quarta-feira, 6 de abril de 2011

O Afresco da Rua da Lapa


O CAMPOS NUNCA SOUBE EXPLICAR ao certo de onde lhe veio a idéia. Acha, ou lembra vagamente, que foi em certa madrugada, ao sair do Capela, quando Fodie Joster — um travesti afro-ruivo-brasileiro que controla a metade nobre da calçada em frente — o abordou para pedir cigarro. Campos não se recorda se deu o cigarro ou se mandou Fodie Joster fazer o que ela mais gosta na vida. O que se lembra bem é que, tão logo se afastou do travesti e olhou em torno, ele teve aquilo que nossa amiga, a Ritinha Cabeça, chama de insight e que nós, mais simples, mais nativos, gostamos de chamar de “sacação repentina” ou “chirimbimbim na cachola”.
  Até hoje ninguém conseguiu entender direito o que um travesti pidão teve a ver com a idéia do Campos, mas é de se concluir que a triste figura de Fodie Joster naquele fim de noite, a sombra lúgubre dos prédios em ruínas, tudo isso somado ao fedor do lixo acumulado na calçada — circunstâncias as quais, é bom que se diga, ele já estava mais do que familiarizado — produziu um efeito imprevisto em sua mente embriagada. “Dei-me conta,” disse ele no dia seguinte, após a ressaca, “do quanto a minha existência é desprovida de significado e de como tudo o que me cerca é pequeno, transitório, vulgar...”
  É claro que o mandamos pescar aspargos e mudamos de assunto. Ultimamente, ninguém andava com paciência para as lamúrias alheias, e o bar, convenhamos, é um templo ao olvido, um espaço de consideração despretensiosa. Papos-cabeça, só mesmo os da Ritinha, às vezes nem isso. Os neuróticos que nos perdoem, mas a serenidade espiritual é condição indispensável para a perfeita degustação de cereais fermentados.   

Passaram-se os dias, o amigo cada vez mais macambúzio, introspectivo, encafifado — e nós já nos sentindo um tanto culpados por não termos dado a devida atenção à crise — até que durante outra maratona etílica, por ocasião da demissão do Praxídes, lá pela vigésima sétima caldereta, insistentemente solicitado pelo resto da turma, o Campos acabou nos revelando o que vinha lhe tirando o sono havia tanto tempo.
  Justiça seja feita, a idéia era bacana. E era a cara dele. Afinal, antes que o pai jogasse todo o patrimônio da família nas patas dos cavalos, Campos estudara em bons colégios e chegara a cursar uma escola de belas-artes. A carreira se perdeu, junto com as pules, mas ficara-lhe o gosto pela pintura. Esforçado amanuense do setor de iconografia da Biblioteca Nacional, o amigo tinha as suas veleidades artísticas e tirava um trocado extra pintando cartazes para as casas comerciais do bairro. Vez por outra rabiscava caricaturas nas toalhas dos botecos e gostava de impressionar os banhistas com sereias peitudas que esculpia na areia.
  Logo a princípio, tivemos dificuldade para entender exatamente a que o Campos estava se referindo. Uns pensaram que pretendia se dedicar à decoração de interiores, pintando palmeiras, araras e tucanos nas paredes dos pés-sujos do Centro. Outros acreditaram que decidira começar carreira de pedreiro-estucador. Já o Telmo, que chegara depois e pegara o bonde andando, definiu em uma frase o que muitos estavam pensando, mas não tinham coragem de dizer em voz alta:
  — Pra mim, esse negócio de afresco é coisa de veado.
 O clima pesou um pouco, mas o Campos estava inspiradíssimo naquela noite e, sem se aborrecer com as nossas grosserias, conseguiu manter a calma, retomar o pulso da conversa e explicar direitinho o que andava tramando. E até mesmo o Telmo, bronco que era, acabou aprendendo que “afresco” — longe de ser um manifesto das preferências sexuais do artista — era em realidade de uma técnica muito sofisticada na qual se pinta com pigmentos minerais sobre um reboco ainda úmido, à base de cal, areia e pó de mármore.
— O hidróxido de cálcio contido na cal expele vapor de água e absorve o dióxido de carbono da atmosfera — explicava o Campos, muito didático, como se estivesse lendo um livro de química. — A reação cria uma fina película de carbonato de cálcio na superfície do reboco. Aplicada antes que ocorra a reação, a tinta acaba presa sob essa película, ficando como que vitrificada. O resultado é belíssimo, luminoso, e muito duradouro. Bisões retratados nas paredes das cavernas há mais de dez mil anos parecem terem sido pintados ainda hoje.
