O CAMPOS NUNCA SOUBE EXPLICAR ao
certo de onde lhe veio a idéia. Acha, ou lembra vagamente, que foi em certa madrugada,
ao sair do Capela, quando Fodie Joster — um travesti afro-ruivo-brasileiro que
controla a metade nobre da calçada em frente — o abordou para pedir cigarro.
Campos não se recorda se deu o cigarro ou se mandou Fodie Joster fazer o que
ela mais gosta na vida. O que se lembra bem é que, tão logo se afastou do travesti
e olhou em torno, ele teve aquilo que nossa amiga, a Ritinha Cabeça, chama de insight e que nós, mais simples, mais
nativos, gostamos de chamar de “sacação repentina” ou “chirimbimbim na
cachola”.
Até hoje ninguém conseguiu entender direito o
que um travesti pidão teve a ver com a idéia do Campos, mas é de se concluir
que a triste figura de Fodie Joster naquele fim de noite, a sombra lúgubre dos
prédios em ruínas, tudo isso somado ao fedor do lixo acumulado na calçada —
circunstâncias as quais, é bom que se diga, ele já estava mais do que
familiarizado — produziu um efeito imprevisto em sua mente embriagada. “Dei-me
conta,” disse ele no dia seguinte, após a ressaca, “do quanto a minha existência
é desprovida de significado e de como tudo o que me cerca é pequeno,
transitório, vulgar...”
É claro que o mandamos pescar aspargos e
mudamos de assunto. Ultimamente, ninguém andava com paciência para as lamúrias
alheias, e o bar, convenhamos, é um templo ao olvido, um espaço de consideração
despretensiosa. Papos-cabeça, só mesmo os da Ritinha, às vezes nem isso. Os
neuróticos que nos perdoem, mas a serenidade espiritual é condição
indispensável para a perfeita degustação de cereais fermentados.
Passaram-se os dias, o amigo cada
vez mais macambúzio, introspectivo, encafifado — e nós já nos sentindo um tanto
culpados por não termos dado a devida atenção à crise — até que durante outra
maratona etílica, por ocasião da demissão do Praxídes, lá pela vigésima sétima
caldereta, insistentemente solicitado pelo resto da turma, o Campos acabou nos
revelando o que vinha lhe tirando o sono havia tanto tempo.
Justiça seja feita, a idéia era bacana. E era
a cara dele. Afinal, antes que o pai jogasse todo o patrimônio da família nas
patas dos cavalos, Campos estudara em bons colégios e chegara a cursar uma
escola de belas-artes. A carreira se perdeu, junto com as pules, mas ficara-lhe
o gosto pela pintura. Esforçado amanuense do setor de iconografia da Biblioteca
Nacional, o amigo tinha as suas veleidades artísticas e tirava um trocado extra
pintando cartazes para as casas comerciais do bairro. Vez por outra rabiscava
caricaturas nas toalhas dos botecos e gostava de impressionar os banhistas com
sereias peitudas que esculpia na areia.
Logo a princípio, tivemos dificuldade para
entender exatamente a que o Campos estava se referindo. Uns pensaram que
pretendia se dedicar à decoração de interiores, pintando palmeiras, araras e
tucanos nas paredes dos pés-sujos do Centro. Outros acreditaram que decidira
começar carreira de pedreiro-estucador. Já o Telmo, que chegara depois e pegara
o bonde andando, definiu em uma frase o que muitos estavam pensando, mas não tinham
coragem de dizer em voz alta:
— Pra mim, esse negócio de afresco é coisa de
veado.
O clima pesou um pouco, mas o Campos estava
inspiradíssimo naquela noite e, sem se aborrecer com as nossas grosserias,
conseguiu manter a calma, retomar o pulso da conversa e explicar direitinho o
que andava tramando. E até mesmo o Telmo, bronco que era, acabou aprendendo que
“afresco” — longe de ser um manifesto das preferências sexuais do artista — era
em realidade de uma técnica muito sofisticada na qual se pinta com pigmentos
minerais sobre um reboco ainda úmido, à base de cal, areia e pó de mármore.
— O hidróxido de
cálcio contido na cal expele vapor de água e absorve o dióxido de carbono da
atmosfera — explicava o Campos, muito didático, como se estivesse lendo um
livro de química. — A reação cria uma fina película de carbonato de cálcio na
superfície do reboco. Aplicada antes que ocorra a reação, a tinta acaba presa
sob essa película, ficando como que vitrificada. O resultado é belíssimo,
luminoso, e muito duradouro. Bisões retratados nas paredes das cavernas há mais
de dez mil anos parecem terem sido pintados ainda hoje.
