sábado, 30 de abril de 2016

Pedras ao sol



ENTRE UMA INFINIDADE de outros benefícios menos relevantes, a Astronomia e a Geologia têm a extraordinária capacidade de nos pôr em nosso devido lugar, lembrando que não passamos de um cisco de um cisco de poeira perdido em meio a uma conflagração de proporções e conseqüências tão gigantescas e poderosas que nossa limitadíssima mente de macaco pelado seria incapaz de compreender.
A Astronomia, é claro, sempre foi mais eficiente, freqüentemente brutal, na tarefa de deixar bem claro, e em apenas alguns poucos segundos de superficial reflexão, que a vida definitivamente não deve ser levada muito a sério.
Não obstante nossa total incapacidade de realmente conceber as cifras literalmente astronômicas envolvidas na eterna especulação sobre a criação, a idade, a natureza e o tamanho do Universo, não é muito difícil imaginar-se um fragmento de coisa nenhuma antes mesmo de começarmos a falar de pulsares, quasares e buracos negros — embora haja quem comece a sentir vertigens antes mesmo de deixar a estratosfera.
A Geologia, entretanto, apesar de nos oferecer uma visão limitada, localizada, pontual, do grande drama do Universo, nos é mais compreensível. Accessível. Palpável. Ousaria dizer, mais humana. Afinal, lida com conceitos que não são tão teóricos e não nos parecem tão alienígenas quanto aqueles com os quais nos vemos às voltas toda vez que nos debruçamos sobre as abstratas e insondáveis eternidades da Astronomia.
De modo geral, todos sabemos o que é uma cadeia de montanhas, um deserto, um vulcão, um terremoto. Todos já tocamos a face de um paredão de granito ou já deixamos areia de praia escorrer por entre os vãos dos dedos. Grosso modo, conhecemos os atores e o cenário da história. E, talvez por isso, este pequeno drama representado em um pequeno planeta na periferia de uma galáxia vagabunda perdida no meio do vasto universo nos pareça mais dramático, mais pungente, mais real do que a grandiosa ópera do Cosmo.
Ora, levando o raciocínio às últimas conseqüências, não é difícil concluir que, para de fato compreendermos quão minúsculos, efêmeros e desprezíveis somos nós, os seres vivos que habitam este planeta, você nem mesmo precisa ler todo o libreto. Talvez, baste se apegar a uma única cena, um único penedo, um mero aglomerado de rochas muito antigas avançando mar adentro para se ter uma visão ainda mais sintética, embora muito mais visceral, de toda a trama.

Qualquer criatura desavisada que se posicione sobre o ponto mais alto da Ponta do Arpoador e corra os olhos sobre o Dois Irmãos, a Gávea e o maciço da Tijuca, há de pensar que aqueles imponentes gigantes de pedra sempre estiveram (e sempre estarão) ali onde estão. Que fazem parte do rol das coisas imperecíveis e imutáveis que Deus colocou sobre a face da Terra para nos dar notícia da transitoriedade de nossas prosaicas existências. A própria pedra sobre a qual está pisando e que lhe serve de observatório, embora mais modesta em tamanho, lhe parecerá tão sólida e eterna quanto as estrelas do céu — as quais, entretanto, também estão longe de qualquer eternidade plausível.
O que é de se entender. Afinal, aquele belo conjunto de pedras já estava ali quando seu tetravô primeiro pisou em terras americanas, ali esteve ao longo de toda a sua infância, juventude e idade madura e, aparentemente, ali estará após a sua morte; e até o fim dos tempos.
Pura ilusão. Em realidade, não fosse a Terra um planeta tão “dinâmico”, com um belo núcleo de magma, vulcões ativos e placas tectônicas não consolidadas, nada disso existiria e a superfície do planeta seria inteiramente coberta de água, conformando um único e monótono oceano. Qualquer cadeia de montanhas, qualquer massa continental que outrora existisse sobre a superfície, já há muito teria sido erodida pela ação implacável da água, da areia e do vento.
Para a nossa sorte, porém, nossos vulcões entram em erupção de tempos em tempos e nossas placas tectônicas se chocam umas contra as outras, formando continentes, criando ilhas, erguendo-se em grandes cadeias de montanhas ou abrindo-se para formar novos oceanos. O processo é lento, mas contínuo, e apesar de toda devastação provocada por suas ocasionais convulsões, tais cataclismos são um dos principais responsáveis pela existência de vida em um planeta que, de outro modo, além de se tornar um tanto aborrecido, teria de trocar de nome — e de elemento.
Para explicar como e por que as pedras que abraçam a cidade do Rio de Janeiro são como são e estão onde estão, precisaremos embarcar em uma máquina do tempo virtual, movida a ciência, bom senso e uma boa dose de imaginação. Em poucos segundos, atravessaremos diversas eras geológicas, aprofundando-nos no passado remoto, chegando ao fim do Período Pré-Cambriano, há mais de 600 milhões de anos.
O planeta que encontramos então é muito diferente da Terra em que vivemos hoje em dia e, caso pudéssemos vê-lo de cima, não seríamos capazes de distinguir as massas continentais que afloram dos oceanos. Estamos em algum ponto no limiar da placa sul-americana, ou daquilo que, em um futuro muito distante, virá a constituir o continente sul-americano.
A paisagem, é claro, em nada lembra o caprichoso perfil do Rio de Janeiro atual. Ao nosso redor, sob um sol abrasador, estende-se uma extensa e desnuda planície, repleta de poeira, cascalho e rochas fragmentadas. Nenhuma planta, nenhum animal terrestre, nem mesmo líquenes ou fungos. A vida, ainda incipiente, viceja apenas nas profundezas do mar escuro e tormentoso que entrevemos ao longe.
Escavando o solo empoeirado, afastando uma tênue camada de cascalho, topamos com um leito rochoso de pedra acinzentada que se estende por uma ampla área à nossa volta. Desinteressante que seja, e por incrível que pareça, eis aí o objeto de nossa busca, o personagem principal desta história.
Vocês não devem estar ligando o nome à pessoa. E certamente devem estar muito decepcionados por terem vindo de tão longe para fazerem descoberta de tão pouca monta, debaixo de sol tão inclemente, sobre terreno tão inóspito e rude.
Afortunadamente, para entendermos o que um mero veio de rocha ígnea granítica perdido em meio a um deserto estéril tem a ver com o encantador penedo à beira mar onde iniciamos esta longa viagem, teremos de retornar à cabine refrigerada de nossa máquina do tempo e fazer o caminho inverso, acelerando nossos propulsores temporais à vertiginosa progressão de cem mil anos por segundo.
Nesta velocidade, é impossível observar a grande explosão de vida ocorrida no período seguinte, o Cambriano. À medida que sucessivas gerações de criaturas tomam conta do planeta vemos apenas manchas coloridas varrendo a paisagem, como sombras projetadas por nuvens gordas e esparsas levadas rapidamente pelo vento em um dia de sol.
Outras transformações, entretanto, por serem muito mais lentas, permitem que as acompanhemos em maiores detalhes. Olhando em direção ao mar, por exemplo, percebemos uma fímbria escura no horizonte distante, que se aproxima lentamente até se revelar como sendo outra gigantesca massa continental. Trata-se da Placa Africana, ou aquilo que, algum dia, virá a constituir o continente africano atual.
Observamos, atônitos, a aproximação daquele colosso, até que este colide com a Placa Sul Americana, eliminando o oceano que as separava outrora. Pouco a pouco, a planície onde estamos vai sendo atropelada, esmagada, soterrada pela Placa Africana, que avança inexoravelmente.
No ponto de encontro de ambas as placas, como resultado deste impacto, vemos erguer-se uma grande cordilheira, possivelmente tão alta e extensa quanto os Andes atuais. O veio granítico que desvendamos há pouco encontra-se agora a mais de 15km de profundidade. E passando por notáveis metamorfoses. Enquanto que, na superfície, o mundo é ocupado por vida cada vez mais complexa e exuberante, nas profundezas da Terra, nosso personagem — assim como os demais minerais que formavam a extensa planície — é submetido a extremas condições de temperatura e pressão, transformando-se em magma, mesclando-se a outros minerais, saindo da mera condição de rocha ígnea granítica e criando condições para que, em breve, se transforme em um tipo de matéria muito mais complexa.
Passa o tempo. Muito, muito tempo. A imensa cordilheira formada durante o encontro das placas continentais é gradativamente erodida. Montanhas tão altaneiras quanto o Aconcágua são literalmente dissolvidas pela ação dos elementos. Gigantes nevados com mais de seis mil metros de altura, aparentemente eternos, são reduzidos a poeira pela chuva, pela areia e pelo vento. Em algumas centenas de milhões de anos, toda uma cadeia de montanhas desaparece da face da Terra como se nunca tivesse existido.
Com o gradual desaparecimento da cordilheira, a crosta soterrada pela Placa Africana vai aflorando lentamente. E pela primeira vez em algumas centenas de milhões de anos, nosso veio de rocha ígnea granítica volta à superfície do planeta, só que transformado em algo novo, um tipo de rocha metamórfica que os cientistas denominam de gnaisse facoidal.
O nome pode assustar aqueles que não têm estômago para geologismos, mas é um tipo de pedra bem conhecida dos cariocas uma vez que dela é feita o Pão de Açúcar, o Corcovado e, obviamente, a Ponta do Arpoador — além de poder ser observada em diversas construções do Rio Antigo, inclusive no chafariz das Saracuras, na Praça General Osório, criado por mestre Valentim. A “mais carioca das rochas”, como a definiu o Anuário do Instituto de Geociências da UFRJ, é uma pedra grosseiramente granulosa, caracterizada por possuir “olhos” elípticos de feldspato — daí o nome facoidal, que vem do grego φακοειδή, ou “lenticular”.
Há cerca de 150 milhões de anos, o supercontinente formado pela união das placas Africana e Sul Americana — que os cientistas contemporâneos apelidaram de Gondwana — começa a se romper. As placas voltam a se afastar uma da outra e, no espaço aberto por essa separação surge o Oceano Atlântico.
Novamente expostas ao sol, todas aquelas rochas que conformavam a imensa planície aonde primeiro chegamos nessa nossa longa viagem ao passado — e que sofreram a ação transformadora das altíssimas condições de temperatura e pressão às quais foram submetidas no interior da Terra — passam a também sofrer a ação erosiva dos elementos.
Inicialmente, formam um imenso corpo tabular, sem grandes depressões ou relevo, algo parecido com o que até hoje podemos ver no topo de granito da Pedra da Gávea. Com o tempo, porém, seus minerais mais macios são lentamente erodidos. Apenas as rochas mais duras resistem. O perfil da atual bacia da Guanabara — e, em uma escala mais ampla, da Serra do Mar e da Mantiqueira — toma forma.
Neste ponto, por mero capricho, desligamos nossos propulsores temporais para que possamos observar detalhes da paisagem.
Estamos, então, bem avançados no tempo, por volta do ano 20 mil a.C., em plena Era do Gelo. Boa parte da água dos oceanos está congelada nos pólos, os continentes têm linhas costeiras muito mais amplas e o Arpoador ainda está longe de ser o que é atualmente. De fato, caso não soubéssemos para onde estamos olhando, seríamos incapazes de reconhecer ali o conjunto de pedras que é objeto deste texto.
Para começo de conversa, não vemos o mar, que se encontra a alguns quilômetros a leste, além da linha do horizonte. Em realidade, mal conseguimos definir os contornos do rochedo, então cercado e parcialmente coberto por uma exuberante floresta subtropical, repleta de pinheiros, sempre vivas e araucárias. Tatus e preguiças gigantes substituem os farofeiros e as ratazanas urbanas que infestam o Arpoador contemporâneo. Aparentemente, o homem ainda não chegou a este lado do continente. A moça de Lagoa Santa ainda está a nove mil anos no futuro.
Voltando a acelerar nossos propulsores, testemunhamos o fim da Era do Gelo e a gradativa aproximação do oceano. Observamos a ação abrasiva das ondas contras as rochas e a formação de uma enseada paradisíaca que, em um futuro não muito longínquo, será batizada de Ipanema e celebrada em música, verso e prosa pelo mundo afora. O areal é tomado por uma densa vegetação de restinga que, junto ao mar, resume-se a plantas rasteiras e herbáceas capazes de resistir à alta salinidade e a força das ressacas mas que, à medida que avança terra adentro, torna-se mais exuberante, com cactos, arbustos, arvoretas, bromélias, trepadeiras e orquídeas. Caranguejos, aranhas, serpentes e anfíbios arrastam-se sobre o solo arenoso. Sabiás, gaviões e aves migratórias disputam os galhos dos arbustos mais altos. Ouvimos o contínuo marulhar das ondas contra as pedras.
O paraíso é ali. E agora.
No melhor da festa, entretanto, sentimos os propulsores desacelerarem automaticamente. Como por encanto maligno, uma ominosa muralha de concreto materializa-se em meio à paisagem. Ouvimos um estalo. O sibilar de uma súbita descompressão. A cabina pára de vibrar. Chegamos aos tempos atuais.

