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quinta-feira, 6 de setembro de 2012
domingo, 6 de maio de 2012
Cozido de domingo
Estrelando: carne bovina, lombo salgado, linguiça portuguesa, linguiça calabresa, linguiça mineira, abóbora, cenoura, repolho, batata, batata baroa, nabo, cebola, quiabo, couve, jiló, quiabo, banana da terra, pimenta dedo de moça...
sexta-feira, 4 de maio de 2012
O pior erro da humanidade
À CIÊNCIA DEVEMOS MUDANÇAS dramáticas em nossa
presunçosa auto-imagem. A astronomia nos ensinou que a Terra não é o centro
do universo, mas apenas um entre milhares de milhões de corpos celestes. Da
biologia aprendemos que não fomos especialmente criados por Deus, mas que
evoluímos com milhões de outras espécies. Agora, a arqueologia está demolindo
outra sagrada convicção: a de que a trajetória da humanidade ao longo dos últimos
milhões de anos tem sido uma longa história de progresso. Em particular, descobertas recentes sugerem que a adoção da agricultura, supostamente nosso
passo mais decisivo em direção a uma vida melhor, foi de muitas formas uma
catástrofe da qual nunca nos recuperamos. Com a agricultura veio a grande
desigualdade social e sexual, as doenças e o despotismo, que amaldiçoaram a nossa
existência.
A princípio, as evidências
contra tal interpretação revisionista podem parecer irrefutáveis para os
norte-americanos do século XX. Em quase todos os aspectos, estamos melhores do que
as pessoas da Idade Média, que tiveram mais facilidades do que os homens das
cavernas, que por sua vez estavam em melhor situação do que os macacos. Basta avaliar as nossas vantagens. Desfrutamos de alimentos abundantes e variados, as
melhores ferramentas e bens materiais, as vidas mais longas e saudáveis da
história. A maioria de nós está a salvo da fome e de predadores. Tiramos a nossa
energia do petróleo e das máquinas, não de nosso suor. Qual neo-ludita entre
nós trocaria a sua vida pela de um camponês medieval, de um homem das cavernas,
ou a de um macaco?
Durante a maior parte de
nossa existência, sobrevivemos através da caça e da coleta: caçamos animais
selvagens e recolhemos plantas silvestres. Era uma vida que os filósofos têm
tradicionalmente considerado como árdua, embrutecida e curta. Uma vez que
nenhuma comida era cultivada e pouca era armazenada, não existia (nesta visão)
nenhum alívio para a luta, renovada a cada dia na busca de alimentos silvestres
para saciar a fome. Só saímos desta miséria há 10 mil anos, quando, em
diferentes partes do mundo, os seres humanos começaram a domesticar plantas e
animais. A propagação da revolução agrícola foi quase universal e, atualmente, sobrevivem
apenas algumas poucas tribos de caçadores-coletores.
Da perspectiva progressista
em que eu fui educado, perguntar “por que quase todos os nossos ancestrais
caçadores-coletores adotaram a agricultura?” soa como uma tolice. Claro que a adotaram
porque a agricultura é uma maneira eficiente de obter mais comida com menos
trabalho. As plantações rendem muito mais toneladas por hectare do que a coleta
de raízes e bagas silvestres. Basta imaginar um bando de selvagens, cansados de procurar
nozes e perseguir animais selvagens, encontrando pela primeira vez um pomar carregado
de frutas ou um pasto repleto de ovelhas. Quantos milissegundos você acredita que levariam
para avaliar as vantagens da agricultura?
Os argumentos progressistas
vão ainda mais longe, dando à agricultura o crédito pelo notável florescimento
da arte ocorrido nos últimos milhares de anos. Como os alimentos podiam ser
armazenados, e uma vez que levava menos tempo colher a comida em uma horta do
que encontrá-la na natureza, a agricultura deu-nos um tempo livre que nenhum caçador-coletor jamais dispusera. Foi assim que a agricultura nos permitiu construir o Partenon e
compor a Missa em Si-minor
Embora o argumento progressista
pareça incontestável, é difícil de ser comprovado. Como é possível demonstrar
que a vida das pessoas melhorou há 10 mil anos, quando abandonamos a caça e a
coleta em troca da agricultura? Até recentemente, os arqueólogos tiveram de recorrer
a provas indiretas, cujos resultados (surpreendentemente) não conseguiram
sustentar a visão progressista. Eis um exemplo de um teste indireto: os caçadores-coletores
do século XX estão em condições muito piores do que os agricultores? Espalhadas
por todo o mundo, dezenas de grupos de chamados povos primitivos, como os
bosquímanos do Kalahari, continuam a subsistir dessa forma. Acontece que
esses povos têm mais tempo de lazer, podem dormir mais e trabalhar menos do
que seus vizinhos agricultores. Por exemplo, o tempo médio dedicado para obter
comida é de apenas 12 a 19 horas semanais para um grupo de bosquímanos, e 14
horas ou menos para os nômades hadza da Tanzânia. Ao ser perguntado por que não
imitaram as tribos vizinhas adotando a agricultura, um bosquímano replicou: “Por
que deveríamos, quando existem tantas nozes mongongo no mundo?”
Enquanto os agricultores se
concentram em culturas ricas em carboidratos, como arroz e batatas, a variedade
de plantas e animais selvagens nas dietas dos caçadores-coletores sobreviventes
oferece mais proteína e um melhor equilíbrio de outros nutrientes. Em um estudo,
verificou-se que o consumo alimentar médio diário de um bosquímano (durante um
mês em que a comida é abundante) era de 2.140 calorias e 93 gramas de proteína,
consideravelmente maior do que a dose diária recomendada para pessoas de seu tamanho.
É quase inconcebível que os bosquímanos, que se alimentam de 75 ou mais plantas
silvestres, possam morrer de fome como centenas de milhares de fazendeiros
irlandeses e suas famílias morreram durante a escassez de batata na década de
1840.
Portanto, a vida dos caçadores-coletores
sobreviventes não é desagradável e brutal, embora os agricultores os tenha
empurrado para alguns dos piores lugares do mundo, Mas as sociedades
caçadoras-coletoras atuais, que viveram ombro a ombro com as sociedades
agrícolas durante milhares de anos não nos dizem muito sobre as condições de vida
antes da revolução agrícola. Em realidade, a visão progressista se refere a um
passado distante, alegando que a vida dos povos primitivos melhorou quando passaram
da coleta para a agricultura. Os arqueólogos podem datar essa mudança distinguindo
vestígios de plantas e animais selvagens de espécies domesticadas em depósitos
de lixo pré-históricos.
Como descobrir como era a
saúde dos fabricantes de lixo pré-históricos, e, assim, testar diretamente a
visão progressista? Essa questão só se tornou solucionável nos últimos anos —
em parte através de novas técnicas de paleopatologia, que é o estudo de vestígios
de doenças em restos mortais de povos antigos.
Em algumas situações, o
paleopatologista tem quase tanto material para estudar quanto um patologista atual.
Por exemplo, os arqueólogos nos desertos chilenos encontraram múmias tão bem
preservadas, que puderam determinar por necropsia suas condições médicas à
época de sua morte (Discover, outubro).
E fezes de índios há muito falecidos, que viviam em cavernas secas em Nevada,
permanecem suficientemente bem preservadas para serem examinadas em busca de
vermes e outros parasitas.
Geralmente, os únicos restos
mortais disponíveis para estudo são esqueletos, mas esses permitem um número
surpreendente de deduções. Para começar, um esqueleto revela o sexo do seu
dono, peso e idade aproximada. Nos poucos casos onde existem muitos esqueletos,
é possível construir tabelas de mortalidade como as que as empresas de seguro
de vida usam para calcular tempo de vida estimado e risco de morte em qualquer
idade. Os paleopatologistas também podem calcular taxas de crescimento medindo
os ossos de pessoas de diferentes idades, examinar dentes em busca de defeitos no
esmalte (sinais de desnutrição na infância), e reconhecer marcas deixadas nos
ossos pela anemia, tuberculose, lepra e outras doenças.