  A explicação era boa, mas, como é de se imaginar, ninguém entendeu o que o hidróxido de cálcio tinha a ver com as calças da Fodie Joster. O Praxídes se animou a perguntar qualquer coisa, mas logo a Ritinha lembrou do adiantado da hora e a conversa morreu por ali, todos muito surpresos de como o tempo tinha passado tão rápido. Todos ficamos bem impressionado e teve gente que até sonhou com o teto da Capela Sistina. Contudo, como o Campos não deu as caras nas noites seguintes, logo esquecemos o assunto e voltamos ao ramerrão de nossas vidas desesperançadas.

Encontrei o Campos meses depois, num domingo de tardinha, eu voltando da pelada no Aterro, ele carregando uma pasta repleta de papéis amarrotados, uma maleta salpicada de tinta ressequida e um pequeno cavalete de campanha. Estava mais magro, menos inchado, as bochechas escandalosamente rosadas, como se tivesse acabado de tomar uma garrafa de conhaque. Para o meu espanto, recusou veementemente o convite ao chope, mas, em compensação, convidou-me ao seu apartamento onde me presentearia com uma garrafa de scotch já que — outra escandalosa surpresa! — parara de beber destilados.
  Eu estivera na casa do Campos diversas vezes e nunca me cansara de admirar como um sujeito como ele, boêmio e solteiro, conseguia trabalhar fora o dia inteiro e ainda assim manter o seu cafofo mais nos trinques do que a suíte nupcial do Motel Mot d’Amour, ali na Rua Taylor, que recomendo. Justamente por isso, quando ele abriu a porta e olhei para dentro, quase dei meia-volta, certo de que saltáramos no andar errado e estávamos entrando no apartamento de outra pessoa.
  — Não repare a bagunça — disse ele, com um sorriso amarelo.
  — Reformas? — perguntei, ao ver os jornais espalhados pelo chão.
  — Mais ou menos — respondeu, enquanto procurava a garrafa em meio à bagunça.
  — A turma tem perguntado por você — disse eu, tentando encontrar um lugar onde me sentar. — Reclamam que não aparece mais no boteco...
  — Ando muito ocupado — disse ele enquanto me entregava a garrafa. — Peça desculpas a todos.
  — Perdoe a curiosidade, mas o que fez com os móveis da casa?
  — Dei, vendi, emprestei. Fiquei só com a cama.
  — E por que isso?
 O Campos emitiu um profundo suspiro de impaciência e respondeu:
  — Porque estorvavam a passagem.
  Sentei-me sobre uma pilha de jornais velhos e tentei mudar de assunto:
  — E então, como estão as coisas no trabalho?
 — Não faço idéia — disse ele. — Estou de licença não remunerada por tempo indeterminado desde o princípio do mês.
  — Que droga! E quem te fez uma cachorrada dessas?
 — Ninguém — respondeu enquanto abria um maço de cigarros. — Eu mesmo pedi a licença.
  — E vai viver do que daqui para frente?
  O Campos voltou-se, evidentemente aborrecido. Ao fazê-lo, tropeçou na pasta que deixara encostada à parede, espalhando a papelada sobre o assoalho.
  — Mas que desenhos bonitos! — exclamei, tentando mudar de assunto, mas sinceramente impressionado com a qualidade dos trabalhos.
  Eram rostos, corpos femininos, esboços de cenas urbanas muito complexas e realistas, evidentemente registradas no calor da hora. A maioria dos desenhos fora traçada com sanguina, mas também havia trabalhos a lápis, pastel, creiom e nanquim.
  Ele não me deixou tocar nos desenhos, que meteu atabalhoadamente dentro da pasta. Em seguida atirou a pasta de qualquer jeito no outro lado da sala. Então, olhou-me com cara de que não estava gostando da visita e simplesmente apontou o caminho da rua.
— Ora, vamos — disse eu, um tanto surpreso. — Não é para o amigo levar a coisa assim tão a sério...  — Campos abriu a porta. — Tudo bem. Já estava mesmo na hora de eu ir embora...
  Caminhei lentamente até a porta e, antes de sair, cheio de brios, devolvi-lhe a garrafa de Chivas.