Como sabemos, a ponta do Arpoador — assim como o Corcovado, o Pão de Açúcar, o Morro dos Cabritos e tantas outras formações rochosas da paisagem carioca — é constituída basicamente de um mineral granuloso chamado gnaisse facoidal, resultado das metamorfoses sofridas por um veio de rocha ígnea granítica nas profundezas da Terra. Contudo, embora em menor proporção, outras rochas também estavam presentes naquele gigantesco caldeirão de magma pressurizado em que foi engendrado o nosso penedo. E são elas as responsáveis pelos caprichosos veios e estrias — tão característicos — que vemos atualmente ao logo de todo o rochedo.
Sujeita à erosão e ao intemperismo, a Ponta do Arpoador vem sofrendo todo tipo de transformação desde que novamente voltou à superfície há cerca de 150 milhões de anos.
Nas pedras do paredão oeste, por exemplo, lado no qual prevalecem os ventos, encontramos grandes cavidades arredondadas, criadas por redemoinhos de sais cristalizados e outras partículas aéreas, que nos dão uma boa amostra de como os gigantes de pedra do planeta Terra — aparentemente eternos — acabam literalmente transformados em poeira pela ação dos elementos. Já nos paredões voltados para o mar, verificamos o desgaste das rochas causado pelo impacto das ondas. O próprio calor do sol exerce efeito sobre aquele conjunto de pedras, criando microfissuras nas rochas e permitindo a infiltração de sais, areia e raízes que pouco a pouco vêm desagregando as suas rochas e alterando suas características morfológicas. E até mesmo a vida animal, passageira que seja, também contribui para a mudança, como é o caso dos curiosos orifícios produzidos por ouriços — criaturas hoje erradicadas pela poluição marinha — que podemos ver em diversos pontos do penedo.
É muito provável que, em um espaço de tempo relativamente curto, a Ponta do Arpoador não mais exista. Muito em breve, seus minerais acabarão transformados, dissolvidos, erodidos e espalhados pela ação dos elementos. E nada mais restará de sua memória.
Certamente não estaremos vivos a essa altura. De nosso ponto de vista, em nossa escala de tempo, aquele elegante rochedo à beira mar continuará a ser o que sempre foi. E sempre permanecerá ali onde está. E continuaremos a mergulhar, passear, pescar, namorar e fazer piqueniques em suas encostas. E continuaremos a admirar dali o pôr do sol, emoldurado pelas imponentes formações rochosas da Gávea, do Dois Irmãos e do Maciço da Tijuca, alheios ao fato de que, do ponto de vista da Geologia, tais gigantes de pedra, aparentemente eternos, são tão recentes e efêmeros quanto gotas de orvalho ao sol da manhã.