Um exemplo simples do que um
paleopatologista pode descobrir com esqueletos diz respeito a mudanças
históricas na estatura dos indivíduos. Esqueletos descobertos na Grécia e na Turquia
demonstram que a altura média dos caçadores-coletores até o final das eras do
gelo era de generosos 1,75m para os homens, e 1,65m para as mulheres. Com a
adoção da agricultura, a altura declinou e, por volta de 3 mil a.C., havia
alcançado uma baixa de 1,60m para os homens, e 1,52m para as mulheres. Durante
o período clássico, as alturas voltaram a crescer muito lentamente, mas gregos
e turcos modernos ainda não recuperaram a altura média dos seus distantes
antepassados.
Outro exemplo de
paleopatologia é o estudo de esqueletos de túmulos indígenas nos vales dos rios
Ohio e Illinois. Em Dickson Mounds, próximo à confluência dos rios Spoon e Illinois,
os arqueólogos escavaram cerca de 800 esqueletos que dão uma idéia das mudanças
na saúde ocorridas quando uma cultura de caçadores-coletores dá lugar à
agricultura intensiva de milho, por volta do ano 1150 a.D. Estudos realizados
por George Armelagos e seus colegas da Universidade de Massachusetts demonstram
que esses primeiros fazendeiros pagaram um preço por aquele modo de
subsistência recém-descoberto. Comparado com os caçadores-coletores que os
precederam, os agricultores tiveram um aumento de quase 50 por cento em
defeitos no esmalte dos dentes, indicativos de desnutrição, um aumento de
quatro vezes na anemia por deficiência de ferro (comprovado por uma condição
óssea chamada hiperostose porótica), um aumento em lesões ósseas que refletem
doenças infecciosas em geral, e um aumento em condições degenerativas da
coluna, provavelmente refletindo excessivo esforço físico. “A expectativa de
vida na comunidade pré-agrícola era de 26 anos”, diz Armelagos, “mas, na
comunidade pós-agrícola, baixou para 19 anos. Tais episódios de estresse
nutricional e doenças infecciosas afetaram seriamente a sua capacidade de
sobrevivência. “
As evidências sugerem que os
índios de Mounds Dickson, assim como muitos outros povos primitivos, adotaram a
agricultura não por escolha, mas por necessidade, a fim de alimentar seu constante
crescimento populacional. “Creio que a maioria dos caçadores-coletores só
passou a cultivar porque não tinha mais escolha, e que, ao optar pela
agricultura, negociaram qualidade por quantidade,” diz Mark Cohen da
Universidade Estadual de Nova Iorque em Plattsburgh, co-editor, com Armelagos,
de um dos livros seminais nesta área, Paleopatologia
nas Origens de Agricultura. “Quando lancei este argumento há dez anos,
muitas pessoas discordaram. Agora, tornou-se um lado respeitável, embora
controvertido, do debate.”
Há pelo menos três conjuntos
de razões para explicar por que a agricultura foi prejudicial à saúde humana.
Primeiro, os caçadores-coletores desfrutavam de uma dieta variada, enquanto que
os primeiros agricultores obtinham a maior parte de seus alimentos a partir de
um ou de alguns poucos cultivos amiláceos. Os agricultores ganharam calorias
baratas à custa da má nutrição, (atualmente, apenas três plantas com alto teor
de carboidratos — trigo, arroz e milho — fornecem a maior parte das calorias consumidas
pela espécie humana, mas cada uma é deficiente em certas vitaminas ou
aminoácidos essenciais para a vida.) Em segundo lugar, devido à dependência de
um número limitado de culturas, os agricultores corriam o risco de morrerem de
fome caso uma colheita não vingasse. Finalmente, o simples fato da agricultura ter
encorajado as pessoas a se aglutinarem em sociedades numerosas, muitas das
quais faziam comércio com outras sociedades numerosas, levou à disseminação de
parasitas e doenças infecciosas. (Alguns arqueólogos acreditam que foi a
aglomeração, e não a agricultura, que promoveu a doença, mas este é o um
argumento do tipo quem nasceu primeiro, a galinha ou o ovo, porque a
aglomeração incentivou a agricultura e vice-versa.) As epidemias não vingavam
quando as populações estavam dispersas em pequenos grupos que mudavam constantemente
seu local de acampamento. A tuberculose e as doenças diarréicas tiveram de
aguardar o surgimento da agricultura; o sarampo e a peste bubônica tiveram de
esperar o aparecimento das grandes cidades.
Além da desnutrição, da fome
e das epidemias, a agricultura ajudou a trazer outra maldição sobre a
humanidade: profundas divisões de classes sociais. Caçadores-coletores têm
pouca ou nenhuma comida armazenada, e não possuem fontes de alimentos
concentrados, como um pomar ou um rebanho de vacas: vivem das plantas e animais
selvagens que obtêm a cada dia. Portanto, não pode haver nenhum rei, nenhuma
classe de parasitas sociais que engordem a custa de alimentos apreendidos dos
outros. Apenas em uma sociedade agrícola uma elite saudável e improdutiva pode
se impor às massas assoladas pelas doenças. Esqueletos dos túmulos gregos de
Micenas c. 1500 a.C. sugerem que a realeza gozava de uma dieta muito melhor do
que as pessoas comuns, uma vez que os esqueletos reais eram de seis a nove
centímetros mais altos e tinham dentes melhores (em média, um em vez de seis cáries
ou dentes perdidos). Entre múmias chilenas do ano 1000 d.C., a elite se distinguia
não apenas por seus ornamentos de ouro como também por uma taxa quatro vezes
menor de lesões ósseas provocadas por doenças.
Contrastes semelhantes em
nutrição e saúde persistem atualmente em escala global. Para os povos de países
ricos como os EUA, soa ridículo exaltar as virtudes da caça e da coleta. Mas os
americanos são uma elite, dependente do petróleo e dos minerais que
freqüentemente têm de ser importados de países com piores condições de saúde e
nutrição. Se fosse possível escolher entre ser um lavrador da Etiópia ou um
bosquímano coletor no Kalahari, qual você acha que seria a melhor escolha?
A agricultura também pode
ter incentivado a desigualdade entre os sexos. Livres da necessidade de
transportar os seus bebês durante uma existência nômade, pressionadas para
produzirem mais mãos para lavrar os campos, as mulheres agrícolas tendem a ter
gestações mais freqüentes do que as caçadoras-coletoras — com conseqüente dano para
a sua saúde. Entre as múmias chilenas, por exemplo, as mulheres apresentavam mais
lesões ósseas causadas por doenças infecciosas do que os homens.
Ocasionalmente, as mulheres
eram feitas bestas de carga nas sociedades agrícolas. Em comunidades da Nova
Guiné atual, freqüentemente vejo mulheres cambaleando sob cargas de legumes e
lenha enquanto os homens caminham de mãos vazias. Certa vez, durante uma viagem
de campo estudando pássaros, ofereci pagar alguns aldeões para transportarem
suprimentos de uma pista de pouso até o meu acampamento na montanha. O item
mais pesado era um saco de 110 quilos de arroz, que eu amarrei a uma vara que
seria transportada por uma equipe de quatro homens. Quando finalmente alcancei
o grupo, vi que os homens transportavam cargas leves, enquanto que uma mulher
pequena, que pesava menos do que o saco de arroz que carregava, suportava todo
o peso através de uma corda ao redor da testa.
Quanto à alegação de que a
agricultura incentivou o florescimento da arte, fornecendo-nos tempo de lazer, sabemos
que os modernos caçadores-coletores têm tanto tempo livre quanto os
fazendeiros. Toda a ênfase no tempo de lazer como um fator crítico parece-me
equivocada. Se desejassem, os gorilas teriam tempo livre suficiente para
construir o seu próprio Partenon. Embora os avanços tecnológicos pós-agrícolas tenham
possibilitado novas formas de arte e facilitado a sua preservação, grandes
pinturas e esculturas já estavam sendo produzidos por caçadores-coletores há 15
mil anos, e ainda eram produzidas no século passado por algumas tribos de
esquimós e índios do noroeste do Pacífico.
Assim, com o advento da
agricultura, a elite ficou em melhor situação, mas a situação da maioria piorou.
Em vez de aceitarmos o argumento progressista de que escolhemos a agricultura
porque era boa para nós, devemos nos perguntar como fomos aprisionados por ela,
apesar de todas as suas armadilhas.
