Na década de 70, o Pink Floyd foi o posto avançado do chamado rock-progressivo, traduzindo em suas músicas os sonhos delirantes de toda uma geração. Entretanto, quinze anos após o primeiro disco, com o lançamento do álbum duplo The Wall, o Pink Floyd mudou radicalmente de estilo, deixando a psicodelia de lado e partindo para uma música engajada, anti-belicista e impregnada de feroz crítica social. A matéria a seguir — publicada em 1983, logo após o lançamento de The Final Cut, último álbum do grupo com sua formação original — conta com um depoimento exclusivo do próprio Roger Waters.
CRISTAL PALACE, LONDRES, DÉCADA DE 70. Dezoito mil espectadores se acotovelam para assistir a mais um show do Pink Floyd. Ao redor do palco flutuante, um enorme polvo inflável estende seus tentáculos por todo o lago. As luzes diminuem de intensidade e o ruído do fogos de artifício é completamente abafado pelo poder de uma aparelhagem de som diabólica. O público, antes em delírio, é subjugado pela música, anestesiado por um espetáculo visual de rara beleza. A primeira música termina com acordes heróicos, as luzes se acendem novamente para dar lugar a um outro espetáculo que não estava no roteiro: sobre as águas daquele lago histórico, flutuam os corpos inertes de milhares de peixes, vítimas dos decibéis ensurdecedores.
Cristal Palace, Londres, década de 80. Talvez os mesmos espectadores do show anterior, dez anos mais velhos. Sobre o palco, os contra-regras acabam de colocar o último dos 340 tijolos de papelão que formam uma sólida muralha ao redor dos quatro componentes do grupo, isolando-os da platéia. Subitamente, uma réplica em tamanho natural de um antigo avião Spitfire da Segunda Guerra Mundial sobrevoa as cabeças assustadas dos quase vinte mil espectadores para cair espetacularmente por trás da muralha. Ao fim do show o muro explode em pedaços e a platéia se queda absolutamente estática, talvez assustada com o inusitado silêncio que substituiu a última concussão.
Antes de aderir ao rock progressivo, o Pink Floyd era apenas uma banda desconhecida de rythm’n’blues. O nome surgiu da fusão do prenome de dois antigos bluesmen da Geórgia, Pink Anderson e Floyd Council, muito admirados pelos garotos do Floyd. O gosto pelo ritmo norte-americano foi uma constante ao longo de toda a extensa obra do grupo.
Em 1968, o Pink Floyd animava as tardes do UFO, um clube londrino de aficionados por ficção científica e, segundo a famosa revista musicalMelody Maker, não havia nada mais underground e alienado do que aquela turma de fanáticos. Lá fora, além das paredes do UFO, os Beatles e os Rolling Stones já lançavam os fundamentos da infância rebelde e da adolescência crítica do rock’n’roll. Em Paris, as ruas se transformavam em barricadas e ouvia-se o velho brado anarquista durante os eventos de maio. No mundo inteiro, uma juventude participante anunciava o advento de uma nova era. Nessa mesma época, porém, o Floyd produzia a sua própria música, espacial, futurista, alucinógena, tida como "alienada" pelos setores mais sisudos da vanguarda revolucionária mundial.
E tinham alguma razão em suas críticas. Na época, o líder do grupo era o alucinado guitarrista Syd Barret, sujeito de equilíbrio emocional instável e que acabou por ser internado pelos companheiros devido ao seu comportamento anti-social e auto-destrutivo, que provocou uma meia dúzia de escândalos dos bons logo após o lançamento do primeiro álbum do grupo.
Daí para a frente, com David Gilmour como novo guitarrista, o Pink Floyd iniciou sua fase clássica. As obras Atom Heart Mother, Medley, Ummagumma e o extraordinário Dark Side of the Moon constituíram a música de fundo dos vertiginosos anos 70.
Subitamente, porém, o Floyd estacionou a sua produção musical, provavelmente ressentindo-se do LP Animals que, apesar de ter vendido bem, não despertou grandes reações e nada de novo apresentou aos fãs mais exigentes. A década terminou sem que houvesse esperanças de ressurreição para a antológica banda. Segundo a crítica, o Floyd agonizava em uma poça de lama, como o último remanescente dos chamados dinossauros do rock.
Mas não por muito tempo. Afinal, o Pink Floyd sempre reservou surpresas inesperadas ao seu público. Quando silenciaram os tambores eletrônicos da disco music e nossos Johns Travoltas já se cansavam de seus malabarismos e acrobacias, ele ressurgiu com uma proposta completamente diferente daquela que encantou aos jovens de 1968: uma música que procurava sintetizar, em suas histéricas convulsões, toda a saga do rock sob um ponto de vista crítico, reflexivo, "engajado".