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Fontes: Anuário do Instituto de Geociências da UFRJ, “O Gnaisse Facoidal: a mais Carioca das Rochas”, vol. 31-2 / 2008, p. 9-22; Dicionário Enciclopédico Livre de Geociências, “Ponta do Arpoador” em http://www.dicionario.pro.br 

domingo, 6 de maio de 2012

Cozido de domingo


Estrelando: carne bovina, lombo salgado, linguiça portuguesa, linguiça calabresa, linguiça mineira, abóbora, cenoura, repolho, batata, batata baroa, nabo, cebola, quiabo, couve, jiló, quiabo, banana da terra, pimenta dedo de moça...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

O pior erro da humanidade


À CIÊNCIA DEVEMOS MUDANÇAS dramáticas em nossa presunçosa auto-imagem. A astronomia nos ensinou que a Terra não é o centro do universo, mas apenas um entre  milhares de milhões de corpos celestes. Da biologia aprendemos que não fomos especialmente criados por Deus, mas que evoluímos com milhões de outras espécies. Agora, a arqueologia está demolindo outra sagrada convicção: a de que a trajetória da humanidade ao longo dos últimos milhões de anos tem sido uma longa história de progresso. Em particular, descobertas recentes sugerem que a adoção da agricultura, supostamente nosso passo mais decisivo em direção a uma vida melhor, foi de muitas formas uma catástrofe da qual nunca nos recuperamos. Com a agricultura veio a grande desigualdade social e sexual, as doenças e o despotismo, que amaldiçoaram a nossa existência.
A princípio, as evidências contra tal interpretação revisionista podem parecer irrefutáveis para os norte-americanos do século XX. Em quase todos os aspectos, estamos melhores do que as pessoas da Idade Média, que tiveram mais facilidades do que os homens das cavernas, que por sua vez estavam em melhor situação do que os macacos. Basta avaliar as nossas vantagens. Desfrutamos de alimentos abundantes e variados, as melhores ferramentas e bens materiais, as vidas mais longas e saudáveis da história. A maioria de nós está a salvo da fome e de predadores. Tiramos a nossa energia do petróleo e das máquinas, não de nosso suor. Qual neo-ludita entre nós trocaria a sua vida pela de um camponês medieval, de um homem das cavernas, ou a de um macaco?
Durante a maior parte de nossa existência, sobrevivemos através da caça e da coleta: caçamos animais selvagens e recolhemos plantas silvestres. Era uma vida que os filósofos têm tradicionalmente considerado como árdua, embrutecida e curta. Uma vez que nenhuma comida era cultivada e pouca era armazenada, não existia (nesta visão) nenhum alívio para a luta, renovada a cada dia na busca de alimentos silvestres para saciar a fome. Só saímos desta miséria há 10 mil anos, quando, em diferentes partes do mundo, os seres humanos começaram a domesticar plantas e animais. A propagação da revolução agrícola foi quase universal e, atualmente, sobrevivem apenas algumas poucas tribos de caçadores-coletores.
Da perspectiva progressista em que eu fui educado, perguntar “por que quase todos os nossos ancestrais caçadores-coletores adotaram a agricultura?” soa como uma tolice. Claro que a adotaram porque a agricultura é uma maneira eficiente de obter mais comida com menos trabalho. As plantações rendem muito mais toneladas por hectare do que a coleta de raízes e bagas silvestres. Basta imaginar um bando de selvagens, cansados de procurar nozes e perseguir animais selvagens, encontrando pela primeira vez um pomar carregado de frutas ou um pasto repleto de ovelhas. Quantos milissegundos você acredita que levariam para avaliar as vantagens da agricultura?
Os argumentos progressistas vão ainda mais longe, dando à agricultura o crédito pelo notável florescimento da arte ocorrido nos últimos milhares de anos. Como os alimentos podiam ser armazenados, e uma vez que levava menos tempo colher a comida em uma horta do que encontrá-la na natureza, a agricultura deu-nos um tempo livre que nenhum caçador-coletor jamais dispusera. Foi assim que a agricultura nos permitiu construir o Partenon e compor a Missa em Si-minor
Embora o argumento progressista pareça incontestável, é difícil de ser comprovado. Como é possível demonstrar que a vida das pessoas melhorou há 10 mil anos, quando abandonamos a caça e a coleta em troca da agricultura? Até recentemente, os arqueólogos tiveram de recorrer a provas indiretas, cujos resultados (surpreendentemente) não conseguiram sustentar a visão progressista. Eis um exemplo de um teste indireto: os caçadores-coletores do século XX estão em condições muito piores do que os agricultores? Espalhadas por todo o mundo, dezenas de grupos de chamados povos primitivos, como os bosquímanos do Kalahari, continuam a subsistir dessa forma. Acontece que esses povos têm mais tempo de lazer, podem dormir mais e trabalhar menos do que seus vizinhos agricultores. Por exemplo, o tempo médio dedicado para obter comida é de apenas 12 a 19 horas semanais para um grupo de bosquímanos, e 14 horas ou menos para os nômades hadza da Tanzânia. Ao ser perguntado por que não imitaram as tribos vizinhas adotando a agricultura, um bosquímano replicou: “Por que deveríamos, quando existem tantas nozes mongongo no mundo?”
Enquanto os agricultores se concentram em culturas ricas em carboidratos, como arroz e batatas, a variedade de plantas e animais selvagens nas dietas dos caçadores-coletores sobreviventes oferece mais proteína e um melhor equilíbrio de outros nutrientes. Em um estudo, verificou-se que o consumo alimentar médio diário de um bosquímano (durante um mês em que a comida é abundante) era de 2.140 calorias e 93 gramas de proteína, consideravelmente maior do que a dose diária recomendada para pessoas de seu tamanho. É quase inconcebível que os bosquímanos, que se alimentam de 75 ou mais plantas silvestres, possam morrer de fome como centenas de milhares de fazendeiros irlandeses e suas famílias morreram durante a escassez de batata na década de 1840.
Portanto, a vida dos caçadores-coletores sobreviventes não é desagradável e brutal, embora os agricultores os tenha empurrado para alguns dos piores lugares do mundo, Mas as sociedades caçadoras-coletoras atuais, que viveram ombro a ombro com as sociedades agrícolas durante milhares de anos não nos dizem muito sobre as condições de vida antes da revolução agrícola. Em realidade, a visão progressista se refere a um passado distante, alegando que a vida dos povos primitivos melhorou quando passaram da coleta para a agricultura. Os arqueólogos podem datar essa mudança distinguindo vestígios de plantas e animais selvagens de espécies domesticadas em depósitos de lixo pré-históricos.
Como descobrir como era a saúde dos fabricantes de lixo pré-históricos, e, assim, testar diretamente a visão progressista? Essa questão só se tornou solucionável nos últimos anos — em parte através de novas técnicas de paleopatologia, que é o estudo de vestígios de doenças em restos mortais de povos antigos.
Em algumas situações, o paleopatologista tem quase tanto material para estudar quanto um patologista atual. Por exemplo, os arqueólogos nos desertos chilenos encontraram múmias tão bem preservadas, que puderam determinar por necropsia suas condições médicas à época de sua morte (Discover, outubro). E fezes de índios há muito falecidos, que viviam em cavernas secas em Nevada, permanecem suficientemente bem preservadas para serem examinadas em busca de vermes e outros parasitas.
Geralmente, os únicos restos mortais disponíveis para estudo são esqueletos, mas esses permitem um número surpreendente de deduções. Para começar, um esqueleto revela o sexo do seu dono, peso e idade aproximada. Nos poucos casos onde existem muitos esqueletos, é possível construir tabelas de mortalidade como as que as empresas de seguro de vida usam para calcular tempo de vida estimado e risco de morte em qualquer idade. Os paleopatologistas também podem calcular taxas de crescimento medindo os ossos de pessoas de diferentes idades, examinar dentes em busca de defeitos no esmalte (sinais de desnutrição na infância), e reconhecer marcas deixadas nos ossos pela anemia, tuberculose, lepra e outras doenças.
Um exemplo simples do que um paleopatologista pode descobrir com esqueletos diz respeito a mudanças históricas na estatura dos indivíduos. Esqueletos descobertos na Grécia e na Turquia demonstram que a altura média dos caçadores-coletores até o final das eras do gelo era de generosos 1,75m para os homens, e 1,65m para as mulheres. Com a adoção da agricultura, a altura declinou e, por volta de 3 mil a.C., havia alcançado uma baixa de 1,60m para os homens, e 1,52m para as mulheres. Durante o período clássico, as alturas voltaram a crescer muito lentamente, mas gregos e turcos modernos ainda não recuperaram a altura média dos seus distantes antepassados​​.
Outro exemplo de paleopatologia é o estudo de esqueletos de túmulos indígenas nos vales dos rios Ohio e Illinois. Em Dickson Mounds, próximo à confluência dos rios Spoon e Illinois, os arqueólogos escavaram cerca de 800 esqueletos que dão uma idéia das mudanças na saúde ocorridas quando uma cultura de caçadores-coletores dá lugar à agricultura intensiva de milho, por volta do ano 1150 a.D. Estudos realizados por George Armelagos e seus colegas da Universidade de Massachusetts demonstram que esses primeiros fazendeiros pagaram um preço por aquele modo de subsistência recém-descoberto. Comparado com os caçadores-coletores que os precederam, os agricultores tiveram um aumento de quase 50 por cento em defeitos no esmalte dos dentes, indicativos de desnutrição, um aumento de quatro vezes na anemia por deficiência de ferro (comprovado por uma condição óssea chamada hiperostose porótica), um aumento em lesões ósseas que refletem doenças infecciosas em geral, e um aumento em condições degenerativas da coluna, provavelmente refletindo excessivo esforço físico. “A expectativa de vida na comunidade pré-agrícola era de 26 anos”, diz Armelagos, “mas, na comunidade pós-agrícola, baixou para 19 anos. Tais episódios de estresse nutricional e doenças infecciosas afetaram seriamente a sua capacidade de sobrevivência. “