A explicação era boa, mas, como é de se
imaginar, ninguém entendeu o que o hidróxido de cálcio tinha a ver com as
calças da Fodie Joster. O Praxídes se animou a perguntar qualquer coisa, mas
logo a Ritinha lembrou do adiantado da hora e a conversa morreu por ali, todos
muito surpresos de como o tempo tinha passado tão rápido. Todos ficamos bem
impressionado e teve gente que até sonhou com o teto da Capela Sistina.
Contudo, como o Campos não deu as caras nas noites seguintes, logo esquecemos o
assunto e voltamos ao ramerrão de nossas vidas desesperançadas.
Encontrei o Campos meses depois,
num domingo de tardinha, eu voltando da pelada no Aterro, ele carregando uma
pasta repleta de papéis amarrotados, uma maleta salpicada de tinta ressequida e
um pequeno cavalete de campanha. Estava mais magro, menos inchado, as bochechas
escandalosamente rosadas, como se tivesse acabado de tomar uma garrafa de
conhaque. Para o meu espanto, recusou veementemente o convite ao chope, mas, em
compensação, convidou-me ao seu apartamento onde me presentearia com uma
garrafa de scotch já que — outra escandalosa surpresa! — parara de beber
destilados.
Eu estivera na casa do Campos diversas vezes
e nunca me cansara de admirar como um sujeito como ele, boêmio e solteiro,
conseguia trabalhar fora o dia inteiro e ainda assim manter o seu cafofo mais
nos trinques do que a suíte nupcial do Motel Mot d’Amour, ali na Rua Taylor,
que recomendo. Justamente por isso, quando ele abriu a porta e olhei para
dentro, quase dei meia-volta, certo de que saltáramos no andar errado e
estávamos entrando no apartamento de outra pessoa.
— Não repare a bagunça — disse ele, com um
sorriso amarelo.
— Reformas? — perguntei, ao ver os jornais
espalhados pelo chão.
— Mais ou menos — respondeu, enquanto
procurava a garrafa em meio à bagunça.
— A turma tem perguntado por você — disse eu,
tentando encontrar um lugar onde me sentar. — Reclamam que não aparece mais no
boteco...
— Ando muito ocupado — disse ele enquanto me
entregava a garrafa. — Peça desculpas a todos.
— Perdoe a curiosidade, mas o que fez com os
móveis da casa?
— Dei, vendi, emprestei. Fiquei só com a
cama.
— E por que isso?
O Campos emitiu um profundo suspiro de
impaciência e respondeu:
— Porque estorvavam a passagem.
Sentei-me sobre uma pilha de jornais velhos e
tentei mudar de assunto:
— E então, como estão as coisas no trabalho?
— Não faço idéia — disse ele. — Estou de
licença não remunerada por tempo indeterminado desde o princípio do mês.
— Que droga! E quem te fez uma cachorrada
dessas?
— Ninguém — respondeu enquanto abria um maço
de cigarros. — Eu mesmo pedi a licença.
— E vai viver do que daqui para frente?
O Campos voltou-se, evidentemente aborrecido.
Ao fazê-lo, tropeçou na pasta que deixara encostada à parede, espalhando a
papelada sobre o assoalho.
— Mas que desenhos bonitos! — exclamei,
tentando mudar de assunto, mas sinceramente impressionado com a qualidade dos
trabalhos.
Eram rostos, corpos femininos, esboços de
cenas urbanas muito complexas e realistas, evidentemente registradas no calor
da hora. A maioria dos desenhos fora traçada com sanguina, mas também havia
trabalhos a lápis, pastel, creiom e nanquim.
Ele não me deixou tocar nos desenhos, que
meteu atabalhoadamente dentro da pasta. Em seguida atirou a pasta de qualquer
jeito no outro lado da sala. Então, olhou-me com cara de que não estava
gostando da visita e simplesmente apontou o caminho da rua.
— Ora, vamos —
disse eu, um tanto surpreso. — Não é para o amigo levar a coisa assim tão a
sério... — Campos abriu a porta. — Tudo
bem. Já estava mesmo na hora de eu ir embora...
Caminhei lentamente até a porta e, antes de
sair, cheio de brios, devolvi-lhe a garrafa de Chivas.
Desse dia em diante, e durante
muito tempo, nunca mais voltei a encontrá-lo. Vez por outra, alguém dizia tê-lo
visto na padaria ou no supermercado. Mas notícias de verdade só mesmo com a Ritinha
Cabeça, que administrava um pequeno negócio de comida congelada e visitava o artista
duas vezes por mês. Foi ela quem nos contou que o amigo vinha freqüentando um
estúdio de pintura, no Jardim Botânico, e que fazia um curso noturno de
pedreiro, no SENAI. Também foi através dela que soubemos que, embora
continuasse licenciado, estava razoavelmente bem de grana, vivendo do aluguel
do puta apartamento de cobertura que herdara de uma tia recentemente falecida e
de uma gruja extra que arrematara num terno de grupo bem jogado.
