ENTRE UMA INFINIDADE de outros benefícios
menos relevantes, a Astronomia e a Geologia
têm a extraordinária capacidade de nos pôr em nosso devido lugar, lembrando que
não passamos de um cisco de um cisco de poeira perdido em meio a uma
conflagração de proporções e conseqüências tão gigantescas e poderosas que
nossa limitadíssima mente de macaco pelado seria incapaz de compreender.
A Astronomia, é
claro, sempre foi mais eficiente, freqüentemente brutal, na tarefa de deixar
bem claro, e em apenas alguns poucos segundos de superficial reflexão, que a
vida definitivamente não deve ser levada muito a sério.
Não obstante nossa
total incapacidade de realmente conceber as cifras literalmente astronômicas
envolvidas na eterna especulação sobre a criação, a idade, a natureza e o
tamanho do Universo, não é muito difícil imaginar-se um fragmento de coisa
nenhuma antes mesmo de começarmos a falar de pulsares, quasares e buracos
negros — embora haja quem comece a sentir vertigens antes mesmo de deixar a
estratosfera.
A Geologia,
entretanto, apesar de nos oferecer uma visão limitada, localizada, pontual, do
grande drama do Universo, nos é mais compreensível. Accessível. Palpável.
Ousaria dizer, mais humana. Afinal, lida
com conceitos que não são tão teóricos e não nos parecem tão alienígenas quanto
aqueles com os quais nos vemos às voltas toda vez que nos debruçamos sobre as
abstratas e insondáveis eternidades da Astronomia.
De modo geral,
todos sabemos o que é uma cadeia de montanhas, um deserto, um vulcão, um
terremoto. Todos já tocamos a face de um paredão de granito ou já deixamos
areia de praia escorrer por entre os vãos dos dedos. Grosso modo, conhecemos os
atores e o cenário da história. E, talvez por isso, este pequeno drama representado
em um pequeno planeta na periferia de uma galáxia vagabunda perdida no meio do
vasto universo nos pareça mais dramático, mais pungente, mais real do que a
grandiosa ópera do Cosmo.
Ora, levando o
raciocínio às últimas conseqüências, não é difícil concluir que, para de fato
compreendermos quão minúsculos, efêmeros e desprezíveis somos nós, os seres
vivos que habitam este planeta, você nem mesmo precisa ler todo o libreto.
Talvez, baste se apegar a uma única cena, um único penedo, um mero aglomerado de
rochas muito antigas avançando mar adentro para se ter uma visão ainda mais
sintética, embora muito mais visceral, de toda a trama.
Qualquer criatura
desavisada que se posicione sobre o ponto mais alto da Ponta do Arpoador e
corra os olhos sobre o Dois Irmãos, a Gávea e o maciço da Tijuca, há de pensar
que aqueles imponentes gigantes de pedra sempre estiveram (e sempre estarão)
ali onde estão. Que fazem parte do rol das coisas imperecíveis e imutáveis que
Deus colocou sobre a face da Terra para nos dar notícia da transitoriedade de
nossas prosaicas existências. A própria pedra sobre a qual está pisando e que
lhe serve de observatório, embora mais modesta em tamanho, lhe parecerá tão
sólida e eterna quanto as estrelas do céu — as quais, entretanto, também estão
longe de qualquer eternidade plausível.
O que é de se
entender. Afinal, aquele belo conjunto de pedras já estava ali quando seu
tetravô primeiro pisou em terras americanas, ali esteve ao longo de toda a sua
infância, juventude e idade madura e, aparentemente, ali estará após a sua
morte; e até o fim dos tempos.
Pura ilusão. Em
realidade, não fosse a Terra um planeta tão “dinâmico”, com um belo núcleo de
magma, vulcões ativos e placas tectônicas não consolidadas, nada disso
existiria e a superfície do planeta seria inteiramente coberta de água,
conformando um único e monótono oceano. Qualquer cadeia de montanhas, qualquer
massa continental que outrora existisse sobre a superfície, já há muito teria
sido erodida pela ação implacável da água, da areia e do vento.