The Wall, o disco que marca a volta do grupo ao panorama da música pop internacional, é uma obra suntuosa que demonstra que eles não estiveram tão inertes assim naqueles tempos de crise. Transformado em filme por Alan Parker (O Expresso da Meia-Noite, Fama), The Wallnarra os traumas e crises de um bem-sucedido músico de rock, chamado Pink, constantemente atormentado por seus traumas: o pai que morreu na guerra deixando apenas um instantâneo no álbum de família; a mãe superprotetora que o afoga com seus medos e restrições; os professores extremamente severos — reminiscências de uma Inglaterra vitoriana e repressiva — e a mulher com quem não consegue estabelecer uma relação normal, talvez devido aos traumas anteriores. Para Pink, cada um deles é apenas mais um tijolo no muro que ele mesmo construiu e por trás do qual procura esconder todo o seu amargo desdém pelo mundo. Em verdade, o drama do The Wall não é mais do que uma condensação estilizada que sintetiza a própria história e origem do rock, um fenômeno do pós-guerra, da Guerra Fria, de tempos de reconstrução e reavaliação da condição humana.
Neste ano de 1983, o Pink Floyd lançou seu último LP, The Final Cut, que, segundo nota na contracapa, é “um réquiem para o sonho do pós-guerra”. The Final Cut procura dar prosseguimento e maior profundidade ao primeiro tijolo do The Wall — o trauma de um pai ausente, morto em uma guerra estúpida, reavivado agora pelo recente conflito das Falklands. O disco é dedicado ao pai do baixista Roger Waters, morto em 1944 no desembarque de Anzio na Itália. Ainda na contracapa, lê-se a dedicatória: “Para Eric Fletcher Waters, 1913-1944.”
“Na época em que morreu, meu pai estava passando por uma fase de transição." diz Waters. "No início da guerra — e talvez tenha sido por isso que sofri tanto a sua perda — ele era um cristão muito devoto, um homem admirável que se negou a lutar por questões de consciência. Afinal, ele era um cristão. Perguntaram-lhe se ele estava disposto a exercer qualquer outra atividade além de servir no campo de batalha e ele respondeu: ‘Claro, qualquer coisa que não exija que eu mate alguém.’ E passou a trabalhar como chofer de ambulância durante a Blitz de Londres. Quando não estava dirigindo a ambulância, fazia serviços voluntários, ajudando a remover entulho de edifícios destruídos.”
"Foi nessa época que o Sr. Eric Fletcher Waters veio a conhecer certas pessoas, começou a se envolver com a ala esquerda da política e mudou de opinião. Passou a crer que, em determinadas circunstâncias, era necessário lutar. A despeito de suas profundas crenças religiosas, achou que existia um conceito nebuloso chamado autodefesa de um país: “Meu pai resolveu se apresentar dizendo que tinha mudado de idéia. Fez seu treinamento basico de seis semanas e, como tinha nível universitário, foi para a guerra como segundo oficial. Alistou-se e... morreu.”
A trilha inicial de The Final Cut, a faixa "The Post War Dream", é umaoverture que estabelece as premissas básicas do disco, indagando o que houve com o sonho do pós-guerra. Waters explica:
“Veja, por exemplo, a última guerra, na qual morreu tanta gente. Hoje os veteranos e heróis dessa guerra têm de vender suas condecorações, suas Cruzes da Vitória, para poderem comprar o pão de cada dia. A coisa é tão horrível que o próprio país prefere ignorá-la. Aliás, nas paradas da vitória, eles não queriam deixar que desfilassem os veteranos que tinham sido queimados ou desfigurados. A exibição desses mutilados de guerra não era recomendável do ponto de vista ideológico. Durante algum tempo sonhamos o sonho do pós-guerra. Quando a Guerra Fria começou a ceder na década de 60 e houve uma certa recuperação econômica no mundo, esse sonho ainda parecia real para muita gente. Depois, porém, a coisa muda: o sonho se dissipa, há uma nova recessão mundial, todo mundo volta a passar dificuldades e, para coroamento de tudo, começa uma estúpida guerra comercial e industrial da qual teremos que sair algum dia, de algum jeito.”
