço danado para não confundir as teclas. (...)
Bons e saudosos tempos foram os do Happy Hour, barzinho ali ao lado do Antonio’s, lugar minúsculo em que cabia um piano de cauda e o público disputava o espaço que sobrava. Havia quem falasse, inclusive, que o Happy Hour era o banheiro do Antonio’s, tantas as brilhantes carreiras ali desperdiçadas.
Lembro de certa noite em que, além de Sônia Braga, Walter Clark, Boni, Roniquito, Tarso de Castro e Pelé, ainda estavam lá a Candice Bergen, a Jacqueline Bisset e a Liza Minelli. Era uma noite de glória. Mas acontecia ali um fenômeno curioso: todos sabemos que o carioca recebe muito bem as visitas, sejam celebridades ou não. Mas assim que a Jacqueline Bisset freqüenta duas vezes o mesmo bar, vira uma chata, o tradicional “arroz de festa”. Então, ali, naquele Happy Hour entupido, ninguém estava dando muita bola nem para ela nem para o resto da turma célebre. Ao contrário: os freqüentadores estavam mesmo era de saco cheio porque o bar era pequeno e tinha gente saindo pelo ladrão.
Pois foi nessa noite que, lá pelas tantas, uma bela jovem emergiu por entre as pernas do pianista, que, assustado, parou de tocar. E ela, sorriso romântico rasgado nos lábios, pediu: “Maestro, toca ‘Lígia’?” Foi uma gargalhada só. E o mais curioso foi que ela não saiu dali o resto da noite. (...)
E etc, etc, etc...
2 comentários:
adorei alexandre.. mto boa as historias..
mais uma vez, sensacional! obrigada!
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