As evidências sugerem que os índios de Mounds Dickson, assim como muitos outros povos primitivos, adotaram a agricultura não por escolha, mas por necessidade, a fim de alimentar seu constante crescimento populacional. “Creio que a maioria dos caçadores-coletores só passou a cultivar porque não tinha mais escolha, e que, ao optar pela agricultura, negociaram qualidade por quantidade,” diz Mark Cohen da Universidade Estadual de Nova Iorque em Plattsburgh, co-editor, com Armelagos, de um dos livros seminais nesta área, Paleopatologia nas Origens de Agricultura. “Quando lancei este argumento há dez anos, muitas pessoas discordaram. Agora, tornou-se um lado respeitável, embora controvertido, do debate.”
Há pelo menos três conjuntos de razões para explicar por que a agricultura foi prejudicial à saúde humana. Primeiro, os caçadores-coletores desfrutavam de uma dieta variada, enquanto que os primeiros agricultores obtinham a maior parte de seus alimentos a partir de um ou de alguns poucos cultivos amiláceos. Os agricultores ganharam calorias baratas à custa da má nutrição, (atualmente, apenas três plantas com alto teor de carboidratos — trigo, arroz e milho — fornecem a maior parte das calorias consumidas pela espécie humana, mas cada uma é deficiente em certas vitaminas ou aminoácidos essenciais para a vida.) Em segundo lugar, devido à dependência de um número limitado de culturas, os agricultores corriam o risco de morrerem de fome caso uma colheita não vingasse. Finalmente, o simples fato da agricultura ter encorajado as pessoas a se aglutinarem em sociedades numerosas, muitas das quais faziam comércio com outras sociedades numerosas, levou à disseminação de parasitas e doenças infecciosas. (Alguns arqueólogos acreditam que foi a aglomeração, e não a agricultura, que promoveu a doença, mas este é o um argumento do tipo quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo, porque a aglomeração incentivou a agricultura e vice-versa.) As epidemias não vingavam quando as populações estavam dispersas em pequenos grupos que mudavam constantemente seu local de acampamento. A tuberculose e as doenças diarréicas tiveram de aguardar o surgimento da agricultura; o sarampo e a peste bubônica tiveram de esperar o aparecimento das grandes cidades.
Além da desnutrição, da fome e das epidemias, a agricultura ajudou a trazer outra maldição sobre a humanidade: profundas divisões de classes sociais. Caçadores-coletores têm pouca ou nenhuma comida armazenada, e não possuem fontes de alimentos concentrados, como um pomar ou um rebanho de vacas: vivem das plantas e animais selvagens que obtêm a cada dia. Portanto, não pode haver nenhum rei, nenhuma classe de parasitas sociais que engordem a custa de alimentos apreendidos dos outros. Apenas em uma sociedade agrícola uma elite saudável e improdutiva pode se impor às massas assoladas pelas doenças. Esqueletos dos túmulos gregos de Micenas c. 1500 a.C. sugerem que a realeza gozava de uma dieta muito melhor do que as pessoas comuns, uma vez que os esqueletos reais eram de seis a nove centímetros mais altos e tinham dentes melhores (em média, um em vez de seis cáries ou dentes perdidos). Entre múmias chilenas do ano 1000 d.C., a elite se distinguia não apenas por seus ornamentos de ouro como também por uma taxa quatro vezes menor de lesões ósseas provocadas por doenças.
Contrastes semelhantes em nutrição e saúde persistem atualmente em escala global. Para os povos de países ricos como os EUA, soa ridículo exaltar as virtudes da caça e da coleta. Mas os americanos são uma elite, dependente do petróleo e dos minerais que freqüentemente têm de ser importados de países com piores condições de saúde e nutrição. Se fosse possível escolher entre ser um lavrador da Etiópia ou um bosquímano coletor no Kalahari, qual você acha que seria a melhor escolha?
A agricultura também pode ter incentivado a desigualdade entre os sexos. Livres da necessidade de transportar os seus bebês durante uma existência nômade, pressionadas para produzirem mais mãos para lavrar os campos, as mulheres agrícolas tendem a ter gestações mais freqüentes do que as caçadoras-coletoras — com conseqüente dano para a sua saúde. Entre as múmias chilenas, por exemplo, as mulheres apresentavam mais lesões ósseas causadas por doenças infecciosas do que os homens.
Ocasionalmente, as mulheres eram feitas bestas de carga nas sociedades agrícolas. Em comunidades da Nova Guiné atual, freqüentemente vejo mulheres cambaleando sob cargas de legumes e lenha enquanto os homens caminham de mãos vazias. Certa vez, durante uma viagem de campo estudando pássaros, ofereci pagar alguns aldeões para transportarem suprimentos de uma pista de pouso até o meu acampamento na montanha. O item mais pesado era um saco de 110 quilos de arroz, que eu amarrei a uma vara que seria transportada por uma equipe de quatro homens. Quando finalmente alcancei o grupo, vi que os homens transportavam cargas leves, enquanto que uma mulher pequena, que pesava menos do que o saco de arroz que carregava, suportava todo o peso através de uma corda ao redor da testa.
Quanto à alegação de que a agricultura incentivou o florescimento da arte, fornecendo-nos tempo de lazer, sabemos que os modernos caçadores-coletores têm tanto tempo livre quanto os fazendeiros. Toda a ênfase no tempo de lazer como um fator crítico parece-me equivocada. Se desejassem, os gorilas teriam tempo livre suficiente para construir o seu próprio Partenon. Embora os avanços tecnológicos pós-agrícolas tenham possibilitado novas formas de arte e facilitado a sua preservação, grandes pinturas e esculturas já estavam sendo produzidos por caçadores-coletores há 15 mil anos, e ainda eram produzidas no século passado por algumas tribos de esquimós e índios do noroeste do Pacífico.
Assim, com o advento da agricultura, a elite ficou em melhor situação, mas a situação da maioria piorou. Em vez de aceitarmos o argumento progressista de que escolhemos a agricultura porque era boa para nós, devemos nos perguntar como fomos aprisionados por ela, apesar de todas as suas armadilhas.
Uma resposta resume-se ao ditado “o poder determina a razão”. A agricultura poderia sustentar muito mais pessoas do que a caça, embora com uma pior qualidade de vida. (Densidades populacionais de caçadores-coletores raramente são maiores do que uma pessoa por dois mil metros quadrados, enquanto que a média de agricultores é 100 vezes maior.) Parcialmente, isso ocorre porque um campo plantado permite alimentar mais bocas do que uma floresta com plantas comestíveis dispersas. Em parte, também, porque os caçadores-coletores nômades só podiam ter filhos em intervalos de quatro anos, o que obtinham através de infanticídio e outros meios, já que uma mãe precisava carregar o filho até que a criança tivesse idade suficiente para acompanhar os adultos. Uma vez que as mulheres das sociedades agrícolas não têm de carregar esse fardo, podem e muitas vezes têm um filho a cada dois anos.
Com o fim das eras glaciais, as densidades populacionais de caçadores-coletores subiram lentamente e os bandos tiveram de escolher entre alimentar mais bocas, dando os primeiros passos em direção à agricultura, ou encontrar maneiras de limitar o crescimento populacional. Alguns bandos escolheram a primeira solução, incapazes de antecipar os males da agricultura, e seduzidos pela abundância passageira que gozavam até o crescimento populacional superar a produção de alimentos. Esses bandos procriaram e, posteriormente,  expulsaram ou mataram os bandos que optaram por permanecer caçadores-coletores, porque cem agricultores mal nutridos ainda podiam superar um caçador saudável. Os caçadores-coletores não abandonaram o seu estilo de vida, mas aqueles que foram sensíveis o bastante para não abandoná-lo foram expulsos de todos os territórios, exceto aqueles que os agricultores não queriam.
Neste ponto é instrutivo lembrar a queixa comum de que a arqueologia é um luxo, preocupada com o passado remoto, e que não oferece lições para o presente. Arqueólogos que estudam a origem da agricultura reconstruíram uma fase crucial em que cometemos o pior erro na história humana. Forçados a escolher entre limitar a população ou tentar aumentar a produção de alimentos, optamos por esta última e acabamos com a fome, a guerra, e a tirania.
Os caçadores-coletores praticaram o estilo de vida mais bem sucedido e duradouro da história humana. Em contraste, nós ainda estamos lutando com a bagunça em que a agricultura nos meteu, e não está claro se conseguiremos resolvê-lo. Imagine um arqueólogo de outro planeta tentando explicar a história humana para seus companheiros extraterrestres. Ele poderia ilustrar os resultados de suas escavações através de um relógio de 24 horas em que uma hora representasse 100 mil anos. Se a história da espécie humana tivesse começada à meia-noite, estaríamos então quase no fim do primeiro dia. Vivemos como caçadores-coletores quase todo esse dia e só adotamos a agricultura às 23h54. Será que a fome que atinge os camponeses gradualmente se espalhará para abranger a todos nós à medida que nos aproximamos de nossa segunda meia-noite? Ou será que conseguiremos de algum modo alcançar as bênçãos sedutoras que imaginamos haver por trás da fachada resplandecente da agricultura, e que até agora só nos iludiu?