Para a nossa sorte,
porém, nossos vulcões entram em erupção de tempos em tempos e nossas placas
tectônicas se chocam umas contra as outras, formando continentes, criando
ilhas, erguendo-se em grandes cadeias de montanhas ou abrindo-se para formar
novos oceanos. O processo é lento, mas contínuo, e apesar de toda devastação
provocada por suas ocasionais convulsões, tais cataclismos são um dos
principais responsáveis pela existência de vida em um planeta que, de outro modo,
além de se tornar um tanto aborrecido, teria de trocar de nome — e de elemento.
Para explicar como
e por que as pedras que abraçam a cidade do Rio de Janeiro são como são e estão
onde estão, precisaremos embarcar em uma máquina do tempo virtual, movida a
ciência, bom senso e uma boa dose de imaginação. Em poucos segundos, atravessaremos
diversas eras geológicas, aprofundando-nos no passado remoto, chegando ao fim
do Período Pré-Cambriano, há mais de 600 milhões de anos.
O planeta que
encontramos então é muito diferente da Terra em que vivemos hoje em dia e, caso
pudéssemos vê-lo de cima, não seríamos capazes de distinguir as massas continentais
que afloram dos oceanos. Estamos em algum ponto no limiar da placa
sul-americana, ou daquilo que, em um futuro muito distante, virá a constituir o
continente sul-americano.
A paisagem, é
claro, em nada lembra o caprichoso perfil do Rio de Janeiro atual. Ao nosso
redor, sob um sol abrasador, estende-se uma extensa e desnuda planície, repleta
de poeira, cascalho e rochas fragmentadas. Nenhuma planta, nenhum animal
terrestre, nem mesmo líquenes ou fungos. A vida, ainda incipiente, viceja
apenas nas profundezas do mar escuro e tormentoso que entrevemos ao longe.
Escavando o solo
empoeirado, afastando uma tênue camada de cascalho, topamos com um leito
rochoso de pedra acinzentada que se estende por uma ampla área à nossa volta.
Desinteressante que seja, e por incrível que pareça, eis aí o objeto de nossa
busca, o personagem principal desta história.
Vocês não devem
estar ligando o nome à pessoa. E certamente devem estar muito decepcionados por
terem vindo de tão longe para fazerem descoberta de tão pouca monta, debaixo de
sol tão inclemente, sobre terreno tão inóspito e rude.
Afortunadamente,
para entendermos o que um mero veio de rocha ígnea granítica perdido em meio a
um deserto estéril tem a ver com o encantador penedo à beira mar onde iniciamos
esta longa viagem, teremos de retornar à cabine refrigerada de nossa máquina do
tempo e fazer o caminho inverso, acelerando nossos propulsores temporais à
vertiginosa progressão de cem mil anos por segundo.
Nesta velocidade, é
impossível observar a grande explosão de vida ocorrida no período seguinte, o
Cambriano. À medida que sucessivas gerações de criaturas tomam conta do planeta
vemos apenas manchas coloridas varrendo a paisagem, como sombras projetadas por
nuvens gordas e esparsas levadas rapidamente pelo vento em um dia de sol.
Outras
transformações, entretanto, por serem muito mais lentas, permitem que as
acompanhemos em maiores detalhes. Olhando em direção ao mar, por exemplo,
percebemos uma fímbria escura no horizonte distante, que se aproxima lentamente
até se revelar como sendo outra gigantesca massa continental. Trata-se da Placa
Africana, ou aquilo que, algum dia, virá a constituir o continente africano atual.
Observamos,
atônitos, a aproximação daquele colosso, até que este colide com a Placa Sul
Americana, eliminando o oceano que as separava outrora. Pouco a pouco, a
planície onde estamos vai sendo atropelada, esmagada, soterrada pela Placa Africana,
que avança inexoravelmente.
No ponto de
encontro de ambas as placas, como resultado deste impacto, vemos erguer-se uma
grande cordilheira, possivelmente tão alta e extensa quanto os Andes atuais. O
veio granítico que desvendamos há pouco encontra-se agora a mais de 15km de
profundidade. E passando por notáveis metamorfoses. Enquanto que, na superfície,
o mundo é ocupado por vida cada vez mais complexa e exuberante, nas profundezas
da Terra, nosso personagem — assim como os demais minerais que formavam a
extensa planície — é submetido a extremas condições de temperatura e pressão,
transformando-se em magma, mesclando-se a outros minerais, saindo da mera
condição de rocha ígnea granítica e criando condições para que, em breve, se
transforme em um tipo de matéria muito mais complexa.