— Passei lá outro dia para convidá-lo para um
churrasco — lembrou-se o Telmo, ressentido. — Nem se dignou a abrir a porta.
Atendeu-me pelo postigo. Disse que estava muito ocupado. Mas agora, sabendo que
está rico, começo a entender melhor as coisas...
— O que a gente tem que descobrir é se ele
enricou antes ou depois do episódio com a Fodie Joster — disse o Praxídes.
— E por que? — perguntou a Ritinha.
— Por que se essa doideira começou antes dele
ter ficado bacana — prosseguiu o Praxídes fingindo que estava falando sério —,
aí, então, ele é apenas um sujeito excêntrico como tantos outros. Mas se ele
pirou depois de ficar rico, quer
dizer que não teve estrutura para segurar a onda e nós, amigos que somos,
devemos interditá-lo judicialmente e interná-lo numa clínica. É bom lembrar que
o Campos não tem parente vivo e nós, seus amigos, somos os seus únicos
herdeiros...
— Vocês são podres! — disse a Ritinha, também
na brincadeira. E caímos juntos na gargalhada.
— Pois saibam — prosseguiu ela, contendo o
riso —, que os trabalhos que ele anda fazendo são muito, muito bons. O cara está
levando a sério esse negócio de pintura. Tem umas telas lindas na casa dele...
— Ué... mas ele não ia fazer um “ar de fresco”?
— perguntou o Telmo.
Ela
olhou-o de cima abaixo.
— É afresco, Telmo. A-fres-co. E você pensa que basta pegar uma brocha ou uma lata de
color-jet e sair por aí pichando as paredes? Não sabe que para fazer um afresco
o artista precisa ter profundos conhecimentos de desenho, pintura, química,
geometria, e alvenaria?
A
Ritinha falava como se repetisse as palavras de outra pessoa.
— Mandou bem, gostei. Quase me convenceu —
interveio o Telmo, debochado.
— Você não entende nada mesmo. Enfim, ninguém
é geminiano com lua em capricórnio impunemente. Pois saiba que para fazer um
negócio desses o cara tem que ser muito... muito...
A Ritinha, que tomara uma overdose de Artani
na década de 70, tinha esse problema de não encontrar as palavras.
— Cabeça? — arrisquei, sem a menor convicção.
— É isso! Cabeça! Cabecésimo! — animou-se
ela. — Hoje mesmo, pela manhã, quando acordamos, ele me disse uma coisa que...
quer dizer... Xiiiiii.
E foi nesse momento que descobrimos que a
Ritinha e o Campos estavam tendo um caso escondidos da turma.
Na época eu andava sem trampo
fixo, vivendo da mixaria que me pagava o marido de minha ex-mulher para que eu
nunca mais aparecesse na área. Os tempos eram bicudos e tanto o Telmo,
quanto o Praxídes, quanto o Fernando — um amigo mergulhador que andara muito
tempo trabalhando numa plataforma de petróleo e
que, portanto, ainda não aparecera na história — também estavam desempregados.
A coisa estava tão feia
que, certa vez, todo mundo já muito bêbado e muito valente, alguém sugeriu que
revivêssemos nossos saudosos tempos de delinqüência juvenil e fizéssemos um
ganho num posto de gasolina qualquer. Bêbados que estávamos, a idéia não nos pareceu
de toda má e de fato a teríamos levado adiante não esbarrássemos em um tremendo
obstáculo: armas. Num tempo em que qualquer pivete de morro andava com um AR-15
a tiracolo, a enferrujada 22 do Telmo não causaria o menor efeito. Se
estivéssemos dispostos a entrar no mercado, teríamos de nos atualizar.
— O Campos tem uma espingarda — lembrou-se o
Praxídes.
— Verdade — completei. — É uma velha
espingarda de caça que herdou do avô. Mas já deve estar arruinada após tanto
tempo sem uso.
— Dane-se! — empolgou-se o Fernando. —
Passamos um óleo, serramos o cano e fica tudo beleza. A gente não precisa de
uma escopeta-escopeta, e sim de algo que se pareça com uma! O importante é o
clima, sacou? De mais a mais, qual de nós teria coragem de atirar em alguém com
uma escopeta de verdade?
— Difícil vai ser convencê-lo a emprestar a
arma — ponderei.
— Que nada! — disse o Telmo. — A espingarda
vivia jogada em cima do guarda-roupa. Talvez ele até dê para a gente, de graça.
Vamos lá agora!
A brincadeira estava indo longe demais.
