Em uma bela tarde de verão, em plena Inglaterra Vitoriana,
o reverendo Charles Lutwidge Dodgson, professor de matemática de uma das mais
conceituadas escolas de Oxford, e seu amigo, o reverendo Robinson Duckworth,
acompanharam as três filhas do deão Henry George Liddell, capelão do príncipe
George, em um longo passeio de bote até o povoado de Godstow. No meio do
caminho, à sombra de um frondoso carvalho à margem do rio Cherwell, as meninas
Charlotte, de 13 anos, Alice Pleasance, de 10, e Edith, de 8,
testemunharam a criação de uma das maiores obras da literatura universal
enquanto ouviam, embevecidas, às incríveis Aventuras de Alice no País das
Maravilhas, narradas de improviso pelo reverendo Dodgson, aliás, o genial
escritor Lewis Carroll, então com 30 anos de idade.
“Tomamos chá à beira do rio e não
voltamos para a Igreja de Cristo antes de quinze para as oito, quando as
convidei aos meus aposentos para verem a minha coleção de microfotografias. Só as
levamos de volta para o decanato por volta das nove horas.” Assim Carroll
registrou o passeio em seu diário, no dia 4 de julho de 1862. Em uma inserção
posterior, acrescentou: “Ocasião em que lhes narrei as aventuras de Alice”. Foi
a pedido da própria Alice Pleasance que Carroll escreveu e ilustrou o primeiro
manuscrito daquela história inventada em uma rara tarde de sol londrina.
Num estilo elegante, repleto de fino senso de humor e ironia, pleno de
trocadilhos e sutilezas intraduzíveis, Carroll conseguiu escrever um conto de
fadas que aliava o fantástico à crítica social, e que vem encantando crianças e
adultos já há mais de 120 anos. Da mesma forma que escapou à rígida censura
vitoriana — que não conseguiu perceber na obra nítidas alusões e veladas
críticas à realeza britânica e à sociedade puritana da época — a obra
permaneceu relativamente imune a uma análise psicológica mais profunda até bem
recentemente, quando a visão freudiana lançou seus holofotes sobre suas
possíveis interpretações. E o excêntrico criador de Alice surpreendeu
mais uma vez.
Segundo a escritora inglesa Virgínia Woolf, “o reverendo Dodgson não teve
vida”. A princípio, a afirmação pode parecer muito severa. Contudo, seus diários e cartas, assim como o depoimentos de seus contemporâneos, não deixam dúvidas de que ele era um homem
extremamente tímido e solitário, cuja introversão induziu a uma quase completa
sublimação de sua vida sexual. Carroll era misógino e, à exceção de um pequeno affair
com a famosa atriz Ellen Terry, nunca demonstrou interesse por mulher
alguma. Sua obsessão eram as jovens filhas da nobreza
vitoriana, meninas cujas idades variavam dos 7 aos 17 anos e a quem ele dedicava
o seu mais profundo amor platônico.
Adorava entretê-las com histórias fantásticas,
brincadeiras, mágicas e quebra-cabeças. Segundo Irene Barnes, belíssima atriz de 15 anos com quem Lewis Carroll
passou uma semana em uma casa de praia, “ele tinha um profundo amor pelas
crianças, embora eu esteja inclinada a acreditar que não as entendia muito bem.
Seu maior prazer era me ensinar seu Jogo da Lógica, o que tornava as tardes
bastante aborrecidas”.
Carroll tinha também o hábito de fotografar suas amiguinhas vestidas com
trajes de época ou em farrapos — lembrando as crianças vadias dos romances de Dickens
— em cenários produzidos no estúdio de casa.
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
Carroll fotografou uma infinidade de pequenas modelos. Entretanto, nenhuma lhe
falou tão alto ao coração quanto a bela Alice Pleasance Lidell , sua aluna,
musa e paixão — a menina que lhe inspirou um dos mais belos contos de fadas de
todos os tempos. “Já tive muitas amiguinhas, mas nenhuma igual a você”,
escreveu certa vez. De fato, os vários passeios que fez em companhia da filha
do deão Liddell marcaram-no para sempre. “Muitos anos se passaram desde aquela
tarde dourada, mas ainda me lembro como se fosse ontem: lá em cima, o céu azul e
sem nuvens, o espelho d'água do rio, o barco seguindo placidamente o seu
caminho, e aqueles três rostinhos ansiosos de notícias da terra das
maravilhas.”