Essa guerra industrial a que Waters se refere e a mesma que vem levando a Inglaterra e o Japão a um conflito comercial de grandes proporções. Em The Post War Dream ele menciona a produção de navios japonesa e o quanto isso vem prejudicando a indústria naval britânica: “Cerca de quatro milhões de ingleses estão desempregados a essa altura. Esta semana outro estaleiro será fechado e só aí já são mais uns três mil desempregados. O que eu tentei dizer é que deve haver uma maneira melhor de viver neste mundo do que disparar numa corrida desesperada para ver quem fabrica o melhor carro ou o melhor navio. No entanto, parece que esse sistema de mercado mundial, onde vence aquele que fabrica melhor e mais barato, satisfaz certa espécie de ambição humana.” Segundo Waters, a noção ocidental sempre foi que a melhor maneira de recolher o lixo é deixar que alguém diga: “Eu o apanho por dez dólares”, enquanto outro diz: “Eu o faço por 9,50” e deixar que as leis do mercado decidam tudo. “Em minha opinião é uma atitude desesperadamente retrógrada. Infelizmente, nossa primeira-ministra é a favor desta filosofia monetarista. Acho que agora existe uma pequena chance de que um número cada vez maior de pessoas, ao sair da universidade e ingressar no serviço público ou no corpo diplomático, comece a pensar: ‘Ei, espere um pouco; esse sistema não resulta em um bocado de desperdício?”’
Roger Waters se refere aos líderes políticos com desconfiança e desdém: “Acho que os políticos não se interessam tanto pelos problemas como, por exemplo, os engenheiros se interessam. Deveria haver uma maneira melhor de escolher os dirigentes de um país do que deixar que eles apareçam na televisão fazendo propaganda de suas qualidades. Talvez fosse melhor ter um comitê popular de uns cem participantes, encarregados de escolher o melhor homem. Este não poderia ir à televisão para se promover ou tentar angariar votos. Não poderia nem mesmo candidatar-se ao posto. Mas, uma vez escolhido, seria obrigado a aceitar o cargo a serviço do país.
Qualquer pessoa que realmente deseje ser o presidente dos Estados Unidos é completamente inadequada para o cargo. Precisamos admitir que Ronald Reagan não é apenas um velho caubói. Mas certamente não me parece mais sensível do que um vaqueiro. Eu, por mim, não acredito que o povo americano vá permitir que Reagan brinque de Guerra nas Estrelas. Acredito que o povo absolutamente não vai permitir que ele se porte desta forma. Posso estar errado, mas acho que chegará o momento em que eles dirão: ‘Ei, cara, chega de jogar esse jogo estúpido!’
"Veja: Reagan é o líder do maior país do mundo e, no entanto, basta a gente olhar para ele para ver que é o tipo do sujeito que se sentiria feliz se conseguisse acertar uma bala na cabeça de dez entre onze galinhas a uma distância de quarenta passos. Pela maneira como ele anda pode-se ver que ele é esse tipo de homem. E está procurando governar o país mais poderoso do mundo a partir deste princípio — o princípio do eu-sei-matar-galinhas-melhor-do-que-você. Não conheço Ronald Reagan nem conheço Margaret Thatcher, mas, do modo como eles são capazes de odiar, acho que têm muito medo das pessoas e desejam o cargo para poderem se sentir mais fortes.”
Na canção "The Fletcher Memorial Home" ("O Lar Memorial de Fletcher") Roger Waters nos apresenta os líderes mundiais como crianças que cresceram demais, crianças que agora lidam com brinquedos mortíferos. E propõe a construção de uma enorme mansão, afastada dos outros seres humanos, onde os líderes mundiais pudessem conversar entre si por intermédio de um circuito fechado de TV, e brincar de polícia e ladrão, isolados do resto do mundo. “Para mim, se eles estivessem trancados em algum asilo seguro, eu me desinteressaria por eles completamente. Naturalmente, muitos deles vivem realmente trancados. Não há muita diferença entre ser o presidente dos Estados Unidos e estar trancado em um asilo de loucos. A diferença é que, como presidente, eles têm muito poder e podem afetar a vida de muitas pessoas. Mas são submetidos a toda espécie de tutela; são vigiados constantemente, têm de obedecer uma série de regulamentos, adotam um horário muito rígido, recebem certos remédios... Há uma porção de semelhanças. Se Ronald Reagan estivesse recebendo esses cuidados das pessoas que deveriam estar exercendo suas funções — escrevendo-lhe discursos, dando-lhe as injeções nas horas certas, para que ele não dê tantos tropeços em público, seria ótimo. Eles merecem a nossa pena. E verdade que os detesto por matarem pessoas, mas, uma vez trancados no Fletcher Memorial Home, tornar-se-iam supostamente inofensivos. E preciso ser bondoso com essa gente.”
Pacifista radical, Roger Waters chegou a se envolver com campanhas de desarmamento. Até pouco tempo foi um dos diretores da Campanha Oxford de Desarmamento Nuclear, em parte porque, na época, já tinha algumas das idéias que tem hoje e, em parte, “porque esta seria a única maneira pela qual conseguiria continuar a olhar de frente para as gaivotas que voam na praia à tarde”.