Jared Diamond, “The Worst Mistake in the History of the Human Race,” Discover Magazine, maio de 1987, pgs. 64-66. Tradução de Alexandre Raposo.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Explode coração



Em 1996, a Rede Globo levou ao ar as novelas Explode coração e Quem é você, nas quais protagonizavam dois personagens de muito apelo popular: respectivamente, a cigana Dara e o executivo Yuri. Por essa mesma época, entraram em nossas vidas um casal de filhotes de gatos siameses, ambos extremamente magros e desnutridos, resgatados de uma situação infame da qual agora não me recordo em detalhes. Nenhum dos dois parecia que sobreviveria muito tempo e, confirmando as nossas expectativas, o macho, Yuri, que chegara a ganhar peso e parecia ter superado as agruras de seus primeiros meses de vida, morreu pouco depois, vítima de uma panleucopenia súbita, devastadora e fulminante que o levou ao cabo de alguns breves e misericordiosos segundos de agonia.

Mas Dara sobreviveu. E esteve conosco até hoje à tarde. Foram muitos anos de uma deliciosa convivência, na qual ela nos ensinou muito a respeito de coragem, dignidade, respeito ao próximo e, obviamente, carinho e amor ilimitados. Dara foi uma guerreira até o fim. E lutou mais de seis anos contra a inexorabilidade de um par de rins deficientes que, entretanto, não impediam que ela continuasse a ser uma gata linda e orgulhosa, capaz de fazer todas as coisas que os gatos devem fazer para continuarem a ser gatos. Continuava a ser respeitada por todos os animais da casa, inclusive pelos cães, como a matriarca, a sócia fundadora de nossa Arca de Noé.

Anteontem, entretanto, ela parou de comer e beber água e, apesar de ainda ser capaz de se levantar de sua cama e, tropegamente, se arrastar até a bandeja sanitária para fazer as suas necessidades ou ir até a varanda para tomar o seu sol matinal, também nos deixou muito claro, através de miados e gemidos pungentes, que estava sofrendo muito mais do que seu aristocrático orgulho era capaz de dissimular.

Foi uma decisão difícil. Em minha mente, nunca consegui resolver muito bem a questão da eutanásia de animais, embora a de seres humanos me pareça muito mais simples de ser resolvida, aceita e assimilada. Afinal, seres humanos sabem que vão morrer e, caso desejem abreviar as suas existências, podem deixar isso bem claro, seja em um documento, um murmúrio ao pé do catre ou, até mesmo, através de um olhar de súplica e desespero lançado para a pessoa certa no momento adequado.

Por conta dessa parada mal resolvida em minha mente, deixei que três de meus gatos mais queridos tivessem mortes excruciantemente dolorosas, memórias das quais procuro fugir  a todo custo mas que ainda me assombram e atormentam noite e dia passados tantos anos.

Eu não queria que Dara passasse pela mesma provação, mas, por outro lado, não me sentia capaz de determinar o fim da vida de um animal que certamente, e apesar de toda dor que deveria estar sentindo, não desejava morrer. Na última vez em que eu a vi, e apesar de muito trêmula e emitindo miados quase inaudíveis de tão doloridos, ela estava sentada na grama do jardim, cabeça erguida, ainda procurando apreender o que ocorria à sua volta. Ainda tentando sobreviver. E com dignidade.

Coube à minha mulher, que era a verdadeira “dona” de Dara — isso, é claro, se você for ingênuo o suficiente para crer que gatos podem ter donos —   e que, como toda mulher, tem o instinto e o sangue frio para encarar de frente a crueldade dos fatos da vida, tomar a decisão definitiva.

E, apesar de todas as minhas dúvidas, todo o meu egoísmo, toda a minha covardia, não tenho como negar que sinto uma ponta de orgulho ao saber que Dara morreu como sempre viveu: senhora de si, orgulhosa de quem era, e com a cabeça erguida, como cabe a um gato honrado.

Gostaria de encerrar esta elegia com uma frase que ouvi há muito tempo e da qual, infelizmente não me lembro o autor, mas que reproduz com fidelidade o que estou sentindo no momento: “O Paraíso não será o Paraíso se, ao lá chegar, meus gatos não estiverem esperando por mim.”

