sexta-feira, 23 de março de 2012

O profeta do Juízo Final (1984)


EM 1961, QUANDO O JOVEM DYLAN deixou Dinkytown, bairro estudantil de Minneapolis, em direção à Costa Leste dos Estados Unidos, ele pretendia realizar duas viagens diferentes, apesar de seguirem o mesmo itinerário. Em Nova Jersey, pretendia visitar o legendário Woody Guthrie, que estava internado em um hospital sofrendo do mal de Huntington. Woodie era um compositor popular de voz nasalada, e que costumava se apresentar com uma harmônica acoplada junto à boca. Suas músicas eram blues de protesto, que falavam de uma época de depressão, greves e injustiças sociais.
Vista sob esse ângulo, a viagem de Dylan tomava ares de uma peregrinação mística. Para ele, Guthrie era uma espécie de modelo e objeto de adoração. Por outro lado, Dylan almejava o fulgor cultural do Greenwich Village, bairro boêmio de Nova York, e chegava ainda em tempo de organizar a festa. A década do desvario mal começava e Bob Dylan, aos 19 anos, se colocava, quase involuntariamente, bem no olho do grande furacão que viria a seguir. Vista sob esse ponto de vista, sua viagem se aproximava mais de uma campanha política. Ele vinha para participar.
Certas pessoas possuem a capacidade de estar sempre nos lugares certos, às horas certas. Vai nisso um tanto de mérito e um tanto de sorte. Dylan era esse tipo de gente e possuía ambas as qualidades. Mas, quando chegou a Nova York e passou a fazer peregrinações regulares para visitar o mestre acamado, Dylan já trazia em si as sementes do Armagedon, da batalha do Juízo Final.
Bob Dylan tinha 6 seis anos quando sua família se mudou de Duluth, no estado de Minnesota, para a cidade de Hibbing, cuja principal atividade econômica era mineração de ferro, e que se orgulhava de ser “o maior buraco já feito pelo homem”. Em Hibbing, o velho Abraham Zimmerman, pai de Bob Dylan (então Robert Zimmerman) geria uma loja de ferragens. O menino viveu uma infância repleta de episódios românticos, tendo como pano de fundo as estradas de ferro, a vida dos mineiros, dos vagabundos de estrada... e suas músicas. Principalmente suas músicas.
Com 10 anos, Dylan já tocava piano e harmônica. Aos 12 conseguiu uma velha guitarra Sears Roebuck. Por essa época, estourava o rock’n’roll e Bill HaIley e Seus Cometas lançavam o Rock Around The Clock, trilha do filme Sementes da Violência. James Dean já agitava com sua furiosa rebeldia e Elvis Presley dava os primeiros passinhos. 
Bob Dylan se identificava especialmente com o estilo rebelde-rabioso de James Dean. A guitarra surrada e a motocicleta Harley Davidson eram seu atestado de fidelidade ideológica aos ídolos da época.
No jovem roqueiro da década de 50, há também quem encontre semelhanças e influências de Holden Caulfield, o personagem do romance O Apanhador no Campo de Centeio de J. D. Salinger.
Em 1950, Dylan deixou Hibbing e foi para o Colégio de Artes de Minneapolis, em Dinkytown. Ali, começou a freqüentar os café do bairro, como a Bastile e o St. Pauls Purple Union, verdadeiros focos de música folk e membros  da Beat Generation. Seguindo uma tendência da época, Dylan vendeu a velha guitarra e comprou um violão acústico. Como passava por uma fase de reformas, o jovem Robert Zimmerman aproveitou para mudar também o seu nome para Bob Dylan. Tanto a escolha do nome quanto os motivos da troca estão cercados de controvérsias e desmentidos, embora muitos acreditem que objetivasse esconder sua origem judaica.
Portanto, ao chegar a Nova York nos primórdios da década de 60, Dylan já vinha com uma sólida herança de rebeldia e com os fundamentos de todos os movimentos que engendraria ou dos quais tomaria parte a seguir. Em Greenwich Village, imerso em um ambiente de grande concentração cultural, entre beatniks, grupos de música de protesto e artistas vanguardistas, Dylan tocou em clubes de música folk e fez o seu début profissional em abril de 1961, no Gerde’s Folk City. Na platéia, o crítico de música do New York Times, Robert Shelton, aplaudiu entusiasticamente. Pouco depois, Dylan assinou contrato com a Columbia, onde foi introduzido pelo crítico e produtor John Harnmond.
O primeiro disco, Bob Dylan, lançado em março de 1962, era uma coletânea de blues e folks populares, interpretados em seu estilo rascante e inconfundível. Entretanto, nas duas únicas músicas de sua autoria, Song to Woodie e Taikin’ New York, Dylan dava mostras do que pretendia fazer dali em diante: seguindo a mesma linha de Woodie Guthrie, ele levava o trabalho do mestre alguns passos além. 