Desse dia em diante, e durante muito tempo, nunca mais voltei a encontrá-lo. Vez por outra, alguém dizia tê-lo visto na padaria ou no supermercado. Mas notícias de verdade só mesmo com a Ritinha Cabeça, que administrava um pequeno negócio de comida congelada e visitava o artista duas vezes por mês. Foi ela quem nos contou que o amigo vinha freqüentando um estúdio de pintura, no Jardim Botânico, e que fazia um curso noturno de pedreiro, no SENAI. Também foi através dela que soubemos que, embora continuasse licenciado, estava razoavelmente bem de grana, vivendo do aluguel do puta apartamento de cobertura que herdara de uma tia recentemente falecida e de uma gruja extra que arrematara num terno de grupo bem jogado.
  — Passei lá outro dia para convidá-lo para um churrasco — lembrou-se o Telmo, ressentido. — Nem se dignou a abrir a porta. Atendeu-me pelo postigo. Disse que estava muito ocupado. Mas agora, sabendo que está rico, começo a entender melhor as coisas...
  — O que a gente tem que descobrir é se ele enricou antes ou depois do episódio com a Fodie Joster — disse o Praxídes.
  — E por que? — perguntou a Ritinha.
  — Por que se essa doideira começou antes dele ter ficado bacana — prosseguiu o Praxídes fingindo que estava falando sério —, aí, então, ele é apenas um sujeito excêntrico como tantos outros. Mas se ele pirou depois de ficar rico, quer dizer que não teve estrutura para segurar a onda e nós, amigos que somos, devemos interditá-lo judicialmente e interná-lo numa clínica. É bom lembrar que o Campos não tem parente vivo e nós, seus amigos, somos os seus únicos herdeiros...
  — Vocês são podres! — disse a Ritinha, também na brincadeira. E caímos juntos na gargalhada.
  — Pois saibam — prosseguiu ela, contendo o riso —, que os trabalhos que ele anda fazendo são muito, muito bons. O cara está levando a sério esse negócio de pintura. Tem umas telas lindas na casa dele...
  — Ué... mas ele não ia fazer um “ar de fresco”? — perguntou o Telmo.
  Ela olhou-o de cima abaixo.
  — É afresco, Telmo. A-fres-co. E você pensa que basta pegar uma brocha ou uma lata de color-jet e sair por aí pichando as paredes? Não sabe que para fazer um afresco o artista precisa ter profundos conhecimentos de desenho, pintura, química, geometria, e alvenaria?
  A Ritinha falava como se repetisse as palavras de outra pessoa.
  — Mandou bem, gostei. Quase me convenceu — interveio o Telmo, debochado.
  — Você não entende nada mesmo. Enfim, ninguém é geminiano com lua em capricórnio impunemente. Pois saiba que para fazer um negócio desses o cara tem que ser muito... muito...
  A Ritinha, que tomara uma overdose de Artani na década de 70, tinha esse problema de não encontrar as palavras.
  — Cabeça? — arrisquei, sem a menor convicção.
  — É isso! Cabeça! Cabecésimo! — animou-se ela. — Hoje mesmo, pela manhã, quando acordamos, ele me disse uma coisa que... quer dizer... Xiiiiii.
  E foi nesse momento que descobrimos que a Ritinha e o Campos estavam tendo um caso escondidos da turma.

Na época eu andava sem trampo fixo, vivendo da mixaria que me pagava o marido de minha ex-mulher para que eu nunca mais aparecesse na área. Os tempos eram bicudos e tanto o Telmo, quanto o Praxídes, quanto o Fernando — um amigo mergulhador que andara muito tempo trabalhando numa plataforma de petróleo e que, portanto, ainda não aparecera na história — também estavam desempregados.
A coisa estava tão feia que, certa vez, todo mundo já muito bêbado e muito valente, alguém sugeriu que revivêssemos nossos saudosos tempos de delinqüência juvenil e fizéssemos um ganho num posto de gasolina qualquer. Bêbados que estávamos, a idéia não nos pareceu de toda má e de fato a teríamos levado adiante não esbarrássemos em um tremendo obstáculo: armas. Num tempo em que qualquer pivete de morro andava com um AR-15 a tiracolo, a enferrujada 22 do Telmo não causaria o menor efeito. Se estivéssemos dispostos a entrar no mercado, teríamos de nos atualizar.
  — O Campos tem uma espingarda — lembrou-se o Praxídes.
  — Verdade — completei. — É uma velha espingarda de caça que herdou do avô. Mas já deve estar arruinada após tanto tempo sem uso.
  — Dane-se! — empolgou-se o Fernando. — Passamos um óleo, serramos o cano e fica tudo beleza. A gente não precisa de uma escopeta-escopeta, e sim de algo que se pareça com uma! O importante é o clima, sacou? De mais a mais, qual de nós teria coragem de atirar em alguém com uma escopeta de verdade?