Adeus, Dara. E obrigado por tudo o que você nos ensinou nesses últimos 16 anos.


domingo, 25 de março de 2012

Carroll e Alice



Em uma bela tarde de verão, em plena Inglaterra Vitoriana, o reverendo Charles Lutwidge Dodgson, professor de matemática de uma das mais conceituadas escolas de Oxford, e seu amigo, o reverendo Robinson Duckworth, acompanharam as três filhas do deão Henry George Liddell, capelão do príncipe George, em um longo passeio de bote até o povoado de Godstow. No meio do caminho, à sombra de um frondoso carvalho à margem do rio Cherwell, as meninas Charlotte, de 13 anos, Alice Pleasance, de 10, e Edith, de 8, testemunharam a criação de uma das maiores obras da literatura universal enquanto ouviam, embevecidas, às incríveis Aventuras de Alice no País das Maravilhas, narradas de improviso pelo reverendo Dodgson, aliás, o genial escritor Lewis Carroll, então com 30 anos de idade.
 “Tomamos chá à beira do rio e não voltamos para a Igreja de Cristo antes de quinze para as oito, quando as convidei aos meus aposentos para verem a minha coleção de microfotografias. Só as levamos de volta para o decanato por volta das nove horas.” Assim Carroll registrou o passeio em seu diário, no dia 4 de julho de 1862. Em uma inserção posterior, acrescentou: “Ocasião em que lhes narrei as aventuras de Alice”. Foi a pedido da própria Alice Pleasance que Carroll escreveu e ilustrou o primeiro manuscrito daquela história inventada em uma rara tarde de sol londrina.
Num estilo elegante, repleto de fino senso de humor e ironia, pleno de trocadilhos e sutilezas intraduzíveis, Carroll conseguiu escrever um conto de fadas que aliava o fantástico à crítica social, e que vem encantando crianças e adultos já há mais de 120 anos. Da mesma forma que escapou à rígida censura vitoriana — que não conseguiu perceber na obra nítidas alusões e veladas críticas à realeza britânica e à sociedade puritana da época — a obra permaneceu relativamente imune a uma análise psicológica mais profunda até bem recentemente, quando a visão freudiana lançou seus holofotes sobre suas possíveis interpretações. E o excêntrico criador de Alice surpreendeu mais uma vez.
Segundo a escritora inglesa Virgínia Woolf, “o reverendo Dodgson não teve vida”. A princípio, a afirmação pode parecer muito severa. Contudo, seus diários e cartas, assim como o depoimentos de seus contemporâneos, não deixam dúvidas de que ele era um homem extremamente tímido e solitário, cuja introversão induziu a uma quase completa sublimação de sua vida sexual. Carroll era misógino e, à exceção de um pequeno affair com a famosa atriz Ellen Terry, nunca demonstrou interesse por mulher alguma. Sua obsessão eram as jovens filhas da nobreza vitoriana, meninas cujas idades variavam dos 7 aos 17 anos e a quem ele dedicava o seu mais profundo amor platônico.
Adorava entretê-las com histórias fantásticas, brincadeiras, mágicas e quebra-cabeças. Segundo Irene Barnes, belíssima atriz de 15 anos com quem Lewis Carroll passou uma semana em uma casa de praia, “ele tinha um profundo amor pelas crianças, embora eu esteja inclinada a acreditar que não as entendia muito bem. Seu maior prazer era me ensinar seu Jogo da Lógica, o que tornava as tardes bastante aborrecidas”.
Carroll tinha também o hábito de fotografar suas amiguinhas vestidas com trajes de época ou em farrapos — lembrando as crianças vadias dos romances de Dickens — em cenários produzidos no estúdio de casa. 
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente  ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
Carroll fotografou uma infinidade de pequenas modelos. Entretanto, nenhuma lhe falou tão alto ao coração quanto a bela Alice Pleasance Lidell , sua aluna, musa e paixão — a menina que lhe inspirou um dos mais belos contos de fadas de todos os tempos. “Já tive muitas amiguinhas, mas nenhuma igual a você”, escreveu certa vez. De fato, os vários passeios que fez em companhia da filha do deão Liddell marcaram-no para sempre. “Muitos anos se passaram desde aquela tarde dourada, mas ainda me lembro como se fosse ontem: lá em cima, o céu azul e sem nuvens, o espelho d'água do rio, o barco seguindo placidamente o seu caminho, e aqueles três rostinhos ansiosos de notícias da terra das maravilhas.” 
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Carroll conheceu Alice quando ela tinha apenas 7  anos. Ele foi seu professor, amigo e correspondente. Segundo a biógrafa Anne Clark, Alice Liddell tipificava a essência da mulher vitoriana. Freqüentava os melhores colégios, vestia as melhores roupas, gostava de música, desenho e pintura. Segundo Clark, “ela fazia o tipo de coisas que se faz quando temos criados para cuidar da gente.” Alice viveu uma época de abundância e teve tempo de sobra para apurar a sua cultura e desfrutar dos confortos e regalias do florescente Império Britânico.
Ao que tudo indica, no entanto, a mãe de Alice não aprovava a estranha relação entre sua filha e o reverendo, e passou a desencorajá-la. Em outubro de 1862, Carroll escreveu em seu diário: “Desde o episódio com Lorde Newry, eu não tenho mais a bênção da Sra. Liddell.” Seja lá o que possa ter acontecido nessa época, e seja lá quem tenha sido esse tal Lorde Newry, o fato é que ocorreu pouco tempo depois daquele antológico passeio de barco que W. H. Auden observou ter sido “um dos dias mais memoráveis da história da literatura”.
Desde então, Carroll e Alice só puderam se comunicar por escrito. O escritor escreveu copiosamente para sua jovem musa, mas todas essas cartas acabaram queimadas pela Sra. Liddell, disposta a pôr um fim ao excêntrico relacionamento. A partir daí, a única forma que Carroll encontrou para ver Alice foi através de uma pequena janela em uma das salas da biblioteca da Igreja de Cristo, que se abria para o jardim do decanato, lugar onde ela costumava jogar croquet. Ali, por tardes a fio, Carroll se perdeu em dedicada contemplação à menina de seus sonhos.
A psicanalista norte-americana Phyllis Greenacre afirma que Carroll possuía um complexo de Édipo mal resolvido. Segundo ela, é possível que o reverendo identificasse a mãe com as meninas, de modo que, em toda a trama do romance, Alice — e não a Rainha de Copas — representasse o real símbolo materno. Também assinala que a diferença de idade entre Alice e Carroll era quase a mesma que havia entre ele e sua mãe, e que esse tipo de inversão é muito comum.
Carroll era o filho mais velho de uma família numerosa, o que, segundo alguns biógrafos, pode ter provocado algum tipo de complexo de rejeição no escritor. Além disso, ele era gago, e esse defeito certamente o impediu de exercer a profissão de diácono e o fez tornar-se uma pessoa muito retraída. Vestia-se de preto, comia pouquíssimo e era extremamente reservado em ocasiões sociais. O pseudônimo com o qual assinava as suas obras literárias — ele só usava o nome verdadeiro em livros didáticos e tratados de matemática — lhe servia como escudo e era uma brincadeira, um jogo de traduções e re-traduções de seus dois primeiros nomes. Segundo o biógrafo Jean Gattegno, “a ausência total de celebridade que marcou seus 48 anos em Oxford não foi acaso nem escândalo: ele não pretendia se fazer notar, e  conseguiu. Oxford, assim como todos os outros meios que freqüentou, foi como um ponto de passagem e não de permanência. E, se o preço a pagar era o esquecimento, não há dúvida de que ele o tenha pago de bom grado. Lá, conheceu as benesses da obscuridade e as delícias do anonimato”.
Quando Alice Liddell já tinha 17 anos, Carroll encontrou-a por acaso no pátio da escola e não gostou do que viu. Devido às transformações da puberdade, ela perdera aquilo que mais apaixonara o escritor: sua encantadora pureza infantil. Em 1880, Carroll renunciou à fotografia e queimou toda a sua coleção de nus, guardando apenas as fotos em que as modelos estão vestidas e que, segundo ele, mereciam ser preservadas.
No último ano de vida, o reverendo Charles Dodgson recusou-se a receber todas as cartas que tivessem Lewis Carroll como destinatário. Morreu de gripe, no ano de 1898, sem nunca ter realizado o seu grande amor, deixando para o mundo o legado de sua obra genial. Para ele caberiam perfeitamente as últimas palavras do personagem Humbert Humbert, no romance Lolita, de Vladimir Nabokov: “Estou pensando em auroques e anjos, no segredo de duráveis pigmentos, no refúgio das artes; pois esta é a única imortalidade da qual poderemos compartilhar, minha Lolita.”