— Mas vocês juram que têm coragem de bater na
casa do Campos a uma hora dessas para pedir uma espingarda para fazer um
assalto?
Ninguém respondeu. Acrescentei:
— E vocês juram que estão
mesmo dispostos a assaltar um posto de gasolina? Então não sabem como anda a
violência nas ruas? Alguém pode se dar muito mal nessa história...
Deixamos o boteco
debaixo de um temporal medonho e, no exato momento em que chegamos à portaria
do edifício do Campos, acabou a luz em todo o bairro. O interfone não estava
funcionando, mas o porteiro deu-nos passagem e ainda emprestou um toco de vela
para que pudéssemos vencer os oito andares de escada. Cheguei a pensar em desistir,
mas, como estava muito escuro e como a chuva engrossara lá fora, acabei me
deixando levar pelo resto do bando.
Ao contrário do que eu esperava, o amigo
recebeu-nos com bons modos e pareceu não se importar com visita tão inoportuna.
Pelo que pude perceber em meio às trevas, o apartamento continuava tão bagunçado
quanto antes, mas havia então um providencial sofá ao fundo da sala, onde nos
acomodamos.
O Campos riu muito de nossa idéia e disse que
gostaria de presenciar o assalto só para ver a gente entrando pelo cano. A
espingarda, porém, não poderia emprestar. Vendera-a ao ferro-velho quando começara
a reforma. Se soubesse que interessava, talvez tivesse guardado. Então,
inesperadamente, passou-nos um pito como jamais leváramos em toda a vida.
E lá tinha cabimento gente como a gente, sem
a menor experiência, se meter a fazer uma coisa daquelas? Não sabíamos que esse
negócio não era para qualquer um? Porque uma coisa era
roubar bicicletas e esmola de cego, outra era invadir estabelecimentos
comerciais repletos de alarmes, câmaras ocultas e seguranças armados até os
dentes.
O Telmo alegou que as coisas não eram bem
assim, e que ele mesmo já tinha certa experiência no ramo, adquirida em dois assaltos
bem-sucedidos a drogarias 24 horas. Mencionou, também, outros ganhos que fizera
no Rio Comprido e na subida para o Alto da Tijuca. Mas não foi muito além
disso. Nesse instante a luz voltou subitamente e ocorreu-nos a coisa mais estranha e
inesperada.
Num momento, estávamos na penumbra de um
quarto-e-sala comum, encravado no oitavo andar de um prédio na Rua da Lapa. No
seguinte, nos vimos em outro mundo, cercados de anjos e querubins, profetas e
santos. Vagávamos em meio a revoadas de pássaros multicores, entre nuvens
tintas pelo rubor de uma aurora interminável. A ilusão era tão real que demorou
alguns segundos até nos darmos conta de que não havíamos morrido e que o
paraíso celeste que nos rodeava não passava de um belo afresco que pintara o
Campos nas paredes da sala.
Havia na Rua da Lapa, mais para os
lados da Glória, um casarão de quase cem anos no interior do qual, antigamente,
costumávamos brincar de médico com as menininhas do bairro. Aparentemente a
construção estava arruinada e desde aquela época já corriam boatos de que seria
demolida para dar lugar a um supermercado. Contudo, o casarão continuava de pé
e desocupado e ninguém sabia ao certo qual seria o seu destino.
Naquela noite, porém, entre arcanjos e
unicórnios, como quem conta um fato corriqueiro, o Campos acabou nos revelando que
comprara a ruína de um comerciante da Saara, usando o dinheiro da venda da cobertura
em Ipanema que herdara da tia, seu único patrimônio.
— Pirou total! —
exclamou o Telmo.
— P-por que fez uma
coisa dessas? — balbucie, igualmente atônito.
O Campos sorriu e
respondeu tranqüilamente:
— Paredes sólidas.
Construção antiga, mas robusta. Uma vez restaurado, aquele casarão pode durar
mais uns cinco séculos.
— E você pretende
viver tanto assim ou está pensando em fundar uma dinastia? — perguntou o
Fernando, sempre debochado.
O Telmo emendou:
— Eu, se fosse
você, derrubava aquilo e transformava o lugar em um estacionamento. O problema
de vaga anda brabo aqui no bairro depois que a garotada da Zona Sul descobriu a
Lapa. Dá para fazer muita grana na flanelagem.
— Mas você não
acabou de dizer que gastou todo o dinheiro que tinha para comprar aquela ruína?
— perguntei. — Como vai fazer para pagar a reformar?
O Campos voltou a
sorrir.
— Fiz um acordo com
o IPHAN e com a prefeitura. Eles reformarão a fachada e o interior do prédio. Em
troca, o imóvel foi tombado. É inalienável.
O Telmo fez uma
careta tão esquisita que todos caímos na gargalhada.