Passa o tempo.
Muito, muito tempo. A imensa cordilheira formada durante o encontro das placas
continentais é gradativamente erodida. Montanhas tão altaneiras quanto o
Aconcágua são literalmente dissolvidas pela ação dos elementos. Gigantes
nevados com mais de seis mil metros de altura, aparentemente eternos, são
reduzidos a poeira pela chuva, pela areia e pelo vento. Em algumas centenas de
milhões de anos, toda uma cadeia de montanhas desaparece da face da Terra como
se nunca tivesse existido.
Com o gradual
desaparecimento da cordilheira, a crosta soterrada pela Placa Africana vai
aflorando lentamente. E pela primeira vez em algumas centenas de milhões de
anos, nosso veio de rocha ígnea granítica volta à superfície do planeta, só que
transformado em algo novo, um tipo de rocha metamórfica que os cientistas denominam
de gnaisse facoidal.
O nome pode
assustar aqueles que não têm estômago para geologismos, mas é um tipo de pedra
bem conhecida dos cariocas uma vez que dela é feita o Pão de Açúcar, o
Corcovado e, obviamente, a Ponta do Arpoador — além de poder ser observada em
diversas construções do Rio Antigo, inclusive no chafariz das Saracuras, na
Praça General Osório, criado por mestre Valentim. A “mais carioca das rochas”,
como a definiu o Anuário do Instituto de Geociências da UFRJ, é uma pedra
grosseiramente granulosa, caracterizada por possuir “olhos” elípticos de
feldspato — daí o nome facoidal, que vem do grego φακοειδή, ou “lenticular”.
Há cerca de 150
milhões de anos, o supercontinente formado pela união das placas Africana e Sul
Americana — que os cientistas contemporâneos apelidaram de Gondwana — começa a
se romper. As placas voltam a se afastar uma da outra e, no espaço aberto por
essa separação surge o Oceano Atlântico.
Novamente expostas
ao sol, todas aquelas rochas que conformavam a imensa planície aonde primeiro
chegamos nessa nossa longa viagem ao passado — e que sofreram a ação
transformadora das altíssimas condições de temperatura e pressão às quais foram
submetidas no interior da Terra — passam a também sofrer a ação erosiva dos
elementos.
Inicialmente,
formam um imenso corpo tabular, sem grandes depressões ou relevo, algo parecido
com o que até hoje podemos ver no topo de granito da Pedra da Gávea. Com o
tempo, porém, seus minerais mais macios são lentamente erodidos. Apenas as
rochas mais duras resistem. O perfil da atual bacia da Guanabara — e, em uma
escala mais ampla, da Serra do Mar e da Mantiqueira — toma forma.
Neste ponto, por
mero capricho, desligamos nossos propulsores temporais para que possamos
observar detalhes da paisagem.
Estamos, então, bem
avançados no tempo, por volta do ano 20 mil a.C., em plena Era do Gelo. Boa
parte da água dos oceanos está congelada nos pólos, os continentes têm linhas
costeiras muito mais amplas e o Arpoador ainda está longe de ser o que é
atualmente. De fato, caso não soubéssemos para onde estamos olhando, seríamos
incapazes de reconhecer ali o conjunto de pedras que é objeto deste texto.
Para começo de
conversa, não vemos o mar, que se encontra a alguns quilômetros a leste, além
da linha do horizonte. Em realidade, mal conseguimos definir os contornos do
rochedo, então cercado e parcialmente coberto por uma exuberante floresta
subtropical, repleta de pinheiros, sempre vivas e araucárias. Tatus e preguiças
gigantes substituem os farofeiros e as ratazanas urbanas que infestam o Arpoador
contemporâneo. Aparentemente, o homem ainda não chegou a este lado do continente.
A moça de Lagoa Santa ainda está a nove mil anos no futuro.
Voltando a acelerar
nossos propulsores, testemunhamos o fim da Era do Gelo e a gradativa
aproximação do oceano. Observamos a ação abrasiva das ondas contras as rochas e
a formação de uma enseada paradisíaca que, em um futuro não muito longínquo,
será batizada de Ipanema e celebrada em música, verso e prosa pelo mundo afora.