  — Difícil vai ser convencê-lo a emprestar a arma — ponderei.
  — Que nada! — disse o Telmo. — A espingarda vivia jogada em cima do guarda-roupa. Talvez ele até dê para a gente, de graça. Vamos lá agora!
  A brincadeira estava indo longe demais.
  — Mas vocês juram que têm coragem de bater na casa do Campos a uma hora dessas para pedir uma espingarda para fazer um assalto?
  Ninguém respondeu. Acrescentei:
  — E vocês juram que estão mesmo dispostos a assaltar um posto de gasolina? Então não sabem como anda a violência nas ruas? Alguém pode se dar muito mal nessa história...
Deixamos o boteco debaixo de um temporal medonho e, no exato momento em que chegamos à portaria do edifício do Campos, acabou a luz em todo o bairro. O interfone não estava funcionando, mas o porteiro deu-nos passagem e ainda emprestou um toco de vela para que pudéssemos vencer os oito andares de escada. Cheguei a pensar em desistir, mas, como estava muito escuro e como a chuva engrossara lá fora, acabei me deixando levar pelo resto do bando.
  Ao contrário do que eu esperava, o amigo recebeu-nos com bons modos e pareceu não se importar com visita tão inoportuna. Pelo que pude perceber em meio às trevas, o apartamento continuava tão bagunçado quanto antes, mas havia então um providencial sofá ao fundo da sala, onde nos acomodamos.
  O Campos riu muito de nossa idéia e disse que gostaria de presenciar o assalto só para ver a gente entrando pelo cano. A espingarda, porém, não poderia emprestar. Vendera-a ao ferro-velho quando começara a reforma. Se soubesse que interessava, talvez tivesse guardado. Então, inesperadamente, passou-nos um pito como jamais leváramos em toda a vida.
  E lá tinha cabimento gente como a gente, sem a menor experiência, se meter a fazer uma coisa daquelas? Não sabíamos que esse negócio não era para qualquer um? Porque uma coisa era roubar bicicletas e esmola de cego, outra era invadir estabelecimentos comerciais repletos de alarmes, câmaras ocultas e seguranças armados até os dentes.
  O Telmo alegou que as coisas não eram bem assim, e que ele mesmo já tinha certa experiência no ramo, adquirida em dois assaltos bem-sucedidos a drogarias 24 horas. Mencionou, também, outros ganhos que fizera no Rio Comprido e na subida para o Alto da Tijuca. Mas não foi muito além disso. Nesse instante a luz voltou subitamente e ocorreu-nos a coisa mais estranha e inesperada.
  Num momento, estávamos na penumbra de um quarto-e-sala comum, encravado no oitavo andar de um prédio na Rua da Lapa. No seguinte, nos vimos em outro mundo, cercados de anjos e querubins, profetas e santos. Vagávamos em meio a revoadas de pássaros multicores, entre nuvens tintas pelo rubor de uma aurora interminável. A ilusão era tão real que demorou alguns segundos até nos darmos conta de que não havíamos morrido e que o paraíso celeste que nos rodeava não passava de um belo afresco que pintara o Campos nas paredes da sala.

Havia na Rua da Lapa, mais para os lados da Glória, um casarão de quase cem anos no interior do qual, antigamente, costumávamos brincar de médico com as menininhas do bairro. Aparentemente a construção estava arruinada e desde aquela época já corriam boatos de que seria demolida para dar lugar a um supermercado. Contudo, o casarão continuava de pé e desocupado e ninguém sabia ao certo qual seria o seu destino.
  Naquela noite, porém, entre arcanjos e unicórnios, como quem conta um fato corriqueiro, o Campos acabou nos revelando que comprara a ruína de um comerciante da Saara, usando o dinheiro da venda da cobertura em Ipanema que herdara da tia, seu único patrimônio.
— Pirou total! — exclamou o Telmo.
— P-por que fez uma coisa dessas? — balbucie, igualmente atônito.
O Campos sorriu e respondeu tranqüilamente:
— Paredes sólidas. Construção antiga, mas robusta. Uma vez restaurado, aquele casarão pode durar mais uns cinco séculos.
— E você pretende viver tanto assim ou está pensando em fundar uma dinastia? — perguntou o Fernando, sempre debochado.
O Telmo emendou:
— Eu, se fosse você, derrubava aquilo e transformava o lugar em um estacionamento. O problema de vaga anda brabo aqui no bairro depois que a garotada da Zona Sul descobriu a Lapa. Dá para fazer muita grana na flanelagem.