A respeito das Falklands e do conflito armado com a Argentina, Waters diz: “Graças a Deus, diferentemente do que ocorreu no Vietnã, nas Ilhas Falkland, morreram somente uns 200 dos nossos soldados. Talvez eu não devesse falar assim, pois não sei o total de feridos... mas ainda nos sentimos muito heróicos em relação a essa guerra — ou tentamos desesperadamente sentir-nos assim. Quando digo nós, estou sendo sarcástico, porque eu não me incluo entre eles; mas o governo inglês ainda procura apegar-se à idéia de que a guerra das Falklands foi um exemplo de defesa heróica dos princípios ocidentais tradicionais de liberdade e democracia. Nos Estados Unidos seria tolice pensar nesses termos em relação à Guerra do Vietnã. Afinal, com toda a publicidade a respeito do Agente Laranja, dos desfolhantes e tudo o mais, o assunto é indesejável. Lá eles procuram abafar o assunto o mais que podem.
“Não se pense, porém, que vivo numa espécie de pesadelo ao sentir estas coisas acontecendo à minha volta. Falo de uma posição muito confortável. Levo uma vida razoavelmente boa, sou bem casado, tenho meus filhos, uma boa casa... e um bocado de dinheiro. Para mim, trata-se de um fenômeno observável, algo que sinto ao meu redor. No duro, a vida tem sido muito boa para mim. Há uma espécie de paradoxo no fato de eu estar aqui, falando contra o sistema competitivo mundial, e estar envolvido numa indústria altamente competitiva... e estar vencendo.”
Na música-título do álbum The Final Cut, Roger Waters fala da relação entre um homem e uma mulher, uma mulher que reage mal quando, num momento de honestidade, ele lhe revela o seu lado fraco. “Todos somos sujeitos a doutrinação. E fomos doutrinados com a idéia de que ‘eu sou um bom homem pois sou um homem forte’. Em nossa sociedade não se pode ser bom quando não se é forte. No caso desta canção, trata-se apenas de uma pergunta: ‘Como você reagiria se eu lhe mostrasse o meu lado fraco?’ E uma expressão de minha paranóia acerca de como a minha esposa ou de como as mulheres reagiriam se conhecessem meu lado fraco.”
Em verdade, desde o desabafo de The Wall, Roger Waters vem abordando o mesmo tema de uma maneira tão sentida e pessoal que qualquer observador mais atento pode identificar na explosão genial destas últimas duas obras o dedo de uma mulher e o peso de uma relação em crise. Apesar de Waters e sua esposa Susie viverem agora em aparente harmonia, tudo indica que ela foi o estopim que deflagrou a nova fase do grupo, revivendo fantasmas há muito adormecidos na mente do irrequieto compositor.
Como o cantor Pink, protagonista de The Wall, Roger Waters confessa ter passado maus momentos em uma época em que o seu relacionamento com a esposa estava periclitando. Na chocante seqüência em que Pink se tranca em uma imensa suíte de um hotel de Los Angeles e passa a destruir tudo o que lhe aparece pela frente (inclusive ele mesmo, mutilando-se com a navalha) e logo após entra em coma devido a uma forte overdose de heroína, é claríssimo o contraponto com a realidade do autor. Apesar de não revelar como, nem em que condições, Waters confessa ter estado a ponto de realizar o corte final (the final cut) em um momento de desespero e abandono.
O fato é que o Pink Floyd voltou a falar, após quinze anos de silenciosa privacidade. Seu simbolismo já não é tão indevassável quanto no princípio, nos áureos tempos do Atom Heart Mother.
“Acho que tenho a responsabilidade de dizer o que sinto, porque tenho uma plataforma de onde posso falar e é possível que eu esteja expressando os mesmos sentimentos de várias pessoas que não possuem uma plataforma. Mas não me entendam mal: não é por isso que digo o que digo em minhas canções” conclui Roger Waters.
Em tempo: Roger Waters estará no Brasil entre março e abril de 2012, com apresentações em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Aos fãs que pretendem comparecer aos shows, fica a dica, colhida ainda naquela época mas que deve valer até hoje: o cara odeia, mas detesta mesmo, platéia retardo-mental que gosta de bater palminhas ou cantar acompanhando o cantor, o que parece ter virado moda aqui no Brasil: “Odeio a participação do público. É algo que me deixa literalmente arrepiado. Gritar, berrar e cantar em grupo pode ser um barato na igreja, mas não em nossos shows.”
Então, não digam que não avisei...
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