O LP, entretanto, foi um retumbante fracasso e vendeu apenas cinco mil exemplares. O produtor John Hammond foi chamado às pressas pelo diretor-geral da Columbia, que afirmou: “Vamos ter de cancelar o nosso contrato com o tal Dylan.” Mas Hammond sabia o artista que tinha em mãos e foi categórico: “Só se for por cima do meu cadáver!” O fato é que, apesar do fracasso do disco, a Columbia insistiu e lançou o antológico The Freewheelin’ Bob Dylan no ano seguinte. O álbum incluía canções pacifistas e de protesto, tais como A Hard Rain Is Gonna Fall e Masters of War, todas de sua autoria. Entre elas, sobressaía o hit que se tornou o hino de toda uma geração, a música Blowin’ in the Wind. A versão gravada por Peter, Paul and Mary em compacto simples vendeu 320 mil exemplares em apenas uma semana. Dylan começava a se tornar uma lenda.
Com The Times They Are A-Changin’, ele retornou à carga com mais vigor. Atacou o racismo e o belicismo, e lançou o arcabouço filosófico da chamada contracultura. A faixa-título deste LP de 1964 prega: “Mães e pais de toda a nação, não critiquem o que não podem entender. Seus filhos e filhas estão além de seu controle. A antiga estrada de vocês está ficando velha rapidamente. Saiam da nova, se não conseguem ajudar em nada, porque os tempos estão mudando.”
A essa altura, as músicas de Dylan eram cantadas em todas as manifestações, passeatas e concentrações populares dentro e fora dos Estados Unidos. Personificavam a revolta das minorias e os anseios de grande parte dos jovens daquela época. Apregoavam a revolução iminente.
Dylan conheceu Albert Grossman, o empresário que o transformou em uma indústria. Por seu intermédio, Dylan foi apresentado a Sarah Lowndess, ex-modelo da revista Playboy americana, amiga de Allen Ginsberg (o poeta beat apologista do LSD), dada a esoterismos, estudiosa do zen budismo e do I-Ching. Sara morava com a filha no Chelsea Hotel, para onde Dylan se mudou com armas e bagagens. Acabaram se casando em novembro de 1965.
Com a excursão à Europa realizada ainda naquele ano, Dylan conheceu os Beatles, os Rolling Stones e The Animais. O rock inglês redespertou o seu gosto pelos instrumentos elétricos, que havia abandonado em troca do folk acústico. Com o álbum Bringing it All Back Home, Dylan começava a se desligar do movimento de protesto folk. Suas músicas se tornavam mais herméticas, com imagens delirantes, quase surrealistas. Mr. Tambourine Man, com suas guitarras elétricas, foi considerada oficialmente a primeira música folk rock da história.
Para desespero das patrulhas ideológicas do folk puro, Dylan lançava o álbum Highway 61 Revisited e o compacto simples Like a Rolling Stone, com o qual confirmava sua adesão ao rock. Ao se apresentar no Festival de Newport, Dylan foi agraciado com a maior vaia de sua vida, repetida logo após no Forest Hill Stadium. O público, enfurecido com a guinada radical do ídolo, gritava aos brados: “Queremos Dylan!” e “Traidor!” e exigia que ele cantasse os antigos sucessos. Mas, ao mesmo tempo em que desapontava a um público restrito e conservador, ganhava a atenção de milhares de adoradores do rock. Em fins de 1966, gravou o primeiro álbum duplo não antológico da história do rock, Blonde on Bonde, que ele mesmo considerou certa vez como um de seus trabalhos  mais completos e gratificantes.
Até então Dylan havia cumprido parte de sua jornada. Suas músicas refletiam, catalisavam e induziam à revolução generalizada da década. Foi revolucionário, inclusive, dentro de sua própria revolução, quando optou pela linguagem eletrificada do rock, em contraponto ao folk rural. Mas ainda faltava um longo caminho a ser percorrido.
Em julho de 1966, Dylan sofreu um grave acidente de motocicleta que quase lhe custou a vida. A absoluta falta de notícias a seu respeito induziu a suspeitas de que havia morrido. Entretanto, um ano depois, Dylan convocava os membros da The Band e realizava uma série de gravações no porão de sua casa, posteriormente editadas como The Basement Tapes. Até o dia 7 de maio de 1967, ninguém sabia onde Bob Dylan estava, qual o seu estado de saúde ou, mesmo, se estava vivo. Após uma busca persistente, o repórter Michael Lachetta do Daily News, localizou Dylan em um refúgio, a 160 quilômetros de Nova York, nas montanhas perto da colônia de arte de Woodstock. Lachetta encontrou um novo Dylan, mais calmo, fortalecido espiritualmente, ocupado com a poesia, a leitura e a música. “O que eu tenho feito”, declarou Dylan na ocasião, “é conversar com alguns amigos mais chegados, me informar a respeito do mundo exterior, ler livros sobre os quais você nunca ouviu falar, e pensar em meu destino. Principalmente, tenho trabalhado para realizar uma música melhor, pois, afinal de contas, ela é o sentido de minha existência.
Pouco tempo depois, no início de 1968, ele ressurgia com o álbum John Wesley Harding, que novamente surpreendeu os fãs.