— Mas você não acabou de dizer que gastou todo o dinheiro que tinha para comprar aquela ruína? — perguntei. — Como vai fazer para pagar a reformar?
O Campos voltou a sorrir.
— Fiz um acordo com o IPHAN e com a prefeitura. Eles reformarão a fachada e o interior do prédio. Em troca, o imóvel foi tombado. É inalienável.
O Telmo fez uma careta tão esquisita que todos caímos na gargalhada.
— Não posso vender, emprestar ou alugar — explicou o Campos após recuperar o siso. — Também consegui um empréstimo de uma ONG para levar adiante o projeto. Os caras estavam enrolados com o fisco, tinham de lavar uma boa grana... sobrou para mim.
Ninguém ousou fazer qualquer comentário, mas todos estávamos certos de que o Campos enlouquecera de vez.
— Agora — prosseguiu ele, animado, sem dar com nossas expressões preocupadas  —, a parte boa da história: vou precisar de gente para me ajudar. Prometo salários irrisórios, trabalho pesado e alguma diversão no meio tempo. Alguém se habilita?
— Mas, que projeto é esse afinal de contas? — perguntei, ainda incrédulo.
O Campos sorriu, fez menção de dizer qualquer coisa mas, nesse momento, ouvimos um barulho à porta e a Ritinha entrou, esbaforida, completamente encharcada, carregando uma pesada cesta de compras. Ao dar com a turma reunida, emitiu um suspiro de desânimo, foi até a cozinha, deixou a cesta sobre a bancada e voltou à sala.
— Negócio é o seguinte, rapaziada — advertiu ela, batendo palminhas. — Alguém vai ter de descer para comprar mais cerveja porque as seis que eu trouxe não dão nem para a saída e eu não volto a sair nessa chuva nem por um decreto do Dalai Lama!

O tempo passou. Telmo foi preso tentando assaltar uma loja de conveniências de um posto de gasolina e só não foi morto pelo proprietário porque a polícia chegou na hora certa. Fernando voltou para a plataforma de petróleo onde trabalhava e sumiu durante um bom tempo. Já o Praxídes, coitado, farmacêutico formado, acabou tendo de se contentar com um emprego de porteiro em um prédio no Grajaú, para onde se mudou com família, armas e bagagem. Da turma mais chegada, apenas eu e a Ritinha estivemos ao lado do Campos do começo ao fim do projeto.
Nunca fui um sujeito de muitos talentos e habilidades. Mas sei de tudo um pouco e acabei ajudando como faz-tudo, quase um braço direito do Campos durante a empreitada. Servi de motorista, mensageiro, descarreguei sacos de cimento, ajudei na lavagem diária dos pincéis, no preparo das tintas, do reboco, e cheguei a cozinhar para a peãozada que, modéstia à parte, adorava o meu tropeiro.
Afora o salário e meio de cada mês, o Campos — que ainda não tinha acabado a reforma no apartamento e estava se livrando de muita quinquilharia que considerava inútil —, ainda me presenteava com livros, almanaques, revistas e gibis antigos, alguns muito raros e valiosos. Ele sabia de meu amor pela literatura, estava ciente de minha incontinência literária e adorava contar a história do dia em que, na falta de outra coisa, levei o cardápio do boteco para o banheiro porque nunca consegui cagar sem estar lendo alguma coisa.
Dava para fazer uma grana apenas com os gibis antigos, raridades como toda a coleção de revistinhas de sacanagem do Carlos Zéfiro, os primeiros exemplares do Zé Carioca, do Pato Donald e da Mônica, além de uma coleção de livrinhos de bolso da extinta e saudosa editora Monterrey. De lá para cá, e apesar da dureza crônica e incurável, jamais pensei em me desfazer de nenhuma dessas relíquias e, desde então, venho desfrutando de cagadas memoráveis na companhia de Gisele, a espiã nua que abalou Paris, sua gostosíssima filha, a agente secreta Brigitte Monfort, além de meu grande herói de infância, o sacana do K.O. Durban, que morava em uma ilha paradisíaca com seis mulheres gostosíssimas, e que vez por outra era contratado para um servicinho extra, geralmente sujo, pela CIA.

A restauração do prédio estava a cargo do IPHAN, motivo pelo qual eu e uma rapaziada aqui da área tivemos de fazer um mutirão e pegar no pesado senão a obra não acabava mais nunca.  Na falta do Telmo, do Fernando e do Praxídes, convoquei a turma da pelada do aterro para ajudar na obra, o que acabou sendo melhor mesmo. Em vez de um bando de boêmios vagabundos, contávamos agora com o esforço de gente bem disposta, muitos deles pedreiros e serventes, acostumados, portanto, ao trabalho de alvenaria.