sexta-feira, 23 de março de 2012

Estudo


O profeta do Juízo Final (1984)


EM 1961, QUANDO O JOVEM DYLAN deixou Dinkytown, bairro estudantil de Minneapolis, em direção à Costa Leste dos Estados Unidos, ele pretendia realizar duas viagens diferentes, apesar de seguirem o mesmo itinerário. Em Nova Jersey, pretendia visitar o legendário Woody Guthrie, que estava internado em um hospital sofrendo do mal de Huntington. Woodie era um compositor popular de voz nasalada, e que costumava se apresentar com uma harmônica acoplada junto à boca. Suas músicas eram blues de protesto, que falavam de uma época de depressão, greves e injustiças sociais.
Vista sob esse ângulo, a viagem de Dylan tomava ares de uma peregrinação mística. Para ele, Guthrie era uma espécie de modelo e objeto de adoração. Por outro lado, Dylan almejava o fulgor cultural do Greenwich Village, bairro boêmio de Nova York, e chegava ainda em tempo de organizar a festa. A década do desvario mal começava e Bob Dylan, aos 19 anos, se colocava, quase involuntariamente, bem no olho do grande furacão que viria a seguir. Vista sob esse ponto de vista, sua viagem se aproximava mais de uma campanha política. Ele vinha para participar.
Certas pessoas possuem a capacidade de estar sempre nos lugares certos, às horas certas. Vai nisso um tanto de mérito e um tanto de sorte. Dylan era esse tipo de gente e possuía ambas as qualidades. Mas, quando chegou a Nova York e passou a fazer peregrinações regulares para visitar o mestre acamado, Dylan já trazia em si as sementes do Armagedon, da batalha do Juízo Final.
Bob Dylan tinha 6 seis anos quando sua família se mudou de Duluth, no estado de Minnesota, para a cidade de Hibbing, cuja principal atividade econômica era mineração de ferro, e que se orgulhava de ser “o maior buraco já feito pelo homem”. Em Hibbing, o velho Abraham Zimmerman, pai de Bob Dylan (então Robert Zimmerman) geria uma loja de ferragens. O menino viveu uma infância repleta de episódios românticos, tendo como pano de fundo as estradas de ferro, a vida dos mineiros, dos vagabundos de estrada... e suas músicas. Principalmente suas músicas.
Com 10 anos, Dylan já tocava piano e harmônica. Aos 12 conseguiu uma velha guitarra Sears Roebuck. Por essa época, estourava o rock’n’roll e Bill HaIley e Seus Cometas lançavam o Rock Around The Clock, trilha do filme Sementes da Violência. James Dean já agitava com sua furiosa rebeldia e Elvis Presley dava os primeiros passinhos. 
Bob Dylan se identificava especialmente com o estilo rebelde-rabioso de James Dean. A guitarra surrada e a motocicleta Harley Davidson eram seu atestado de fidelidade ideológica aos ídolos da época.
No jovem roqueiro da década de 50, há também quem encontre semelhanças e influências de Holden Caulfield, o personagem do romance O Apanhador no Campo de Centeio de J. D. Salinger.
Em 1950, Dylan deixou Hibbing e foi para o Colégio de Artes de Minneapolis, em Dinkytown. Ali, começou a freqüentar os café do bairro, como a Bastile e o St. Pauls Purple Union, verdadeiros focos de música folk e membros  da Beat Generation. Seguindo uma tendência da época, Dylan vendeu a velha guitarra e comprou um violão acústico. Como passava por uma fase de reformas, o jovem Robert Zimmerman aproveitou para mudar também o seu nome para Bob Dylan. Tanto a escolha do nome quanto os motivos da troca estão cercados de controvérsias e desmentidos, embora muitos acreditem que objetivasse esconder sua origem judaica.
Portanto, ao chegar a Nova York nos primórdios da década de 60, Dylan já vinha com uma sólida herança de rebeldia e com os fundamentos de todos os movimentos que engendraria ou dos quais tomaria parte a seguir. Em Greenwich Village, imerso em um ambiente de grande concentração cultural, entre beatniks, grupos de música de protesto e artistas vanguardistas, Dylan tocou em clubes de música folk e fez o seu début profissional em abril de 1961, no Gerde’s Folk City. Na platéia, o crítico de música do New York Times, Robert Shelton, aplaudiu entusiasticamente. Pouco depois, Dylan assinou contrato com a Columbia, onde foi introduzido pelo crítico e produtor John Harnmond.
O primeiro disco, Bob Dylan, lançado em março de 1962, era uma coletânea de blues e folks populares, interpretados em seu estilo rascante e inconfundível. Entretanto, nas duas únicas músicas de sua autoria, Song to Woodie e Taikin’ New York, Dylan dava mostras do que pretendia fazer dali em diante: seguindo a mesma linha de Woodie Guthrie, ele levava o trabalho do mestre alguns passos além. 
O LP, entretanto, foi um retumbante fracasso e vendeu apenas cinco mil exemplares. O produtor John Hammond foi chamado às pressas pelo diretor-geral da Columbia, que afirmou: “Vamos ter de cancelar o nosso contrato com o tal Dylan.” Mas Hammond sabia o artista que tinha em mãos e foi categórico: “Só se for por cima do meu cadáver!” O fato é que, apesar do fracasso do disco, a Columbia insistiu e lançou o antológico The Freewheelin’ Bob Dylan no ano seguinte. O álbum incluía canções pacifistas e de protesto, tais como A Hard Rain Is Gonna Fall e Masters of War, todas de sua autoria. Entre elas, sobressaía o hit que se tornou o hino de toda uma geração, a música Blowin’ in the Wind. A versão gravada por Peter, Paul and Mary em compacto simples vendeu 320 mil exemplares em apenas uma semana. Dylan começava a se tornar uma lenda.
Com The Times They Are A-Changin’, ele retornou à carga com mais vigor. Atacou o racismo e o belicismo, e lançou o arcabouço filosófico da chamada contracultura. A faixa-título deste LP de 1964 prega: “Mães e pais de toda a nação, não critiquem o que não podem entender. Seus filhos e filhas estão além de seu controle. A antiga estrada de vocês está ficando velha rapidamente. Saiam da nova, se não conseguem ajudar em nada, porque os tempos estão mudando.”
A essa altura, as músicas de Dylan eram cantadas em todas as manifestações, passeatas e concentrações populares dentro e fora dos Estados Unidos. Personificavam a revolta das minorias e os anseios de grande parte dos jovens daquela época. Apregoavam a revolução iminente.
Dylan conheceu Albert Grossman, o empresário que o transformou em uma indústria. Por seu intermédio, Dylan foi apresentado a Sarah Lowndess, ex-modelo da revista Playboy americana, amiga de Allen Ginsberg (o poeta beat apologista do LSD), dada a esoterismos, estudiosa do zen budismo e do I-Ching. Sara morava com a filha no Chelsea Hotel, para onde Dylan se mudou com armas e bagagens. Acabaram se casando em novembro de 1965.
Com a excursão à Europa realizada ainda naquele ano, Dylan conheceu os Beatles, os Rolling Stones e The Animais. O rock inglês redespertou o seu gosto pelos instrumentos elétricos, que havia abandonado em troca do folk acústico. Com o álbum Bringing it All Back Home, Dylan começava a se desligar do movimento de protesto folk. Suas músicas se tornavam mais herméticas, com imagens delirantes, quase surrealistas. Mr. Tambourine Man, com suas guitarras elétricas, foi considerada oficialmente a primeira música folk rock da história.