A antiga agressividade panfletária havia sido substituída por uma pregação quase religiosa. Dylan se transformava novamente e, mesmo a sua voz, antes rascante, ficara mais suave. Dylan se defendia: “Não houve mudança alguma em modo de cantar; apenas deixei de fumar. Pare de fumar e você será capaz de cantar como Caruso.” O álbum seguinte, no entanto, Nashville Skyline lançado em 1969, confirmava haver mais na música de Dylan além de novos hábitos de saúde. O disco persistia no novo estilo — bem definido na faixa Lay Lady Lay — açucarado e dócil.
Os álbuns Self Portrait e New Morning antecederam a um outro período de silêncio e afastamento do compositor,  talvez ressentido com as críticas de Joan Baez e outros que o acusavam de alienação, participou do Concerto para Bangladesh, produzido por George Harrison, e do festival da Ilha de Wight. Apenas em 1974, apareceu com o álbum Planet Waves. Mais uma vez, os fãs não receberam com bons olhos o novo estilo adotado pelo ídolo; místico, defensor da resistência passiva, pregador dos princípios de tolerância e amor ao próximo.
Dylan passou os quatro anos seguintes procurando restabelecer os vínculos com seu público. Voltou a gravar antigos sucessos e retornou à canção de protesto com a música Hurricane, na qual defendia o ex-lutador de boxe Rubin Hurricane Carter, injustamente condenado por três crimes ocorridos em Nova Jersey.
Após uma experiência cinematográfica no filme Pat Garret and Billy The Kid, de Sam Peckinpah, Dylan decidiu  realizar o  próprio filme. Rodado em 1976, Renado and Clara foi lançado em 1978, com três horas e 52 minutos de duração. Escrito, dirigido e produzido por Dylan, o filme trata de uma relação amorosa triangular entre Renaldo — obviamente identificável como o próprio Bob Dylan — Clara — sua esposa Sarah — e a mulher de branco — personificando a cantora Joan Baez, com quem Dylan tivera um caso no início de sua carreira, ainda em Greenwich Village.
A nova fase se definiu claramente quando Dylan declarou que se convertera ao cristianismo. Aceitara Cristo em seu coração após uma visão: “Havia em meu quarto uma presença tão forte que não poderia ser ninguém mais além de Jesus Cristo.” Um ano antes desta declaração, Dylan já havia se divorciado de Sarah, que saiu do casamento com uma gorda indenização de 12,5 milhões de dólares. Entre as justificativas para o divórcio requerido, Sarah alegou que Dylan abrigara uma mulher no quarto de hóspedes de sua casa e que chegara ao descaramento de convidá-la à mesa para comer com o resto da família. Teria sido essa mesma mulher quem o convencera a se converter à Igreja Fundamentalista.
O   álbum Slow Train Coming, lançado em 78, pontilhado de gospels — música que faz parte dos cultos protestantes nas igrejas norte-americanas — era descaradamente fundamentalista. Saved, álbum editado em 1979, e Shot of Love, de 1981, persistiram na mesma linha religiosa que marcou essa última fase de sua carreira.
Hoje Bob Dylan está de volta. O álbum Infidels, lançado no Brasil agora em janeiro de 1984, ainda apresenta um Dylan fiel a Cristo, aferrado às mesmas doutrinas que propagou com Slow Train Coming, Saved e Shot of Love. Entretanto, durante as gravações de Infidels, Dylan declarou: “Religião é uma palavra suja. Não significa absolutamente nada. A Coca-Cola é uma religião. O petróleo é o aço são religiões. Em nome da religião as pessoas têm sido estupradas, assassinadas e pervertidas. A religião de hoje é a servidão de amanhã.”
Dylan também não se mostrou disposto a uma volta à canção de protesto. Ao ser questionado se o disco apresentaria alguma canção política, Dylan foi categórico: “Não escrevo canções políticas. Canções políticas são slogans. Nem mesmo sei o que é política. É como uma serpente com a cauda na boca, um carrossel de pecados.”
Mas em Infidels, contrariando o próprio compositor,  encontramos canções evangelizadas (como Man of Peace) mas também nos surpreendemos com outras altamente explosivas, de protesto e crítica ao estabelecido,  como Union Sundown. Ao ser posto contra a parede pelo repórter do semanário inglês New Musical Express, Dylan irritou-se: “As pessoas querem saber onde estou e qual é a minha, porque não sabem onde estão, nem qual é a delas.” 
De resto, Infidels nos apresenta um Bob Dylan amadurecido, capaz de, pela primeira vez, conciliar as duas grandes viagens que sempre empreendeu, paralelamente, ao longo da vida. De um lado, o compromisso com a crítica, com a revolução, com o engajamento político que caracterizou o Bob Dylan de princípios da década de 60. Por outro, o compromisso com a religiosidade, com o aprimoramento da alma, com o restabelecimento dos valores reais do caráter humano. O jovem rebelde iconoclasta cedeu lugar ao homem experiente, conhecedor dos mecanismos do poder, calmo e paciente, embora ainda combativo e contestador. Hoje, aos 42 anos de idade, Bob Dylan já sabe quantas estradas deve um homem percorrer antes que se possa chamá-lo, definitivamente, de um homem. 

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