De acordo com o projeto, o primeiro andar do prédio continuaria dividido em seus cômodos originais, respeitados um ou outro ajuste. Já o segundo e o terceiro andar seriam transformados em um único pavimento, com um pé direito de oito metros, sem paredes divisórias. Seria nesse amplo espaço que ele pintaria o seu afresco.
Até hoje me arrependo por não ter separado grana para comprar uma câmara digital ou, no mínimo, um celular melhorzinho que desse para tirar fotografia. Assim, eu poderia mostrar para vocês, passo a passo, não apenas o trabalho de restauro, que ficou porreta, como também as muitas etapas de planejamento e execução do imenso afresco.
Dava gosto ver o Campos trabalhando. O cara era um artista nato, movido a poesia e intuição, mas, quando se dedicava a alguma tarefa parecia mesmo era um engenheiro civil projetando uma ponte. Ou um general de campo planejando uma batalha. Concentração. Método. Disciplina. Etapas. Sub-etapas. Planos alternativos. O sujeito era tão lúcido, tão chato, tão metódico que, caso eu não o conhece desde pequenino, podia jurar que era um mineiro de Itabira tirando onda de malandro da Lapa.
Nunca imaginei que, para fazer um afresco, mesmo um afresco grande como aquele, fossem necessários preparativos tão elaborados. Parecia mais uma superprodução cinematográfica, com escolha de elenco — no caso, os modelos vivos que ele usaria para compor as cenas —, roteiro, figurino, cenografia, iluminação e o escambau.
Só os esboços que ele fazia nas sessões preliminares com os candidatos a modelo já eram espetaculares. E os estudos das cenas que ele pretendia pintar nas paredes — enormes painéis em tinta acrílica sobre tela — eram ainda mais elaborados. Eu olhava para aquilo e dizia:
“Mas, ô Campos, por mim, podia acabar por aí. Basta emoldurar e exibir esses painéis para fazer uma exposição de sucesso.”
Ele ria e arrematava:
“Você fala assim porque não faz idéia de como isso vai ficar na parede.”
E era a pura verdade.
O boato se espalhou, parece que o povo gostou da doideira, e começamos a receber ajuda de onde menos esperávamos, especialmente dos comerciantes do bairro, que viam com ótimos olhos a inesperada revitalização da área. 
Certa tarde de domingo, o portuga da padaria ao lado apareceu com uma cesta de pães e três ou quatro frangos assados que sobraram do dia. O Campos agradeceu muito a gentileza, disse que não era preciso, mas o gajo insistiu e arrematou: “Só o favor que nos faz livrando este terreno de ratos e baratas... Sou eu quem agradeço.”
Ao fim do trabalho de restauração, que durou muito mais do que o razoável por conta de problemas estruturais inesperados e da tradicional e burocrática indolência de nosso funcionalismo público, Campos dedicou-se à pintura do afresco, trabalho ao qual se entregou, obsessivamente, sem respeitar feriados ou fins de semana, durante um ano e três meses consecutivos. Começava a trabalhar por volta das 22h e pintava a noite inteira, incansável, à luz de poderosos refletores.
Durante todo esse tempo, Campos fez segredo do que estava tramando. Sempre que terminava uma seção, ele a cobria com uma lona e montava um andaime bem rente à parede para impedir que a sua obra fosse devassada por algum bisbilhoteiro. Certa tarde, eu ousei me aproximar e tentar erguer a lona para ver o que havia por baixo. Acho que até hoje ouço mal do ouvido esquerdo por conta do esporro que levei na oportunidade. E o Campos ficou tão furioso comigo que passou uma semana sem me dirigir a palavra.

O rolo com a Igreja — e o longo, tacanho e anacrônico processo de excomunhão do artista, que fez com que o mundo inteiro se lembrasse de Galileu e Giordano Bruno — só serviu para atrair mais atenção para a obra. E, durante algum tempo, o Afresco da Rua da Lapa foi quase tão famoso quanto a estátua do Cristo Redentor ou o bondinho do Pão de Açúcar. Não havia quem visse aquilo e ficasse indiferente o que, na minha opinião, é o que realmente distingue a produção artística comezinha das verdadeiras obras primas.
Eu, a Ritinha, e um punhado de operários e mestres de obras, tivemos a honra de sermos os primeiros seres humanos a ver o afresco, alguns dias antes da inauguração oficial.