Para desespero das patrulhas ideológicas do folk puro, Dylan lançava o álbum Highway 61 Revisited e o compacto simples Like a Rolling Stone, com o qual confirmava sua adesão ao rock. Ao se apresentar no Festival de Newport, Dylan foi agraciado com a maior vaia de sua vida, repetida logo após no Forest Hill Stadium. O público, enfurecido com a guinada radical do ídolo, gritava aos brados: “Queremos Dylan!” e “Traidor!” e exigia que ele cantasse os antigos sucessos. Mas, ao mesmo tempo em que desapontava a um público restrito e conservador, ganhava a atenção de milhares de adoradores do rock. Em fins de 1966, gravou o primeiro álbum duplo não antológico da história do rock, Blonde on Bonde, que ele mesmo considerou certa vez como um de seus trabalhos  mais completos e gratificantes.
Até então Dylan havia cumprido parte de sua jornada. Suas músicas refletiam, catalisavam e induziam à revolução generalizada da década. Foi revolucionário, inclusive, dentro de sua própria revolução, quando optou pela linguagem eletrificada do rock, em contraponto ao folk rural. Mas ainda faltava um longo caminho a ser percorrido.
Em julho de 1966, Dylan sofreu um grave acidente de motocicleta que quase lhe custou a vida. A absoluta falta de notícias a seu respeito induziu a suspeitas de que havia morrido. Entretanto, um ano depois, Dylan convocava os membros da The Band e realizava uma série de gravações no porão de sua casa, posteriormente editadas como The Basement Tapes. Até o dia 7 de maio de 1967, ninguém sabia onde Bob Dylan estava, qual o seu estado de saúde ou, mesmo, se estava vivo. Após uma busca persistente, o repórter Michael Lachetta do Daily News, localizou Dylan em um refúgio, a 160 quilômetros de Nova York, nas montanhas perto da colônia de arte de Woodstock. Lachetta encontrou um novo Dylan, mais calmo, fortalecido espiritualmente, ocupado com a poesia, a leitura e a música. “O que eu tenho feito”, declarou Dylan na ocasião, “é conversar com alguns amigos mais chegados, me informar a respeito do mundo exterior, ler livros sobre os quais você nunca ouviu falar, e pensar em meu destino. Principalmente, tenho trabalhado para realizar uma música melhor, pois, afinal de contas, ela é o sentido de minha existência.
Pouco tempo depois, no início de 1968, ele ressurgia com o álbum John Wesley Harding, que novamente surpreendeu os fãs.
A antiga agressividade panfletária havia sido substituída por uma pregação quase religiosa. Dylan se transformava novamente e, mesmo a sua voz, antes rascante, ficara mais suave. Dylan se defendia: “Não houve mudança alguma em modo de cantar; apenas deixei de fumar. Pare de fumar e você será capaz de cantar como Caruso.” O álbum seguinte, no entanto, Nashville Skyline lançado em 1969, confirmava haver mais na música de Dylan além de novos hábitos de saúde. O disco persistia no novo estilo — bem definido na faixa Lay Lady Lay — açucarado e dócil.
Os álbuns Self Portrait e New Morning antecederam a um outro período de silêncio e afastamento do compositor,  talvez ressentido com as críticas de Joan Baez e outros que o acusavam de alienação, participou do Concerto para Bangladesh, produzido por George Harrison, e do festival da Ilha de Wight. Apenas em 1974, apareceu com o álbum Planet Waves. Mais uma vez, os fãs não receberam com bons olhos o novo estilo adotado pelo ídolo; místico, defensor da resistência passiva, pregador dos princípios de tolerância e amor ao próximo.
Dylan passou os quatro anos seguintes procurando restabelecer os vínculos com seu público. Voltou a gravar antigos sucessos e retornou à canção de protesto com a música Hurricane, na qual defendia o ex-lutador de boxe Rubin Hurricane Carter, injustamente condenado por três crimes ocorridos em Nova Jersey.
Após uma experiência cinematográfica no filme Pat Garret and Billy The Kid, de Sam Peckinpah, Dylan decidiu  realizar o  próprio filme. Rodado em 1976, Renado and Clara foi lançado em 1978, com três horas e 52 minutos de duração. Escrito, dirigido e produzido por Dylan, o filme trata de uma relação amorosa triangular entre Renaldo — obviamente identificável como o próprio Bob Dylan — Clara — sua esposa Sarah — e a mulher de branco — personificando a cantora Joan Baez, com quem Dylan tivera um caso no início de sua carreira, ainda em Greenwich Village.
A nova fase se definiu claramente quando Dylan declarou que se convertera ao cristianismo. Aceitara Cristo em seu coração após uma visão: “Havia em meu quarto uma presença tão forte que não poderia ser ninguém mais além de Jesus Cristo.” Um ano antes desta declaração, Dylan já havia se divorciado de Sarah, que saiu do casamento com uma gorda indenização de 12,5 milhões de dólares. Entre as justificativas para o divórcio requerido, Sarah alegou que Dylan abrigara uma mulher no quarto de hóspedes de sua casa e que chegara ao descaramento de convidá-la à mesa para comer com o resto da família. Teria sido essa mesma mulher quem o convencera a se converter à Igreja Fundamentalista.
O   álbum Slow Train Coming, lançado em 78, pontilhado de gospels — música que faz parte dos cultos protestantes nas igrejas norte-americanas — era descaradamente fundamentalista. Saved, álbum editado em 1979, e Shot of Love, de 1981, persistiram na mesma linha religiosa que marcou essa última fase de sua carreira.
Hoje Bob Dylan está de volta. O álbum Infidels, lançado no Brasil agora em janeiro de 1984, ainda apresenta um Dylan fiel a Cristo, aferrado às mesmas doutrinas que propagou com Slow Train Coming, Saved e Shot of Love. Entretanto, durante as gravações de Infidels, Dylan declarou: “Religião é uma palavra suja. Não significa absolutamente nada. A Coca-Cola é uma religião. O petróleo é o aço são religiões. Em nome da religião as pessoas têm sido estupradas, assassinadas e pervertidas. A religião de hoje é a servidão de amanhã.”
Dylan também não se mostrou disposto a uma volta à canção de protesto. Ao ser questionado se o disco apresentaria alguma canção política, Dylan foi categórico: “Não escrevo canções políticas. Canções políticas são slogans. Nem mesmo sei o que é política. É como uma serpente com a cauda na boca, um carrossel de pecados.”
Mas em Infidels, contrariando o próprio compositor,  encontramos canções evangelizadas (como Man of Peace) mas também nos surpreendemos com outras altamente explosivas, de protesto e crítica ao estabelecido,  como Union Sundown. Ao ser posto contra a parede pelo repórter do semanário inglês New Musical Express, Dylan irritou-se: “As pessoas querem saber onde estou e qual é a minha, porque não sabem onde estão, nem qual é a delas.” 
De resto, Infidels nos apresenta um Bob Dylan amadurecido, capaz de, pela primeira vez, conciliar as duas grandes viagens que sempre empreendeu, paralelamente, ao longo da vida. De um lado, o compromisso com a crítica, com a revolução, com o engajamento político que caracterizou o Bob Dylan de princípios da década de 60. Por outro, o compromisso com a religiosidade, com o aprimoramento da alma, com o restabelecimento dos valores reais do caráter humano. O jovem rebelde iconoclasta cedeu lugar ao homem experiente, conhecedor dos mecanismos do poder, calmo e paciente, embora ainda combativo e contestador. Hoje, aos 42 anos de idade, Bob Dylan já sabe quantas estradas deve um homem percorrer antes que se possa chamá-lo, definitivamente, de um homem. 
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