— Não posso vender,
emprestar ou alugar — explicou o Campos após recuperar o siso. — Também
consegui um empréstimo de uma ONG para levar adiante o projeto. Os caras
estavam enrolados com o fisco, tinham de lavar uma boa grana... sobrou para mim.
Ninguém ousou fazer
qualquer comentário, mas todos estávamos certos de que o Campos enlouquecera de
vez.
— Agora — prosseguiu
ele, animado, sem dar com nossas expressões preocupadas —, a parte boa da história: vou precisar de
gente para me ajudar. Prometo salários irrisórios, trabalho pesado
e alguma diversão no meio tempo. Alguém se habilita?
— Mas, que projeto
é esse afinal de contas? — perguntei, ainda incrédulo.
O Campos sorriu,
fez menção de dizer qualquer coisa mas, nesse momento, ouvimos um barulho à
porta e a Ritinha entrou, esbaforida, completamente encharcada, carregando uma
pesada cesta de compras. Ao dar com a turma reunida, emitiu um suspiro de
desânimo, foi até a cozinha, deixou a cesta sobre a bancada e voltou à sala.
— Negócio é o
seguinte, rapaziada — advertiu ela, batendo palminhas. — Alguém vai ter de descer
para comprar mais cerveja porque as seis que eu trouxe não dão nem para a saída
e eu não volto a sair nessa chuva nem por um decreto do Dalai Lama!
O tempo passou. Telmo foi preso
tentando assaltar uma loja de conveniências de um posto de gasolina e só não
foi morto pelo proprietário porque a polícia chegou na hora certa. Fernando
voltou para a plataforma de petróleo onde trabalhava e sumiu durante um bom
tempo. Já o Praxídes, coitado, farmacêutico formado, acabou tendo de se contentar
com um emprego de porteiro em um prédio no Grajaú, para onde se mudou com família,
armas e bagagem. Da turma mais chegada, apenas eu e a Ritinha estivemos ao lado
do Campos do começo ao fim do projeto.
Nunca fui um
sujeito de muitos talentos e habilidades. Mas sei de tudo um pouco e acabei
ajudando como faz-tudo, quase um braço direito do Campos durante a empreitada.
Servi de motorista, mensageiro, descarreguei sacos de cimento, ajudei na
lavagem diária dos pincéis, no preparo das tintas, do reboco, e cheguei a
cozinhar para a peãozada que, modéstia à parte, adorava o meu tropeiro.
Afora o salário e
meio de cada mês, o Campos — que ainda não tinha acabado a reforma no
apartamento e estava se livrando de muita quinquilharia que considerava inútil
—, ainda me presenteava com livros, almanaques, revistas e gibis antigos,
alguns muito raros e valiosos. Ele sabia de meu amor pela literatura, estava
ciente de minha incontinência literária e adorava contar a história do dia em
que, na falta de outra coisa, levei o cardápio do boteco para o banheiro porque
nunca consegui cagar sem estar lendo alguma coisa.
Dava para fazer uma
grana apenas com os gibis antigos, raridades como toda a coleção de revistinhas
de sacanagem do Carlos Zéfiro, os primeiros exemplares do Zé Carioca, do Pato
Donald e da Mônica, além de uma coleção de livrinhos de bolso
da extinta e saudosa editora Monterrey. De lá para cá, e apesar da dureza crônica e incurável,
jamais pensei em me desfazer de nenhuma dessas relíquias e, desde então,
venho desfrutando de cagadas memoráveis na companhia de Gisele, a espiã nua que
abalou Paris, sua gostosíssima filha, a agente secreta Brigitte Monfort, além
de meu grande herói de infância, o sacana do K.O. Durban, que morava em uma
ilha paradisíaca com seis mulheres gostosíssimas, e que vez por outra era
contratado para um servicinho extra, geralmente sujo, pela CIA.
A restauração do prédio estava a
cargo do IPHAN, motivo pelo qual eu e uma rapaziada aqui da área tivemos de
fazer um mutirão e pegar no pesado senão a obra não acabava mais nunca. Na falta do Telmo, do Fernando e do Praxídes,
convoquei a turma da pelada do aterro para ajudar na obra, o que acabou sendo
melhor mesmo. Em vez de um bando de boêmios vagabundos, contávamos agora com o
esforço de gente bem disposta, muitos deles pedreiros e serventes, acostumados,
portanto, ao trabalho de alvenaria.
De acordo com o
projeto, o primeiro andar do prédio continuaria dividido em seus cômodos
originais, respeitados um ou outro ajuste. Já o segundo e o terceiro andar
seriam transformados em um único pavimento, com um pé direito de oito metros,
sem paredes divisórias. Seria nesse amplo espaço que ele pintaria o seu
afresco.