Uma resposta resume-se ao
ditado “o poder determina a razão”. A agricultura poderia sustentar muito mais
pessoas do que a caça, embora com uma pior qualidade de vida. (Densidades
populacionais de caçadores-coletores raramente são maiores do que uma pessoa por
dois mil metros quadrados, enquanto que a média de agricultores é 100 vezes maior.)
Parcialmente, isso ocorre porque um campo plantado permite alimentar mais bocas
do que uma floresta com plantas comestíveis dispersas. Em parte, também, porque
os caçadores-coletores nômades só podiam ter filhos em intervalos de quatro
anos, o que obtinham através de infanticídio e outros meios, já que uma mãe precisava
carregar o filho até que a criança tivesse idade suficiente para acompanhar os
adultos. Uma vez que as mulheres das sociedades agrícolas não têm de carregar esse
fardo, podem e muitas vezes têm um filho a cada dois anos.
Com o fim das eras glaciais,
as densidades populacionais de caçadores-coletores subiram lentamente e os bandos
tiveram de escolher entre alimentar mais bocas, dando os primeiros passos em
direção à agricultura, ou encontrar maneiras de limitar o crescimento
populacional. Alguns bandos escolheram a primeira solução, incapazes de
antecipar os males da agricultura, e seduzidos pela abundância passageira que
gozavam até o crescimento populacional superar a produção de alimentos. Esses
bandos procriaram e, posteriormente, expulsaram ou mataram os bandos que optaram
por permanecer caçadores-coletores, porque cem agricultores mal nutridos ainda podiam
superar um caçador saudável. Os caçadores-coletores não abandonaram o seu
estilo de vida, mas aqueles que foram sensíveis o bastante para não abandoná-lo
foram expulsos de todos os territórios, exceto aqueles que os agricultores não
queriam.
Neste ponto é instrutivo
lembrar a queixa comum de que a arqueologia é um luxo, preocupada com o passado
remoto, e que não oferece lições para o presente. Arqueólogos que estudam a
origem da agricultura reconstruíram uma fase crucial em que cometemos o pior
erro na história humana. Forçados a escolher entre limitar a população ou
tentar aumentar a produção de alimentos, optamos por esta última e acabamos com
a fome, a guerra, e a tirania.
Os caçadores-coletores
praticaram o estilo de vida mais bem sucedido e duradouro da história humana.
Em contraste, nós ainda estamos lutando com a bagunça em que a agricultura nos
meteu, e não está claro se conseguiremos resolvê-lo. Imagine um arqueólogo de
outro planeta tentando explicar a história humana para seus companheiros extraterrestres.
Ele poderia ilustrar os resultados de suas escavações através de um relógio de
24 horas em que uma hora representasse 100 mil anos. Se a história da espécie humana
tivesse começada à meia-noite, estaríamos então quase no fim do primeiro dia. Vivemos
como caçadores-coletores quase todo esse dia e só adotamos a agricultura às
23h54. Será que a fome que atinge os camponeses gradualmente se espalhará para abranger
a todos nós à medida que nos aproximamos de nossa segunda meia-noite? Ou será
que conseguiremos de algum modo alcançar as bênçãos sedutoras que imaginamos haver
por trás da fachada resplandecente da agricultura, e que até agora só nos
iludiu?
Jared
Diamond, “The Worst Mistake in the History of the Human Race,” Discover Magazine, maio de 1987, pgs.
64-66. Tradução de Alexandre Raposo.
quinta-feira, 12 de abril de 2012
Explode coração
Em 1996, a Rede Globo levou ao ar as novelas Explode coração e Quem é você,
nas quais protagonizavam dois personagens de muito apelo popular: respectivamente,
a cigana Dara e o executivo Yuri. Por essa mesma época, entraram em nossas
vidas um casal de filhotes de gatos siameses, ambos extremamente magros e
desnutridos, resgatados de uma situação infame da qual agora não me recordo em
detalhes. Nenhum dos dois parecia que sobreviveria muito tempo e, confirmando as
nossas expectativas, o macho, Yuri, que chegara a ganhar peso e parecia ter
superado as agruras de seus primeiros meses de vida, morreu pouco depois, vítima
de uma panleucopenia súbita, devastadora e fulminante que o levou ao cabo de
alguns breves e misericordiosos segundos de agonia.
Mas Dara sobreviveu. E esteve conosco até hoje
à tarde. Foram muitos anos de uma deliciosa convivência, na qual ela nos ensinou muito
a respeito de coragem, dignidade, respeito ao próximo e, obviamente, carinho e
amor ilimitados. Dara foi uma guerreira até o fim. E lutou mais de seis anos
contra a inexorabilidade de um par de rins deficientes que, entretanto, não
impediam que ela continuasse a ser uma gata linda e orgulhosa, capaz de fazer
todas as coisas que os gatos devem fazer para continuarem a ser gatos. Continuava
a ser respeitada por todos os animais da casa, inclusive pelos cães, como a
matriarca, a sócia fundadora de nossa Arca de Noé.
Anteontem, entretanto, ela parou de comer e beber
água e, apesar de ainda ser capaz de se levantar de sua cama e, tropegamente, se
arrastar até a bandeja sanitária para fazer as suas necessidades ou ir até a varanda
para tomar o seu sol matinal, também nos deixou muito claro, através de miados
e gemidos pungentes, que estava sofrendo muito mais do que seu aristocrático orgulho
era capaz de dissimular.
Foi uma decisão difícil. Em minha mente, nunca
consegui resolver muito bem a questão da eutanásia de animais, embora a de
seres humanos me pareça muito mais simples de ser resolvida, aceita e
assimilada. Afinal, seres humanos sabem que vão morrer e, caso desejem abreviar
as suas existências, podem deixar isso bem claro, seja em um documento, um murmúrio
ao pé do catre ou, até mesmo, através de um olhar de súplica e desespero lançado
para a pessoa certa no momento adequado.
Por conta dessa parada mal resolvida em minha
mente, deixei que três de meus gatos mais queridos tivessem mortes excruciantemente
dolorosas, memórias das quais procuro fugir a todo custo mas que ainda me assombram e
atormentam noite e dia passados tantos anos.
Eu não queria que Dara passasse pela mesma
provação, mas, por outro lado, não me sentia capaz de determinar o fim da vida
de um animal que certamente, e apesar de toda dor que deveria estar sentindo, não
desejava morrer. Na última vez em que eu a vi, e apesar de muito trêmula e
emitindo miados quase inaudíveis de tão doloridos, ela estava sentada na grama
do jardim, cabeça erguida, ainda procurando apreender o que ocorria à sua
volta. Ainda tentando sobreviver. E com dignidade.
Coube à minha mulher, que era a verdadeira “dona”
de Dara — isso, é claro, se você for ingênuo o suficiente para crer que gatos
podem ter donos — e que, como toda mulher, tem o instinto e o
sangue frio para encarar de frente a crueldade dos fatos da vida, tomar a decisão
definitiva.
E, apesar de todas as minhas dúvidas, todo o
meu egoísmo, toda a minha covardia, não tenho como negar que sinto uma ponta de
orgulho ao saber que Dara morreu como sempre viveu: senhora de si, orgulhosa de
quem era, e com a cabeça erguida, como cabe a um gato honrado.
Gostaria de encerrar esta elegia com uma frase que ouvi há
muito tempo e da qual, infelizmente não me lembro o autor, mas que reproduz com
fidelidade o que estou sentindo no momento: “O Paraíso não será o Paraíso se,
ao lá chegar, meus gatos não estiverem esperando por mim.”
Adeus, Dara. E obrigado por tudo o que você nos ensinou nesses últimos 16 anos.
domingo, 25 de março de 2012
Carroll e Alice
Em uma bela tarde de verão, em plena Inglaterra Vitoriana,
o reverendo Charles Lutwidge Dodgson, professor de matemática de uma das mais
conceituadas escolas de Oxford, e seu amigo, o reverendo Robinson Duckworth,
acompanharam as três filhas do deão Henry George Liddell, capelão do príncipe
George, em um longo passeio de bote até o povoado de Godstow. No meio do
caminho, à sombra de um frondoso carvalho à margem do rio Cherwell, as meninas
Charlotte, de 13 anos, Alice Pleasance, de 10, e Edith, de 8,
testemunharam a criação de uma das maiores obras da literatura universal
enquanto ouviam, embevecidas, às incríveis Aventuras de Alice no País das
Maravilhas, narradas de improviso pelo reverendo Dodgson, aliás, o genial
escritor Lewis Carroll, então com 30 anos de idade.