Certa noite após o expediente, ele nos chamou ao segundo andar do prédio pretextando uma reunião de emergência. Todos já conhecíamos as excentricidades do artista e não estranhamos muito o fato do lugar estar quase às escuras e termos de tatear o nosso caminho até a mesa que havia no centro do salão — que, entretanto, não encontramos. Ao nosso redor, apenas a completa escuridão e um insondável e profundo vazio. Então, em dado momento, o Campos perguntou se estávamos todos prontos e, ao certificar-se que sim, ligou os refletores.
Não tive como deixar de lembrar da vez em que fomos visitá-lo para pedir a espingarda emprestada e a luz voltou inesperadamente. 
Só que, dessa vez, a porrada foi muito mais forte.
Vejam, não sou homem de frescuras e sobram dedos em uma mão para enumeras as poucas vezes em que chorei na vida: uma aos dez anos de idade, quando meu cachorro foi atropelado; outra quando assisti a cena da despedida entre o menino e o extraterrestre no filme E.T., do Spielberg; e a última por ocasião da morte do Ayrton Senna no Grande Prêmio de San Marino, em 1994. De lá para cá, não importando a barra, nunca mais abri o berreiro. Isso, é claro, até ver o afresco do Campos e sentir as lágrimas escorrendo involuntariamente pelo meu rosto.
As paredes reproduziam famosas cenas bíblicas, no que não se diferenciavam de outros murais espalhados por diversas igrejas em todo o mundo.  Foi o modo como o Campos as retratou que fez toda a diferença.
Bem à minha frente, por exemplo, uma representação do nascimento de Cristo, a velha e batida composição de José, Maria e o menino Jesus recebendo a visita dos três Reis Magos. Só que a manjedoura não era uma manjedoura e, sim, a carroceria tombada de um caminhão, abandonada em um infecto lixão. Em vez da expressão serena com que estamos habituados a vê-la nas pinturas sacras, Nossa Senhora estampava a fisionomia angustiada e ligeiramente esquizofrênica de nossa querida amiga, a Ritinha Cabeça, que servira de modelo para a cena. José era o próprio Campos, ainda vestindo o encardido avental de pintura. E, em vez do bebê rosadinho dos quadros oficiais, o menino Jesus era uma criança negra e remelenta, com o nariz sujo de catarro e moscas varejeiras pousadas sobre os seus cílios cerrados.
José-Campos olhava para Maria-Rita com a expressão furiosa de um marido traído enquanto os três Reis Magos — um oficial do BOPE muito parecido com o Capitão Nascimento do filme Tropa de Elite, Pelé, ainda com o uniforme da Copa de 70 e o bicheiro Toninho Queda D’água, célebre patrono de escolas de samba e partidos políticos — pareciam discutir se resolviam a pendenga ali mesmo ou se levavam todo mundo para a delegacia.
Em outra parede, uma cena da Paixão de Cristo, aquela em que Maria Madalena enxuga o rosto ensangüentado de Jesus. Ao contrário do quadro oficial, porém, o que víamos ali era Fodie Joster, o traveco que fazia ponto na calçada defronte ao Capela, dando conforto a um Jesus-negro severamente espancado, e que era arrastado por um grupo de jovens soldados do tráfico armados com rifles e pistolas automáticas. Na cena seguinte, em vez da crucificação tradicional, um corpo cercado de pneus em chamas, assando no chamado “microondas”. Ao fundo, a cidade do Rio de Janeiro pontilhada de pequenos incêndios, coberta por nuvens negras e apocalípticas, tomada por uma densa neblina de iniqüidade e desespero, numa reminiscência dos infernos pintados pelos artistas flamengos do século XVI.
Na parede dos fundos, como era praxe, Campos retratou o Juízo Final, cena espantosa que, na minha opinião, foi a gota d’água que deflagrou a ira não apenas das autoridades eclesiásticas como também de todo mundo que tinha culpa no cartório e era de algum modo responsável por aquela grande safadeza chamada Brasil.
 Arremessados na voragem infernal por anjos armados com espadas flamejantes, víamos filas intermináveis de políticos, funcionários públicos, policiais, padres, pastores, médicos, professores, engenheiros, empresários, banqueiros, jornalistas, escritores — alguns deles bem conhecidos do grande público — todos portando uma placa acima de suas cabeças enumerando os seus pecados: incompetente, corrupto, canalha, ladrão, assassino, facínora, pedófilo, mentiroso, etc.