O areal é tomado por uma densa vegetação de restinga que, junto ao mar,
resume-se a plantas rasteiras e herbáceas capazes de resistir à alta salinidade
e a força das ressacas mas que, à medida que avança terra adentro, torna-se
mais exuberante, com cactos, arbustos, arvoretas, bromélias, trepadeiras e
orquídeas. Caranguejos, aranhas, serpentes e anfíbios arrastam-se sobre o solo
arenoso. Sabiás, gaviões e aves migratórias disputam os galhos dos arbustos
mais altos. Ouvimos o contínuo marulhar das ondas contra as pedras.
O paraíso é ali. E
agora.
No melhor da festa,
entretanto, sentimos os propulsores desacelerarem automaticamente. Como por
encanto maligno, uma ominosa muralha de concreto materializa-se em meio à
paisagem. Ouvimos um estalo. O sibilar de uma súbita descompressão. A cabina
pára de vibrar. Chegamos aos tempos atuais.
Como sabemos, a ponta do
Arpoador — assim como o Corcovado, o Pão de Açúcar, o Morro dos Cabritos e
tantas outras formações rochosas da paisagem carioca — é constituída
basicamente de um mineral granuloso chamado gnaisse facoidal, resultado das
metamorfoses sofridas por um veio de rocha ígnea granítica nas profundezas da
Terra. Contudo, embora em menor proporção, outras rochas também estavam
presentes naquele gigantesco caldeirão de magma pressurizado em que foi
engendrado o nosso penedo. E são elas as responsáveis pelos caprichosos veios e
estrias — tão característicos — que vemos atualmente ao logo de todo o rochedo.
Sujeita à erosão e ao intemperismo, a Ponta
do Arpoador vem sofrendo todo tipo de transformação desde que novamente voltou
à superfície há cerca de 150 milhões de anos.
Nas pedras do
paredão oeste, por exemplo, lado no qual prevalecem os ventos, encontramos
grandes cavidades arredondadas, criadas por redemoinhos de sais cristalizados e
outras partículas aéreas, que nos dão uma boa amostra de como os gigantes de
pedra do planeta Terra — aparentemente eternos — acabam literalmente transformados
em poeira pela ação dos elementos. Já nos paredões voltados para o mar,
verificamos o desgaste das rochas causado pelo impacto das ondas. O próprio
calor do sol exerce efeito sobre aquele conjunto de pedras, criando
microfissuras nas rochas e permitindo a infiltração de sais, areia e raízes que
pouco a pouco vêm desagregando as suas rochas e alterando suas características
morfológicas. E até mesmo a vida animal, passageira que seja, também contribui
para a mudança, como é o caso dos curiosos orifícios produzidos por ouriços —
criaturas hoje erradicadas pela poluição marinha — que podemos ver em diversos
pontos do penedo.
É muito provável
que, em um espaço de tempo relativamente curto, a Ponta do Arpoador não mais
exista. Muito em breve, seus minerais acabarão transformados, dissolvidos,
erodidos e espalhados pela ação dos elementos. E nada mais restará de sua memória.
Certamente não
estaremos vivos a essa altura. De nosso ponto de vista, em nossa escala de
tempo, aquele elegante rochedo à beira mar continuará a ser o que sempre foi. E
sempre permanecerá ali onde está. E continuaremos a mergulhar, passear, pescar,
namorar e fazer piqueniques em suas encostas. E continuaremos a admirar dali o
pôr do sol, emoldurado pelas imponentes formações rochosas da Gávea, do Dois
Irmãos e do Maciço da Tijuca, alheios ao fato de que, do ponto de vista da
Geologia, tais gigantes de pedra, aparentemente eternos, são tão recentes e
efêmeros quanto gotas de orvalho ao sol da manhã.
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Fontes: Anuário do
Instituto de Geociências da UFRJ, “O Gnaisse Facoidal: a mais Carioca das
Rochas”, vol. 31-2 / 2008, p. 9-22; Dicionário Enciclopédico Livre de
Geociências, “Ponta do Arpoador” em http://www.dicionario.pro.br