“Tomamos chá à beira do rio e não
voltamos para a Igreja de Cristo antes de quinze para as oito, quando as
convidei aos meus aposentos para verem a minha coleção de microfotografias. Só as
levamos de volta para o decanato por volta das nove horas.” Assim Carroll
registrou o passeio em seu diário, no dia 4 de julho de 1862. Em uma inserção
posterior, acrescentou: “Ocasião em que lhes narrei as aventuras de Alice”. Foi
a pedido da própria Alice Pleasance que Carroll escreveu e ilustrou o primeiro
manuscrito daquela história inventada em uma rara tarde de sol londrina.
Num estilo elegante, repleto de fino senso de humor e ironia, pleno de
trocadilhos e sutilezas intraduzíveis, Carroll conseguiu escrever um conto de
fadas que aliava o fantástico à crítica social, e que vem encantando crianças e
adultos já há mais de 120 anos. Da mesma forma que escapou à rígida censura
vitoriana — que não conseguiu perceber na obra nítidas alusões e veladas
críticas à realeza britânica e à sociedade puritana da época — a obra
permaneceu relativamente imune a uma análise psicológica mais profunda até bem
recentemente, quando a visão freudiana lançou seus holofotes sobre suas
possíveis interpretações. E o excêntrico criador de Alice surpreendeu
mais uma vez.
Segundo a escritora inglesa Virgínia Woolf, “o reverendo Dodgson não teve
vida”. A princípio, a afirmação pode parecer muito severa. Contudo, seus diários e cartas, assim como o depoimentos de seus contemporâneos, não deixam dúvidas de que ele era um homem
extremamente tímido e solitário, cuja introversão induziu a uma quase completa
sublimação de sua vida sexual. Carroll era misógino e, à exceção de um pequeno affair
com a famosa atriz Ellen Terry, nunca demonstrou interesse por mulher
alguma. Sua obsessão eram as jovens filhas da nobreza
vitoriana, meninas cujas idades variavam dos 7 aos 17 anos e a quem ele dedicava
o seu mais profundo amor platônico.
Adorava entretê-las com histórias fantásticas,
brincadeiras, mágicas e quebra-cabeças. Segundo Irene Barnes, belíssima atriz de 15 anos com quem Lewis Carroll
passou uma semana em uma casa de praia, “ele tinha um profundo amor pelas
crianças, embora eu esteja inclinada a acreditar que não as entendia muito bem.
Seu maior prazer era me ensinar seu Jogo da Lógica, o que tornava as tardes
bastante aborrecidas”.
Carroll tinha também o hábito de fotografar suas amiguinhas vestidas com
trajes de época ou em farrapos — lembrando as crianças vadias dos romances de Dickens
— em cenários produzidos no estúdio de casa.
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
Carroll fotografou uma infinidade de pequenas modelos. Entretanto, nenhuma lhe
falou tão alto ao coração quanto a bela Alice Pleasance Lidell , sua aluna,
musa e paixão — a menina que lhe inspirou um dos mais belos contos de fadas de
todos os tempos. “Já tive muitas amiguinhas, mas nenhuma igual a você”,
escreveu certa vez. De fato, os vários passeios que fez em companhia da filha
do deão Liddell marcaram-no para sempre. “Muitos anos se passaram desde aquela
tarde dourada, mas ainda me lembro como se fosse ontem: lá em cima, o céu azul e
sem nuvens, o espelho d'água do rio, o barco seguindo placidamente o seu
caminho, e aqueles três rostinhos ansiosos de notícias da terra das
maravilhas.”
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Carroll conheceu Alice quando ela tinha apenas 7 anos. Ele foi seu
professor, amigo e correspondente. Segundo a biógrafa Anne Clark, Alice Liddell
tipificava a essência da mulher vitoriana. Freqüentava os melhores colégios,
vestia as melhores roupas, gostava de música, desenho e pintura. Segundo Clark,
“ela fazia o tipo de coisas que se faz quando temos criados para cuidar da
gente.” Alice viveu uma época de abundância e teve tempo de sobra para apurar a sua cultura e desfrutar dos confortos e regalias do florescente Império Britânico.
Ao que tudo indica, no entanto, a mãe de Alice não aprovava a estranha relação entre sua filha e o reverendo, e passou a desencorajá-la. Em outubro de 1862, Carroll escreveu em seu diário:
“Desde o episódio com Lorde Newry, eu não tenho mais a bênção da Sra. Liddell.”
Seja lá o que possa ter acontecido nessa época, e seja lá quem tenha sido esse tal Lorde Newry, o fato é que ocorreu pouco
tempo depois daquele antológico passeio de barco que W. H. Auden observou ter
sido “um dos dias mais memoráveis da história da literatura”.
Desde então, Carroll e Alice só puderam se comunicar por escrito. O escritor escreveu copiosamente para sua jovem musa, mas
todas essas cartas acabaram queimadas pela Sra. Liddell, disposta a pôr um fim ao
excêntrico relacionamento. A partir daí, a única forma que Carroll encontrou
para ver Alice foi através de uma pequena janela em uma das salas da biblioteca
da Igreja de Cristo, que se abria para o jardim do decanato, lugar onde ela costumava
jogar croquet. Ali, por tardes a fio, Carroll se perdeu em
dedicada contemplação à menina de seus sonhos.
A psicanalista norte-americana Phyllis Greenacre afirma que Carroll possuía
um complexo de Édipo mal resolvido. Segundo ela, é possível que o reverendo
identificasse a mãe com as meninas, de modo que, em toda a trama do romance,
Alice — e não a Rainha de Copas — representasse o real símbolo materno. Também
assinala que a diferença de idade entre Alice e Carroll era quase a mesma que
havia entre ele e sua mãe, e que esse tipo de inversão é muito comum.
Carroll era o filho mais velho de uma família numerosa, o que, segundo
alguns biógrafos, pode ter provocado algum tipo de complexo de rejeição no
escritor. Além disso, ele era gago, e esse defeito certamente o impediu de
exercer a profissão de diácono e o fez tornar-se uma pessoa muito retraída.
Vestia-se de preto, comia pouquíssimo e era extremamente reservado em ocasiões sociais. O
pseudônimo com o qual assinava as suas obras literárias — ele só usava o nome
verdadeiro em livros didáticos e tratados de matemática — lhe servia como
escudo e era uma brincadeira, um jogo de traduções e re-traduções de seus dois
primeiros nomes. Segundo o biógrafo Jean Gattegno, “a ausência total de
celebridade que marcou seus 48 anos em Oxford não foi acaso nem escândalo: ele
não pretendia se fazer notar, e conseguiu. Oxford, assim como todos os outros
meios que freqüentou, foi como um ponto de passagem e não de permanência. E, se
o preço a pagar era o esquecimento, não há dúvida de que ele o tenha pago de
bom grado. Lá, conheceu as benesses da obscuridade e as delícias do anonimato”.
Quando Alice Liddell já tinha 17 anos, Carroll encontrou-a por acaso no
pátio da escola e não gostou do que viu. Devido às transformações da puberdade,
ela perdera aquilo que mais apaixonara o escritor: sua encantadora pureza
infantil. Em 1880, Carroll renunciou à
fotografia e queimou toda a sua coleção de nus, guardando apenas as fotos
em que as modelos estão vestidas e que, segundo ele, mereciam ser preservadas.
No último ano de vida, o reverendo Charles Dodgson recusou-se a receber
todas as cartas que tivessem Lewis Carroll como destinatário. Morreu de gripe,
no ano de 1898, sem nunca ter realizado o seu grande amor, deixando para o
mundo o legado de sua obra genial. Para ele caberiam perfeitamente
as últimas palavras do personagem Humbert Humbert, no romance Lolita, de Vladimir
Nabokov: “Estou pensando em auroques e anjos, no segredo de duráveis pigmentos,
no refúgio das artes; pois esta é a única imortalidade da qual poderemos
compartilhar, minha Lolita.”
sexta-feira, 23 de março de 2012
O profeta do Juízo Final (1984)
Vista sob esse ângulo, a viagem de Dylan tomava
ares de uma peregrinação mística. Para ele, Guthrie era uma espécie de modelo
e objeto de adoração. Por outro lado, Dylan almejava o fulgor cultural do Greenwich
Village, bairro boêmio de Nova York, e chegava ainda em tempo de organizar a
festa. A década do desvario mal começava e Bob Dylan, aos 19 anos, se
colocava, quase involuntariamente, bem no olho do grande furacão que viria
a seguir. Vista sob esse ponto de vista, sua viagem se aproximava mais de uma
campanha política. Ele vinha para participar.