Até hoje me
arrependo por não ter separado grana para comprar uma câmara digital ou, no
mínimo, um celular melhorzinho que desse para tirar fotografia. Assim, eu
poderia mostrar para vocês, passo a passo, não apenas o trabalho de restauro,
que ficou porreta, como também as muitas etapas de planejamento e execução do
imenso afresco.
Dava gosto ver o
Campos trabalhando. O cara era um artista nato, movido a poesia e intuição,
mas, quando se dedicava a alguma tarefa parecia mesmo era um engenheiro civil projetando
uma ponte. Ou um general de campo planejando uma batalha. Concentração. Método.
Disciplina. Etapas. Sub-etapas. Planos alternativos. O sujeito era tão lúcido, tão
chato, tão metódico que, caso eu não o conhece desde pequenino, podia jurar que
era um mineiro de Itabira tirando onda de malandro da Lapa.
Nunca imaginei que,
para fazer um afresco, mesmo um afresco grande como aquele, fossem necessários
preparativos tão elaborados. Parecia mais uma superprodução cinematográfica,
com escolha de elenco — no caso, os modelos vivos que ele usaria para compor as
cenas —, roteiro, figurino, cenografia, iluminação e o escambau.
Só os esboços que
ele fazia nas sessões preliminares com os candidatos a modelo já eram
espetaculares. E os estudos das cenas que ele pretendia pintar nas paredes —
enormes painéis em tinta acrílica sobre tela — eram ainda mais elaborados. Eu olhava
para aquilo e dizia:
“Mas, ô Campos, por
mim, podia acabar por aí. Basta emoldurar e exibir esses painéis para fazer uma
exposição de sucesso.”
Ele ria e
arrematava:
“Você fala assim
porque não faz idéia de como isso vai ficar na parede.”
E era a pura
verdade.
O boato se
espalhou, parece que o povo gostou da doideira, e começamos a receber ajuda de onde
menos esperávamos, especialmente dos comerciantes do bairro, que viam com
ótimos olhos a inesperada revitalização da área.
Certa tarde de domingo, o portuga da padaria ao lado apareceu com uma cesta de pães e três ou quatro frangos assados que sobraram do dia. O Campos agradeceu muito a gentileza, disse que não era preciso, mas o gajo insistiu e arrematou: “Só o favor que nos faz livrando este terreno de ratos e baratas... Sou eu quem agradeço.”
Certa tarde de domingo, o portuga da padaria ao lado apareceu com uma cesta de pães e três ou quatro frangos assados que sobraram do dia. O Campos agradeceu muito a gentileza, disse que não era preciso, mas o gajo insistiu e arrematou: “Só o favor que nos faz livrando este terreno de ratos e baratas... Sou eu quem agradeço.”
Ao fim do trabalho
de restauração, que durou muito mais do que o razoável por conta de problemas
estruturais inesperados e da tradicional e burocrática indolência de nosso
funcionalismo público, Campos dedicou-se à pintura do afresco, trabalho ao qual
se entregou, obsessivamente, sem respeitar feriados ou fins de
semana, durante um ano e três meses consecutivos. Começava a trabalhar por
volta das 22h e pintava a noite inteira, incansável, à luz de poderosos refletores.
Durante todo esse tempo,
Campos fez segredo do que estava tramando. Sempre que terminava uma seção, ele
a cobria com uma lona e montava um andaime bem rente à parede para impedir que a
sua obra fosse devassada por algum bisbilhoteiro. Certa tarde, eu ousei me aproximar
e tentar erguer a lona para ver o que havia por baixo. Acho que até hoje ouço
mal do ouvido esquerdo por conta do esporro que levei na oportunidade. E o
Campos ficou tão furioso comigo que passou uma semana sem me dirigir a palavra.
O rolo com a Igreja — e o longo,
tacanho e anacrônico processo de excomunhão do artista, que fez com que o mundo
inteiro se lembrasse de Galileu e Giordano Bruno — só serviu para atrair mais
atenção para a obra. E, durante algum tempo, o Afresco da Rua da Lapa foi quase
tão famoso quanto a estátua do Cristo Redentor ou o bondinho do Pão de Açúcar.
Não havia quem visse aquilo e ficasse indiferente o que, na minha opinião, é o
que realmente distingue a produção artística comezinha das verdadeiras obras
primas.
Eu, a Ritinha, e um
punhado de operários e mestres de obras, tivemos a honra de sermos os primeiros
seres humanos a ver o afresco, alguns dias antes da
inauguração oficial.