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Carroll conheceu Alice quando ela tinha apenas 7 anos. Ele foi seu
professor, amigo e correspondente. Segundo a biógrafa Anne Clark, Alice Liddell
tipificava a essência da mulher vitoriana. Freqüentava os melhores colégios,
vestia as melhores roupas, gostava de música, desenho e pintura. Segundo Clark,
“ela fazia o tipo de coisas que se faz quando temos criados para cuidar da
gente.” Alice viveu uma época de abundância e teve tempo de sobra para apurar a sua cultura e desfrutar dos confortos e regalias do florescente Império Britânico.
Ao que tudo indica, no entanto, a mãe de Alice não aprovava a estranha relação entre sua filha e o reverendo, e passou a desencorajá-la. Em outubro de 1862, Carroll escreveu em seu diário:
“Desde o episódio com Lorde Newry, eu não tenho mais a bênção da Sra. Liddell.”
Seja lá o que possa ter acontecido nessa época, e seja lá quem tenha sido esse tal Lorde Newry, o fato é que ocorreu pouco
tempo depois daquele antológico passeio de barco que W. H. Auden observou ter
sido “um dos dias mais memoráveis da história da literatura”.
Desde então, Carroll e Alice só puderam se comunicar por escrito. O escritor escreveu copiosamente para sua jovem musa, mas
todas essas cartas acabaram queimadas pela Sra. Liddell, disposta a pôr um fim ao
excêntrico relacionamento. A partir daí, a única forma que Carroll encontrou
para ver Alice foi através de uma pequena janela em uma das salas da biblioteca
da Igreja de Cristo, que se abria para o jardim do decanato, lugar onde ela costumava
jogar croquet. Ali, por tardes a fio, Carroll se perdeu em
dedicada contemplação à menina de seus sonhos.
A psicanalista norte-americana Phyllis Greenacre afirma que Carroll possuía
um complexo de Édipo mal resolvido. Segundo ela, é possível que o reverendo
identificasse a mãe com as meninas, de modo que, em toda a trama do romance,
Alice — e não a Rainha de Copas — representasse o real símbolo materno. Também
assinala que a diferença de idade entre Alice e Carroll era quase a mesma que
havia entre ele e sua mãe, e que esse tipo de inversão é muito comum.
Carroll era o filho mais velho de uma família numerosa, o que, segundo
alguns biógrafos, pode ter provocado algum tipo de complexo de rejeição no
escritor. Além disso, ele era gago, e esse defeito certamente o impediu de
exercer a profissão de diácono e o fez tornar-se uma pessoa muito retraída.
Vestia-se de preto, comia pouquíssimo e era extremamente reservado em ocasiões sociais. O
pseudônimo com o qual assinava as suas obras literárias — ele só usava o nome
verdadeiro em livros didáticos e tratados de matemática — lhe servia como
escudo e era uma brincadeira, um jogo de traduções e re-traduções de seus dois
primeiros nomes. Segundo o biógrafo Jean Gattegno, “a ausência total de
celebridade que marcou seus 48 anos em Oxford não foi acaso nem escândalo: ele
não pretendia se fazer notar, e conseguiu. Oxford, assim como todos os outros
meios que freqüentou, foi como um ponto de passagem e não de permanência. E, se
o preço a pagar era o esquecimento, não há dúvida de que ele o tenha pago de
bom grado. Lá, conheceu as benesses da obscuridade e as delícias do anonimato”.
Quando Alice Liddell já tinha 17 anos, Carroll encontrou-a por acaso no
pátio da escola e não gostou do que viu. Devido às transformações da puberdade,
ela perdera aquilo que mais apaixonara o escritor: sua encantadora pureza
infantil. Em 1880, Carroll renunciou à
fotografia e queimou toda a sua coleção de nus, guardando apenas as fotos
em que as modelos estão vestidas e que, segundo ele, mereciam ser preservadas.
No último ano de vida, o reverendo Charles Dodgson recusou-se a receber
todas as cartas que tivessem Lewis Carroll como destinatário. Morreu de gripe,
no ano de 1898, sem nunca ter realizado o seu grande amor, deixando para o
mundo o legado de sua obra genial. Para ele caberiam perfeitamente
as últimas palavras do personagem Humbert Humbert, no romance Lolita, de Vladimir
Nabokov: “Estou pensando em auroques e anjos, no segredo de duráveis pigmentos,
no refúgio das artes; pois esta é a única imortalidade da qual poderemos
compartilhar, minha Lolita.”
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