Certas pessoas possuem a capacidade de estar
sempre nos lugares certos, às horas certas. Vai nisso um tanto de mérito e um
tanto de sorte. Dylan era esse tipo de gente e possuía ambas as qualidades.
Mas, quando chegou a Nova York e passou a fazer peregrinações regulares para
visitar o mestre acamado, Dylan já trazia em si as sementes do Armagedon, da
batalha do Juízo Final.
Bob Dylan tinha 6 seis anos quando sua
família se mudou de Duluth, no estado de Minnesota, para a cidade de Hibbing,
cuja principal atividade econômica era mineração de ferro, e que se orgulhava
de ser “o maior buraco já feito pelo homem”. Em Hibbing, o velho Abraham
Zimmerman, pai de Bob Dylan (então Robert Zimmerman) geria uma loja de
ferragens. O menino viveu uma infância repleta de episódios românticos, tendo como pano de fundo as estradas de ferro, a vida dos mineiros, dos
vagabundos de estrada... e suas músicas. Principalmente suas músicas.
Com 10 anos, Dylan já tocava piano e harmônica. Aos 12 conseguiu uma velha guitarra Sears Roebuck. Por essa época, estourava o rock’n’roll e Bill HaIley e Seus Cometas lançavam o Rock Around The Clock, trilha do filme Sementes da Violência. James Dean já agitava com sua furiosa rebeldia e Elvis Presley dava os primeiros passinhos.
Bob Dylan se identificava especialmente com o estilo rebelde-rabioso de James Dean. A guitarra surrada e a motocicleta Harley Davidson eram seu atestado de fidelidade ideológica aos ídolos da época.
Com 10 anos, Dylan já tocava piano e harmônica. Aos 12 conseguiu uma velha guitarra Sears Roebuck. Por essa época, estourava o rock’n’roll e Bill HaIley e Seus Cometas lançavam o Rock Around The Clock, trilha do filme Sementes da Violência. James Dean já agitava com sua furiosa rebeldia e Elvis Presley dava os primeiros passinhos.
Bob Dylan se identificava especialmente com o estilo rebelde-rabioso de James Dean. A guitarra surrada e a motocicleta Harley Davidson eram seu atestado de fidelidade ideológica aos ídolos da época.
No jovem roqueiro da década de 50, há também quem encontre semelhanças e influências de Holden
Caulfield, o personagem do romance O Apanhador no Campo de Centeio de
J. D. Salinger.
Em 1950, Dylan deixou Hibbing e foi para o
Colégio de Artes de Minneapolis, em Dinkytown. Ali, começou a freqüentar os café do bairro, como a Bastile e o St. Pauls Purple Union, verdadeiros
focos de música folk e membros da Beat Generation. Seguindo uma
tendência da época, Dylan vendeu a velha guitarra e comprou um violão
acústico. Como passava por uma
fase de reformas, o jovem Robert Zimmerman aproveitou para mudar também o seu
nome para Bob Dylan. Tanto a escolha do nome quanto os motivos da troca estão
cercados de controvérsias e desmentidos, embora muitos acreditem que objetivasse esconder sua origem judaica.
Portanto, ao chegar a Nova York nos primórdios da
década de 60, Dylan já vinha com uma sólida herança de rebeldia e com os
fundamentos de todos os movimentos que engendraria ou dos quais tomaria parte a
seguir. Em Greenwich Village, imerso em um ambiente de grande concentração
cultural, entre beatniks, grupos de música de protesto e artistas
vanguardistas, Dylan tocou em clubes de música folk
e fez o seu début profissional em abril de 1961, no Gerde’s Folk City.
Na platéia, o crítico de música do New York Times, Robert Shelton,
aplaudiu entusiasticamente. Pouco depois, Dylan assinou contrato com a Columbia, onde foi introduzido pelo crítico e produtor John
Harnmond.
O primeiro disco, Bob Dylan, lançado em
março de 1962, era uma coletânea de blues e folks populares,
interpretados em seu estilo rascante e inconfundível. Entretanto, nas duas
únicas músicas de sua autoria, Song to Woodie e Taikin’ New York, Dylan
dava mostras do que pretendia fazer dali em diante: seguindo a mesma linha de Woodie Guthrie,
ele levava o trabalho do mestre alguns passos além.
O LP, entretanto, foi um retumbante fracasso e vendeu apenas cinco mil exemplares. O produtor John Hammond foi chamado às pressas pelo diretor-geral da Columbia, que afirmou: “Vamos ter de cancelar o nosso contrato com o tal Dylan.” Mas Hammond sabia o artista que tinha em mãos e foi categórico: “Só se for por cima do meu cadáver!” O fato é que, apesar do fracasso do disco, a Columbia insistiu e lançou o antológico The Freewheelin’ Bob Dylan no ano seguinte. O álbum incluía canções pacifistas e de protesto, tais como A Hard Rain Is Gonna Fall e Masters of War, todas de sua autoria. Entre elas, sobressaía o hit que se tornou o hino de toda uma geração, a música Blowin’ in the Wind. A versão gravada por Peter, Paul and Mary em compacto simples vendeu 320 mil exemplares em apenas uma semana. Dylan começava a se tornar uma lenda.
O LP, entretanto, foi um retumbante fracasso e vendeu apenas cinco mil exemplares. O produtor John Hammond foi chamado às pressas pelo diretor-geral da Columbia, que afirmou: “Vamos ter de cancelar o nosso contrato com o tal Dylan.” Mas Hammond sabia o artista que tinha em mãos e foi categórico: “Só se for por cima do meu cadáver!” O fato é que, apesar do fracasso do disco, a Columbia insistiu e lançou o antológico The Freewheelin’ Bob Dylan no ano seguinte. O álbum incluía canções pacifistas e de protesto, tais como A Hard Rain Is Gonna Fall e Masters of War, todas de sua autoria. Entre elas, sobressaía o hit que se tornou o hino de toda uma geração, a música Blowin’ in the Wind. A versão gravada por Peter, Paul and Mary em compacto simples vendeu 320 mil exemplares em apenas uma semana. Dylan começava a se tornar uma lenda.
Com The Times They Are A-Changin’, ele
retornou à carga com mais vigor. Atacou o racismo e o belicismo, e lançou o
arcabouço filosófico da chamada contracultura. A faixa-título deste LP de 1964 prega: “Mães e
pais de toda a nação, não critiquem o que não podem entender. Seus filhos e
filhas estão além de seu controle. A antiga estrada de vocês está ficando velha
rapidamente. Saiam da nova, se não conseguem ajudar em nada, porque os tempos
estão mudando.”
A essa altura, as músicas de Dylan eram cantadas
em todas as manifestações, passeatas e concentrações populares dentro e fora dos
Estados Unidos. Personificavam a revolta das minorias e os anseios de grande
parte dos jovens daquela época. Apregoavam a revolução iminente.
Dylan conheceu Albert Grossman, o empresário que
o transformou em uma indústria. Por seu intermédio, Dylan foi apresentado a
Sarah Lowndess, ex-modelo da revista Playboy americana, amiga de Allen
Ginsberg (o poeta beat apologista do LSD), dada a esoterismos, estudiosa
do zen budismo e do I-Ching. Sara morava com a filha no Chelsea Hotel, para
onde Dylan se mudou com armas e bagagens. Acabaram se casando em novembro de 1965.
Com a excursão à Europa realizada ainda naquele
ano, Dylan conheceu os Beatles, os Rolling Stones e The Animais. O rock inglês redespertou o seu gosto pelos instrumentos elétricos, que havia abandonado em troca
do folk acústico. Com
o álbum Bringing it All Back Home, Dylan começava a se desligar do
movimento de protesto folk. Suas músicas se tornavam mais herméticas,
com imagens delirantes, quase surrealistas. Mr. Tambourine Man, com suas
guitarras elétricas, foi considerada oficialmente a primeira música folk
rock da história.