Certa noite após o
expediente, ele nos chamou ao segundo andar do prédio pretextando uma reunião
de emergência. Todos já conhecíamos as excentricidades do artista e não
estranhamos muito o fato do lugar estar quase às escuras e termos de
tatear o nosso caminho até a mesa que havia no centro do salão — que,
entretanto, não encontramos. Ao nosso redor, apenas a completa escuridão e um insondável
e profundo vazio. Então, em dado momento, o Campos perguntou se estávamos todos
prontos e, ao certificar-se que sim, ligou os refletores.
Não tive como
deixar de lembrar da vez em que fomos visitá-lo para pedir a espingarda
emprestada e a luz voltou inesperadamente.
Só que, dessa vez, a porrada foi muito mais forte.
Só que, dessa vez, a porrada foi muito mais forte.
Vejam, não sou
homem de frescuras e sobram dedos em uma mão para enumeras as poucas vezes em
que chorei na vida: uma aos dez anos de idade, quando meu cachorro foi
atropelado; outra quando assisti a cena da despedida entre o
menino e o extraterrestre no filme E.T.,
do Spielberg; e a última por ocasião da morte do Ayrton Senna no Grande Prêmio
de San Marino, em 1994. De lá para cá, não importando a barra, nunca mais abri
o berreiro. Isso, é claro, até ver o afresco do Campos e sentir as lágrimas
escorrendo involuntariamente pelo meu rosto.
As paredes
reproduziam famosas cenas bíblicas, no que não se diferenciavam de outros murais
espalhados por diversas igrejas em todo o mundo. Foi o modo como o Campos as retratou que fez
toda a diferença.
Bem à minha frente,
por exemplo, uma representação do nascimento de Cristo, a velha e batida composição
de José, Maria e o menino Jesus recebendo a visita dos três Reis Magos. Só que
a manjedoura não era uma manjedoura e, sim, a carroceria tombada de um caminhão,
abandonada em um infecto lixão. Em vez da expressão serena com que
estamos habituados a vê-la nas pinturas sacras, Nossa Senhora estampava a
fisionomia angustiada e ligeiramente esquizofrênica de nossa querida amiga, a
Ritinha Cabeça, que servira de modelo para a cena. José era o próprio Campos,
ainda vestindo o encardido avental de pintura. E, em vez do bebê rosadinho dos
quadros oficiais, o menino Jesus era uma criança negra e remelenta, com o nariz
sujo de catarro e moscas varejeiras pousadas sobre os seus cílios cerrados.
José-Campos olhava
para Maria-Rita com a expressão furiosa de um marido traído enquanto os três
Reis Magos — um oficial do BOPE muito parecido com o Capitão Nascimento do filme
Tropa de Elite, Pelé, ainda com
o uniforme da Copa de 70 e o bicheiro Toninho Queda D’água, célebre patrono de
escolas de samba e partidos políticos — pareciam discutir se resolviam a
pendenga ali mesmo ou se levavam todo mundo para a delegacia.
Em outra parede,
uma cena da Paixão de Cristo, aquela em que Maria Madalena enxuga o rosto ensangüentado
de Jesus. Ao contrário do quadro oficial, porém, o que víamos ali era Fodie
Joster, o traveco que fazia ponto na calçada defronte ao Capela, dando conforto
a um Jesus-negro severamente espancado, e que era arrastado por um grupo de
jovens soldados do tráfico armados com rifles e pistolas automáticas. Na cena seguinte,
em vez da crucificação tradicional, um corpo cercado de pneus em chamas,
assando no chamado “microondas”. Ao fundo, a cidade do Rio de Janeiro pontilhada
de pequenos incêndios, coberta por nuvens negras e apocalípticas, tomada por
uma densa neblina de iniqüidade e desespero, numa reminiscência dos infernos
pintados pelos artistas flamengos do século XVI.
Na parede dos
fundos, como era praxe, Campos retratou o Juízo Final, cena espantosa que, na
minha opinião, foi a gota d’água que deflagrou a ira não apenas das autoridades
eclesiásticas como também de todo mundo que tinha culpa no cartório e era de
algum modo responsável por aquela grande safadeza chamada Brasil.
Arremessados na voragem infernal por anjos
armados com espadas flamejantes, víamos filas intermináveis de políticos, funcionários públicos, policiais, padres, pastores, médicos, professores, engenheiros,
empresários, banqueiros, jornalistas, escritores — alguns deles bem conhecidos
do grande público — todos portando uma placa acima de suas cabeças enumerando os
seus pecados: incompetente, corrupto, canalha, ladrão, assassino, facínora,
pedófilo, mentiroso, etc.