Ao todo, o Campos reproduziu setenta e cinco cenas bíblicas, que abrangiam parte do Velho e praticamente todo o Novo Testamento. Descrevê-las uma por uma seria maçante para o leitor, que ainda pode encontrar excelentes reproduções da obra em livros e diversos sites da Internet. Basta dizer apenas que, longe de parecerem cenas independentes, todos os painéis se harmonizavam em uma única e poderosa composição, um verdadeiro tsunami de imagens pungentes, chocantes e dolorosamente reais.
Ao fundo do salão, acima do Juízo Final, em uma frisa rente ao teto, lia-se a inscrição: Omnia est sacra, o que em latim quer dizer: “Tudo é sagrado.” No lado oposto, sobre a porta de entrada, a frase: Domus mea est ubique, ou: “A minha casa é em toda parte.” Ambas as frases, é bom que se diga, não constam da Bíblia e nem de nenhum cânone eclesiástico, tendo sido criadas pelo próprio artista. Logo abaixo, em outra frisa que contornava as quatro paredes, imagens de igrejas, mesquitas, sinagogas e templos de diversas religiões sendo demolidos e incendiados pela ação de severos e implacáveis anjos exterminadores.

O afresco cumpriu o escandaloso propósito de chocar e chacoalhar a opinião pública. Também atraiu uma inédita multidão de turistas, jornalistas e estudiosos. Ninguém era capaz de dizer que “gostou” do que viu, mas também ninguém era capaz de olhar para aquilo sem emitir ao menos um palavrão admirado. “Ultrajante”, “ignominioso” e “blasfemo” eram os termos mais ouvidos entre os atônitos visitantes, e nos mais variados idiomas, mas houve certo crítico europeu que, com muita propriedade, escreveu que “José Campos Tardelli levantou o tapete da corrupção e da hipocrisia para revelar a triste e crua realidade social brasileira”.
As partes vestiram a carapuça, houve muito protesto indignado, muito discurso inflamado no Congresso, e, menos de dez dias após o momentoso vernissage, a sala foi fechada à visitação pública por liminar do Supremo. 
Uma semana depois, sofreu o atentado que a reduziu a um monte de escombros.
A poderosa bomba de amônia detonada dentro do casarão em uma calma noite de domingo não apenas pulverizou a construção como chegou a abalar os fundamentos e quebrar as vidraças de vários prédios vizinhos.
A autoria do atentado nunca foi desvendada. Durante as investigações as suspeitas recaíram sobre grupos evangélicos fundamentalistas, milícias paramilitares, facções do crime organizado, um ramo latino-americano da Al-Kaeda, algum fanático obcecado por tradição, família e propriedade, o fantasma do Bin Laden, embora também houvesse gente idiota o bastante para crer que o lugar fora arrasado por um raio enviado pelo próprio Criador, indignado com tamanha blasfêmia.
Àquela altura, não dava mais para irmos ao Capela e nem a nenhum outro bar da Lapa, não apenas porque a área estava interditada pela Defesa Civil como também porque o bairro acabou invadido por uma horda furiosa de repórteres do mundo inteiro, todos ansiosos por tirarem uma casquinha do “artista maldito”.
Por isso, alguns dias depois, já mais ou menos refeitos da tragédia, eu, o Campos, a Rita, o Fernando — que estava de licença da plataforma — e o Telmo — que gozava de seu indulto de Natal por bom comportamento no cativeiro — nos sentamos, macambúzios, diante de nossas calderetas em um obscuro embora honesto boteco de Vila Isabel para lamentarmos os últimos acontecimentos.
É claro que o Campos estava puto dentro das calças, mas muito menos do que eu imaginara a princípio. Lá para as tantas, todo mundo sem graça ou assunto, ele mandou o seguinte:
— Pois saibam que durou mais do que eu esperava. Tive medo que o lugar fosse invadido e depredado antes mesmo da inauguração oficial. — Ele fez uma pausa e tomou um gole de chope. — É claro que eu também tinha a remota esperança de que a obra fosse aceita como uma “perversa excentricidade”, uma “licença poética” um Decamerão contemporâneo. Mas o mais provável era que fosse mesmo destruída.
Balancei a cabeça, confuso, e perguntei:
— Mas se você sabia disso, por que seguiu adiante com o projeto?
Ele sorriu com amargura, tomou outro gole de chope e respondeu, um denso bigode de Papai-Noel entre o nariz e o lábio:
— Por que precisava ser feito.
O Campos não disse mais nada o resto da noite. E nem foi preciso. Por mais obtusos que fôssemos, por mais broncos e incultos, todos entendemos o que ele queria dizer.  O Afresco da Rua da Lapa era uma bomba e, como tal, precisava ser destruído para fazer o estrago que fez.

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