Para desespero das patrulhas ideológicas do folk
puro, Dylan lançava o álbum Highway 61 Revisited e o compacto
simples Like a Rolling Stone, com o qual confirmava sua adesão ao rock.
Ao se apresentar no Festival de Newport, Dylan foi agraciado com a maior
vaia de sua vida, repetida logo após no Forest Hill Stadium. O público,
enfurecido com a guinada radical do ídolo, gritava aos brados: “Queremos
Dylan!” e “Traidor!” e exigia que ele cantasse os antigos sucessos. Mas, ao
mesmo tempo em que desapontava a um público restrito e conservador, ganhava a
atenção de milhares de adoradores do rock. Em fins de 1966, gravou o
primeiro álbum duplo não antológico da história do rock, Blonde on Bonde, que ele mesmo considerou certa vez como um
de seus trabalhos “mais completos e gratificantes”.
Até então Dylan havia cumprido parte de sua
jornada. Suas músicas refletiam, catalisavam e induziam à
revolução generalizada da década. Foi revolucionário, inclusive, dentro de sua
própria revolução, quando optou pela linguagem eletrificada do rock,
em contraponto ao folk rural. Mas ainda faltava um longo caminho a ser percorrido.
Em julho de 1966, Dylan sofreu um grave acidente
de motocicleta que quase lhe custou a vida. A absoluta falta de notícias a seu
respeito induziu a suspeitas de que havia morrido. Entretanto,
um ano depois, Dylan convocava os membros da The Band e realizava uma série de
gravações no porão de sua casa, posteriormente editadas como The Basement
Tapes. Até o dia 7 de maio de 1967, ninguém sabia onde Bob Dylan estava,
qual o seu estado de saúde ou, mesmo, se estava vivo. Após uma busca persistente, o repórter Michael
Lachetta do Daily News, localizou Dylan em
um refúgio, a 160 quilômetros de Nova York, nas montanhas perto da colônia de
arte de Woodstock. Lachetta encontrou um novo Dylan, mais calmo, fortalecido
espiritualmente, ocupado com a poesia, a leitura e a música. “O que eu tenho feito”,
declarou Dylan na ocasião, “é conversar com alguns amigos mais chegados, me informar a respeito do mundo exterior, ler livros sobre os quais você nunca ouviu falar,
e pensar em meu destino. Principalmente, tenho trabalhado para realizar uma
música melhor, pois, afinal de contas, ela é o sentido de minha existência.”
Pouco tempo depois, no início de 1968, ele
ressurgia com o álbum John Wesley Harding, que novamente surpreendeu os fãs.
A antiga agressividade panfletária havia sido
substituída por uma pregação quase religiosa. Dylan se transformava novamente e, mesmo
a sua voz, antes rascante, ficara mais “suave”. Dylan se defendia: “Não houve
mudança alguma em modo de cantar; apenas deixei de fumar. Pare de fumar e você
será capaz de cantar como Caruso.” O álbum seguinte, no entanto, Nashville
Skyline lançado em 1969, confirmava haver mais na música de Dylan além de
novos hábitos de saúde. O disco persistia no novo estilo — bem definido na
faixa Lay Lady Lay — açucarado e dócil.
Os álbuns Self Portrait e New Morning antecederam
a um outro período de silêncio e afastamento do compositor, talvez ressentido com as críticas de Joan Baez e outros que o acusavam de alienação, participou
do Concerto para Bangladesh, produzido por George Harrison, e do festival da Ilha de
Wight. Apenas em 1974, apareceu com o álbum Planet Waves. Mais uma vez,
os fãs não receberam com bons olhos o novo estilo adotado pelo ídolo; místico, defensor da
resistência passiva, pregador dos princípios de tolerância e amor ao próximo.
Dylan passou os quatro anos seguintes procurando
restabelecer os vínculos com seu público. Voltou a gravar antigos sucessos e retornou
à canção de protesto com a música Hurricane, na
qual defendia o ex-lutador de boxe Rubin
Hurricane Carter, injustamente condenado por três crimes ocorridos em
Nova Jersey.
Após uma experiência cinematográfica no filme Pat
Garret and Billy The Kid, de Sam Peckinpah, Dylan decidiu realizar o próprio filme. Rodado em 1976, Renado and Clara foi lançado em 1978,
com três horas e 52 minutos de duração. Escrito, dirigido e produzido por Dylan,
o filme trata de uma relação amorosa triangular entre Renaldo — obviamente identificável
como o próprio Bob Dylan — Clara — sua esposa Sarah — e a mulher de branco —
personificando a cantora Joan Baez, com quem Dylan tivera um caso no início de
sua carreira, ainda em Greenwich Village.
A nova fase se definiu claramente quando
Dylan declarou que se convertera ao cristianismo. Aceitara Cristo em seu
coração após uma visão: “Havia em meu quarto uma presença tão forte que não
poderia ser ninguém mais além de Jesus Cristo.” Um ano antes desta declaração,
Dylan já havia se divorciado de Sarah, que saiu do casamento com uma gorda indenização de 12,5
milhões de dólares. Entre as justificativas para o divórcio requerido, Sarah
alegou que Dylan abrigara uma mulher no quarto de hóspedes de sua casa e que chegara ao descaramento de convidá-la à mesa para comer com o resto da
família. Teria sido essa mesma mulher quem o convencera a se converter à Igreja
Fundamentalista.
O álbum Slow
Train Coming, lançado em 78, pontilhado de gospels — música que faz
parte dos cultos protestantes nas igrejas norte-americanas — era descaradamente
fundamentalista. Saved, álbum editado em 1979, e Shot of Love, de
1981, persistiram na mesma linha religiosa que marcou essa última fase de sua
carreira.
Hoje Bob Dylan está de volta. O álbum Infidels,
lançado no Brasil agora em janeiro de 1984, ainda apresenta um Dylan fiel a Cristo,
aferrado às mesmas doutrinas que propagou com Slow Train Coming, Saved e
Shot of Love. Entretanto, durante as gravações de Infidels, Dylan
declarou: “Religião é uma palavra suja. Não significa absolutamente nada. A
Coca-Cola é uma religião. O petróleo é o aço são religiões. Em nome da religião
as pessoas têm sido estupradas, assassinadas e pervertidas. A religião de hoje
é a servidão de amanhã.”
Dylan também não se mostrou disposto a uma volta
à canção de protesto. Ao ser questionado se o disco apresentaria alguma
canção política, Dylan foi categórico: “Não escrevo canções políticas.
Canções políticas são slogans. Nem mesmo sei o que é política. É como uma
serpente com a cauda na boca, um carrossel de pecados.”
Mas em Infidels, contrariando o próprio
compositor, encontramos canções evangelizadas
(como Man of Peace) mas também nos surpreendemos com outras altamente explosivas,
de protesto e crítica ao estabelecido, como Union Sundown. Ao ser
posto contra a parede pelo repórter do semanário inglês New Musical Express,
Dylan irritou-se: “As pessoas querem saber onde estou e qual é a minha,
porque não sabem onde estão, nem qual é a delas.”
De resto, Infidels nos apresenta um Bob Dylan amadurecido, capaz de, pela primeira vez, conciliar as duas grandes viagens que sempre empreendeu, paralelamente, ao longo da vida. De um lado, o compromisso com a crítica, com a revolução, com o engajamento político que caracterizou o Bob Dylan de princípios da década de 60. Por outro, o compromisso com a religiosidade, com o aprimoramento da alma, com o restabelecimento dos valores reais do caráter humano. O jovem rebelde iconoclasta cedeu lugar ao homem experiente, conhecedor dos mecanismos do poder, calmo e paciente, embora ainda combativo e contestador. Hoje, aos 42 anos de idade, Bob Dylan já sabe quantas estradas deve um homem percorrer antes que se possa chamá-lo, definitivamente, de um homem.