Ao todo, o Campos
reproduziu setenta e cinco cenas bíblicas, que abrangiam parte do Velho e
praticamente todo o Novo Testamento. Descrevê-las uma por uma seria maçante
para o leitor, que ainda pode encontrar excelentes reproduções da obra em
livros e diversos sites da Internet. Basta dizer apenas que, longe de parecerem
cenas independentes, todos os painéis se harmonizavam em uma única e poderosa
composição, um verdadeiro tsunami de imagens pungentes, chocantes e dolorosamente
reais.
Ao fundo do salão,
acima do Juízo Final, em uma frisa rente ao teto, lia-se a inscrição: Omnia est sacra, o que em latim quer
dizer: “Tudo é sagrado.” No lado oposto, sobre a porta de entrada, a frase: Domus mea est ubique, ou: “A minha casa
é em toda parte.” Ambas as frases, é bom que se diga, não
constam da Bíblia e nem de nenhum cânone eclesiástico, tendo sido criadas pelo
próprio artista. Logo abaixo, em outra frisa que contornava as quatro paredes,
imagens de igrejas, mesquitas, sinagogas e templos de diversas religiões sendo
demolidos e incendiados pela ação de severos e implacáveis anjos exterminadores.
O afresco cumpriu o escandaloso
propósito de chocar e chacoalhar a opinião pública. Também atraiu uma inédita
multidão de turistas, jornalistas e estudiosos. Ninguém era capaz de dizer que
“gostou” do que viu, mas também ninguém era capaz de olhar para aquilo sem
emitir ao menos um palavrão admirado. “Ultrajante”, “ignominioso” e “blasfemo”
eram os termos mais ouvidos entre os atônitos visitantes, e nos mais variados
idiomas, mas houve certo crítico europeu que, com muita propriedade, escreveu que
“José Campos Tardelli levantou o tapete da corrupção e da hipocrisia para
revelar a triste e crua realidade social brasileira”.
As partes vestiram
a carapuça, houve muito protesto indignado, muito discurso inflamado no
Congresso, e, menos de dez dias após o momentoso vernissage, a sala foi fechada
à visitação pública por liminar do Supremo.
Uma semana depois, sofreu o atentado que a reduziu a um monte de escombros.
Uma semana depois, sofreu o atentado que a reduziu a um monte de escombros.
A poderosa bomba de
amônia detonada dentro do casarão em uma calma noite de domingo não apenas
pulverizou a construção como chegou a abalar os fundamentos e quebrar as
vidraças de vários prédios vizinhos.
A autoria do
atentado nunca foi desvendada. Durante as investigações as suspeitas recaíram
sobre grupos evangélicos fundamentalistas, milícias paramilitares, facções do
crime organizado, um ramo latino-americano da Al-Kaeda, algum fanático obcecado
por tradição, família e propriedade, o fantasma do Bin Laden, embora também houvesse
gente idiota o bastante para crer que o lugar fora arrasado por um raio enviado
pelo próprio Criador, indignado com tamanha blasfêmia.
Àquela altura, não
dava mais para irmos ao Capela e nem a nenhum outro bar da Lapa, não apenas
porque a área estava interditada pela Defesa Civil como também porque o bairro
acabou invadido por uma horda furiosa de repórteres do mundo inteiro, todos
ansiosos por tirarem uma casquinha do “artista maldito”.
Por isso, alguns
dias depois, já mais ou menos refeitos da tragédia, eu, o Campos, a Rita, o
Fernando — que estava de licença da plataforma — e o Telmo — que gozava de seu
indulto de Natal por bom comportamento no cativeiro — nos sentamos,
macambúzios, diante de nossas calderetas em um obscuro embora honesto boteco de
Vila Isabel para lamentarmos os últimos acontecimentos.
É claro que o
Campos estava puto dentro das calças, mas muito menos do que eu imaginara a
princípio. Lá para as tantas, todo mundo sem graça ou assunto, ele mandou o
seguinte:
— Pois saibam que durou mais
do que eu esperava. Tive medo que o lugar fosse invadido e depredado antes
mesmo da inauguração oficial. — Ele fez uma pausa e tomou um gole de chope. — É
claro que eu também tinha a remota esperança de que a obra fosse aceita como
uma “perversa excentricidade”, uma “licença poética” um Decamerão contemporâneo.
Mas o mais provável era que fosse mesmo destruída.
Balancei a cabeça,
confuso, e perguntei:
— Mas se você sabia
disso, por que seguiu adiante com o projeto?
Ele sorriu com
amargura, tomou outro gole de chope e respondeu, um denso bigode de Papai-Noel
entre o nariz e o lábio:
— Por que precisava
ser feito.
O Campos não disse
mais nada o resto da noite. E nem foi preciso. Por mais obtusos que fôssemos,
por mais broncos e incultos, todos entendemos o que ele queria dizer. O Afresco da Rua da Lapa era uma bomba e,
como tal, precisava ser destruído para fazer o estrago que fez.
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