De resto, Infidels nos apresenta um Bob Dylan amadurecido, capaz de, pela primeira vez, conciliar as duas grandes viagens que sempre empreendeu, paralelamente, ao longo da vida. De um lado, o compromisso com a crítica, com a revolução, com o engajamento político que caracterizou o Bob Dylan de princípios da década de 60. Por outro, o compromisso com a religiosidade, com o aprimoramento da alma, com o restabelecimento dos valores reais do caráter humano. O jovem rebelde iconoclasta cedeu lugar ao homem experiente, conhecedor dos mecanismos do poder, calmo e paciente, embora ainda combativo e contestador. Hoje, aos 42 anos de idade, Bob Dylan já sabe quantas estradas deve um homem percorrer antes que se possa chamá-lo, definitivamente, de um homem.
quinta-feira, 22 de março de 2012
Papo com Mário Quintana (1988)
Há em Porto Alegre um poeta
tão amado e tão velhinho, que, em vez de cuidar da cidade, a cidade é quem
cuida dele. Chama-se Mário Quintana e acaba de completar 82 anos.
Hoje, Quintana não mais caminha pela Rua da
Praia, não é mais visto em seus antológicos passeios pela Praça da Alfândega e
não mais freqüenta a redação do Correio
do Povo, como era seu costume. Também já foi a época em que parava para
assistir filmes de terror no Cinema Cacique ou inspecionar as prateleiras da
Livraria Globo para ver os lançamentos literários. Desde que foi atropelado e
fraturou o colo do fêmur em 1985, o poeta não é mais visto ao ar livre com a
antiga freqüência. As ruas, bares e rodas intelectuais de Porto Alegre se
ressentem dessa ausência e lembram, nostálgicas, do tempo em que o poeta era
personagem corriqueiro do vaivém da cidade. Mas nem por isso abriram mão desse
convívio: em seu apartamento, no Hotel Residence (onde habita a convite do
proprietário, o ex-craque Falcão), Mário Quintana mal encontra tempo para
receber tantas visitas, telefonemas, pedidos de entrevista e farta
correspondência.
“O Mário é tão nosso quanto o pôr-do-sol no Guaíba
ou uma cuia de chimarrão”, opina o motorista de táxi ao ouvir a conversa da
reportagem. Verdade é que não foi preciso dar-lhe o nome da rua e nem o do
hotel para onde íamos: bastou pedir-lhe que nos levasse ao Poeta. Porque, nesta
cidade, na cabeça do povo, poeta, poeta mesmo, de verdade, há só um. Quintana
conquistou entre a sua gente a honra e a responsabilidade de ser uma espécie de
administrador de sonhos, encarregado de criar a poesia do cotidiano da
metrópole.
Quintana gosta de dizer que foi criado em um
ambiente propício à poesia, “onde não se considerava o poeta um maluco ou uma
ovelha negra”. Nascido na remota Alegrete, quase na fronteira com a Argentina,
em 30 de julho de 1906, ele sempre esteve em contato com a literatura. O pai
recitava-lhe Camões e La Fontaine (no original), à cabeceira da cama, enquanto,
lá fora, o cometa de Halley fazia a sua passagem, “belo como um cavalo”, como
escreveu mais tarde.
Em 1926, começou a fazer traduções para a
Livraria Globo e verteu para o português obras importantes da literaturas
inglesa e francesa: entre os autores traduzidos, nomes como Joseph Conrad, Lin
Yutang, Guy de Maupassant, Proust, Virginia Woolf, Simenon, Graham Greene,
Aldous Huxley, Voltaire...
A estréia como autor se deu nesse mesmo ano,
quando venceu um concurso de contos. Entretanto, em meio à grande festa do
Modernismo, Quintana preferiu o caminho lírico da poesia tradicional e, para
horror de seus contemporâneos, escrevia sonetos. E foi com sonetos que publicou
o primeiro livro, Rua dos Cata-ventos. De lá pra cá, seguiu-se uma obra
portentosa, materializada em poemas cheios de lirismo e mordacidade, que sempre
privilegiaram a poesia do dia-a-dia e as coisas mais simples da vida:
“Mas por que você não escreve umas coisas mais
sérias?”
“Ora, tia Élida! Eu já não sou mais
criança...”
Notoriamente avesso a entrevistas e a que
devassem a sua intimidade, o poeta surpreende ao convidar o repórter para
conhecer o seu quarto de dormir: “Desde que não venha com essas coisas de
gravar.”
Na parede, sobre a cama, cartazes de Bruna Lombardi, a musa inspiradora e
inspirada, Cecília Meireles, em seus tempos de beleza hollywoodiana, e Greta Garbo.
Velhas paixões? “Velhas e novas”, responde. De volta à sala, Quintana aponta
para as duas jovens secretárias e diz: “Depois do acidente, elas são as minhas
novas pernas. Bonitas as minhas pernas, não é verdade?”
O senhor sempre afirmou que detestava entrevistas porque,
ao concedê-las, se sentia como em um interrogatório policial. Por isso, antes
de mais nada, gostaria de lhe dizer que não pretendo interrogá-lo como um
policial e nem tampouco bisbilhotar a sua intimidade...
Não vai me interrogar? Mas eu não sei falar! Eu não sou
discursivo, sou muito calado. As pessoas têm de tirar as coisas de mim com saca-rolhas.
O poeta é para dentro, os
outros é que vivem para fora.
Sendo assim,
que tal uma visão de como o poeta encara o mundo de hoje com a perspectiva de
seus 82 anos de idade e poesia?
Tirando algumas coisas, o mundo é sempre o mesmo. A gente
carrega o mundo dentro da gente, o mundo particular, individual, que não muda.
O que muda são as circunstâncias exteriores. Mas a gente não muda, nem mesmo
com o passar da idade. Eu me sinto apenas na oitava edição de mim mesmo; é o
mesmo livro. Eu não vejo diferença alguma. Hoje é mais difícil viver do que no
tempo de minha mocidade, justamente por causa dessas circunstâncias exteriores.
Naquele tempo quase não havia circunstâncias exteriores! (Gargalhadas.) Era
mais fácil viver, barbaridade! Agora é mais fácil morrer, não é mesmo? Mas
tenho razões para acreditar na sobrevivência. Creio que evoluímos. Não
acreditar na sobrevivência é como um cozinheiro que começasse a fazer uma bela
macarronada às seis horas da manhã e, ao meio-dia, atirasse tudo pela janela.
Creio que há esperança de continuarmos a evoluir. Se não a alma, ao menos a
espécie.
E a que atribui
a dificuldade de existir no mundo de hoje?
Ao excesso de
população. À miséria. Hoje, como é que um camarada pobre vai arranjar dinheiro?
Ou tirando a quina — o que não é muito fácil, há anos eu não tiro nem um terno
—, ou assaltando um banco — eu não tenho coragem para isso —, ou fazendo um
casamento rico — mas agora é tarde. São as únicas maneiras de um camarada ficar
rico hoje em dia.
O senhor sempre
gostou de jogos de azar: loto, jogo do bicho etc. Realmente deseja enriquecer?
Eu já disse num
poema que o dinheiro traz comodidade, mas não traz felicidade. Eu nunca quis
ser rico, apenas quis ter onde morar, o que comer, beber e me vestir. Para que
dinheiro para incomodar?
Mas joga na
loto. O que faria se acertasse a quina?
Antes de tudo não
contaria para ninguém! (Risos.) Depois, daria uma quantia para
instituições de caridade que tivessem a sua seriedade comprovada, metade para
meus herdeiros naturais e o resto... Para que eu ia guardar todo esse dinheiro?
Quem sabe se
doasse para a Casa de Cultura Mário Quintana?
A Casa de Cultura?
É, é muito bom aquilo, fazem muita coisa. Mas eu nunca vou lá! (Risos.) Sou
um comodista.
Então o título
do livro A Preguiça como Método de Trabalho não era uma licença poética?
Não, não sou
preguiçoso. Afinal de contas, um poeta trabalha 24 horas por dia. Mesmo que ele
não esteja fazendo nada, está acumulando histórias. O que não tem é hora fixa
de trabalho. Aliás, é muito bom fazer poemas. Acho que todo mundo devia
escrever poesia. Todo poema é uma tentativa de auto-superação, faz bem para a
alma. Pode até não dar certo, mas não tem importância. Sem dúvida, vale a pena
fazer poema... desde que não venham me mostrar depois! (Risos.)
É tão
desagradável assim ler poemas alheios?
Quando descubro um bom poeta fico tão contente que é como
se eu mesmo tivesse feito o poema. Mas a maioria... Entretanto, é necessária a
maioria. E preciso haver muitas chiquinhas-gonçalves e não-sei-quem-da-silva
para surgir uma Cecília Meirelles. E necessária toda aquela efervescência para
brotar a flor.
E quais novas flores têm nascido no canteiro da poesia nacional?
O que eu vejo de bom no Brasil atualmente é que o pessoal
não está mais se alistando em escolas. Cada um segue a sua própria linha. Se
alistar numa escola poética é o mesmo que embarcar num navio. Quando o navio
naufraga — quer dizer, quando a escola passa de moda — todo o povo pula. Agora
vai cada um no seu barquinho; quanto a chegar à outra margem, isso vai depender
do esforço de cada um. Mas eu só conheço bons poetas que já estão velhos. O
mais novo, o Walmir Ayala, também já está velho, tem cerca de 50 anos. Tem
também aquele... como é o nome daquele que me chamou de “animal da palavra”? Como
é? Ah, o Ney Duclós. O poema é bom. Diz: não sei o quê... “brontossauro da
cidade de vidro... borboleta amarela na floresta queimada! Desconfie da sua
fala mansa. Ele é o flagelo de Deus e vocês não sabem...” O rapaz é muito bom. O poema está no seu
livro Outubro.
E depois de Porta Giratória, o que vem?
Meu próximo livro reunirá 120 poemas selecionados entre
210, porque sou muito exigente comigo mesmo. Irá se chama A Cor do
Invisível. Estes poemas são de várias épocas. Tem um de 1925, quando eu
tinha apenas 19 anos.
Este título tem algum significado oculto?
Eu acho que o título é bastante claro e diz respeito ao
mundo intelectual que o poeta exprime por meio de imagens. Um livro de poemas é
um livro de figuras. Um pensador, um filósofo, pensa por meio de associação de
idéias. Já o poeta pensa por meio de associação de imagens, ou seja: dá
colorido ao mundo da invisibilidade. Não sei se expliquei direito. Mas, para
que explicar nomes? Mal comparando, é o mesmo que perguntar a Deus o que ele
quis dizer com a Criação. Eu, por exemplo, troco muito os nomes e passo muita
vergonha. Às vezes encontro um velho amigo e digo: “Artur, como vai?” E ele me
responde: “Mas eu não me chamo Artur!” E eu fico com aquela cara. Mas agora descobri
uma maneira muito boa para evitar essa situação: se encontro um amigo dos
tempos de colégio e digo: “Oh, Alfredo, como vai?”, e ele me diz que não se
chama Alfredo, eu então lhe pergunto: “Por quê?” Aí é ele quem fica com cara de
tacho! Nesta questão de nomes, entretanto, perdi uma vez para uma senhora,
dessas que perguntam o que a gente quis dizer com um poema. Queixou-se de que o
poema era nebuloso e eu lhe respondi: “E o que quer dizer uma nuvem?” E ela:
“Depende: às vezes quer dizer chuva, às vezes, bom tempo.” Tenho de confessar
que essa eu perdi. (Risos.)
E o seu affair literário com a Bruna
Lombardi, a quantas anda?
A Bruna é um elixir para mim. Ultimamente ela não me tem
escrito; anda muito vagabunda. Eu também não escrevo. Mas somos bons amigos.
Quando eu a conheci, ela tinha 24 anos. Recentemente, em primeiro de agosto,
ela fez 36. Digo isso assim porque ela é uma criatura tão extraordinária que não
se importa que a gente diga a idade dela. Gostei muito de seu último livro de
poesias, O Perigo do Dragão. É um livro em que se revela a mulher
inteira, sem preconceitos. É um livro corajoso. Também li o seu Diário do
Grande Sertão.
E que tal achou o desempenho de sua musa na minissérie da
tevê?
Ao que parece, Diadorim é um papel difícil. Mas a verdade é que não cheguei a conhecer
Guimarães Rosa e não consegui lê-lo. Aquele estilo dele de inventar palavras...
eu tinha impressão de que subia uma ladeira de cascalho. Por que não falam de
Euclides da Cunha? O pessoal se baba todo na frente do Guimarães Rosa e ignora
o Euclides da Cunha porque acha difícil. Esse pessoal moço acha difícil o Euclides
da Cunha, mas aquela orquestração dos períodos dele parecia uma sinfonia! Um
ritmo amplo... aquilo chega a ser poesia épica, transcende a prosa.
Sabe-se que, apesar de haver traduzido grandes obras da
literatura inglesa, o senhor nunca soube falar inglês. Como vão as suas aulas
de conversação?
Para traduzir, aprendi inglês por mim mesmo, sozinho: eu,
uma gramática e um dicionário. No fim, sabia ler inglês, mas lia como estava
escrito. Afinal de contas, fui ó primeiro a traduzir Virginia Woolf para o
português, uma tradução muito elogiada. Mas ainda não comecei as minhas aulas
de conversação por causa da surdez. Faz uma semana que inaugurei este novo
aparelho. Antes, entendia tudo trocado e se começasse as aulas eu aprenderia
errado. Agora posso ouvir o meu curso de inglês em discos. Inglês da
Inglaterra, bem entendido. O bom inglês é aquele falado pelos mordomos dos
filmes de suspense. (Risos.) Engraçado, né? O pessoal acha graça nessa
história de aprender inglês aos 82 anos. Mas a gente precisa fazer projetos em
longo prazo para desafiar o diabo.
E o senhor não sente saudade de seus tempos de boêmia,
seus bares de fé, amigos de copo? Como eram as suas farras adolescentes?
(Gargalhadas.) Naquele tempo não havia farra.
Bebida era chope e cachaça; agora é que inventaram essas ervas. Meu companheiro
de bar era o Augusto Meyer, grande poeta. Já o Veríssimo não bebia, não fumava,
era um santo! Nos reuníamos no Chalé da Praça Quinze. O Augusto e eu
preferíamos os bares Hubertus e Lilliput, um bar pequenininho cujos donos
gostavam muito de literatura e fiavam para os poetas — imagine que coisa
horrível! Naquela época a gente também tinha artistas prediletos. A nossa
querida era a Greta Garbo, para quem escrevi duas poesias. Uma dessas foi tão
resumida que acabou em dois versos. Não chega nem a um haikai, que tem
três. Agora, a pedidos, vou publicar no próximo livro o texto integral, os 18
versos do poema.
E como o poeta encara o advento da AIDS, a mudança dos
costumes em função da nova epidemia?
Sempre há uma peste, uma doença para flagelar a
humanidade. Deve ser um dos remotos desígnios de Deus! (Gargalhada.) Mas
é melhor deixar Deus em paz. Não sou religioso, mas acredito na segunda pessoa
da Santíssima Trindade: Jesus. Isso porque há testemunhos históricos de que ele
viveu entre nós. Agora, quanto ao Espírito Santo, creio que ninguém saiba o que
é.
Falando de política, alguma coisa de novo sob o sol?
Antes, as manifestações populares eram dissolvidas pelas
brigadas. Hoje, a oposição faz comício nas escadas da Prefeitura, fala-se.
Ameaça de golpe? Sempre houve ameaça de golpe. Sempre existirão marechais
deodoros. Mas a coisa está bem melhor.
Sei que o senhor não gosta de falar sobre a Academia,
mas...
Eu não gosto de falar da Academia porque pode parecer a
fábula das uvas verdes. O que aconteceu de fato nos episódios de minhas
candidaturas é que o pessoal aqui do Sul achou que deveria haver outro gaúcho
na Academia além do Viana Moog. Fui indicado. O que podia fazer? Dizer que não?
A verdade é que fiquei encantado quando não fui eleito. Mas não pretendo falar
sobre a Academia. Nem mesmo dizer que não pretendo falar.
As crianças e a infância estão sempre presentes em sua
poesia e...
Certa vez, quando ainda morava no Hotel Majestic, eu
estava na porta de um bar e uma guriazinha de seus 17 anos atravessou a rua,
veio em minha direção e disse: “Eu vim aqui só para lhe dar um oizinho’.” Eu
fiquei encantado com o “oizinho”. Antigamente as crianças não se animavam a
falar com os adultos. Agora é o contrário. Os adultos é que têm que se calar.
Poeta...
Vai me perguntar mais alguma coisa? É que eu estou tão
cansado...
Entrevista publicada em Ele Ela, setembro de 1988
Entrevista publicada em Ele Ela, setembro de 1988
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