domingo, 25 de março de 2012

Carroll e Alice



Em uma bela tarde de verão, em plena Inglaterra Vitoriana, o reverendo Charles Lutwidge Dodgson, professor de matemática de uma das mais conceituadas escolas de Oxford, e seu amigo, o reverendo Robinson Duckworth, acompanharam as três filhas do deão Henry George Liddell, capelão do príncipe George, em um longo passeio de bote até o povoado de Godstow. No meio do caminho, à sombra de um frondoso carvalho à margem do rio Cherwell, as meninas Charlotte, de 13 anos, Alice Pleasance, de 10, e Edith, de 8, testemunharam a criação de uma das maiores obras da literatura universal enquanto ouviam, embevecidas, às incríveis Aventuras de Alice no País das Maravilhas, narradas de improviso pelo reverendo Dodgson, aliás, o genial escritor Lewis Carroll, então com 30 anos de idade.
 “Tomamos chá à beira do rio e não voltamos para a Igreja de Cristo antes de quinze para as oito, quando as convidei aos meus aposentos para verem a minha coleção de microfotografias. Só as levamos de volta para o decanato por volta das nove horas.” Assim Carroll registrou o passeio em seu diário, no dia 4 de julho de 1862. Em uma inserção posterior, acrescentou: “Ocasião em que lhes narrei as aventuras de Alice”. Foi a pedido da própria Alice Pleasance que Carroll escreveu e ilustrou o primeiro manuscrito daquela história inventada em uma rara tarde de sol londrina.
Num estilo elegante, repleto de fino senso de humor e ironia, pleno de trocadilhos e sutilezas intraduzíveis, Carroll conseguiu escrever um conto de fadas que aliava o fantástico à crítica social, e que vem encantando crianças e adultos já há mais de 120 anos. Da mesma forma que escapou à rígida censura vitoriana — que não conseguiu perceber na obra nítidas alusões e veladas críticas à realeza britânica e à sociedade puritana da época — a obra permaneceu relativamente imune a uma análise psicológica mais profunda até bem recentemente, quando a visão freudiana lançou seus holofotes sobre suas possíveis interpretações. E o excêntrico criador de Alice surpreendeu mais uma vez.
Segundo a escritora inglesa Virgínia Woolf, “o reverendo Dodgson não teve vida”. A princípio, a afirmação pode parecer muito severa. Contudo, seus diários e cartas, assim como o depoimentos de seus contemporâneos, não deixam dúvidas de que ele era um homem extremamente tímido e solitário, cuja introversão induziu a uma quase completa sublimação de sua vida sexual. Carroll era misógino e, à exceção de um pequeno affair com a famosa atriz Ellen Terry, nunca demonstrou interesse por mulher alguma. Sua obsessão eram as jovens filhas da nobreza vitoriana, meninas cujas idades variavam dos 7 aos 17 anos e a quem ele dedicava o seu mais profundo amor platônico.
Adorava entretê-las com histórias fantásticas, brincadeiras, mágicas e quebra-cabeças. Segundo Irene Barnes, belíssima atriz de 15 anos com quem Lewis Carroll passou uma semana em uma casa de praia, “ele tinha um profundo amor pelas crianças, embora eu esteja inclinada a acreditar que não as entendia muito bem. Seu maior prazer era me ensinar seu Jogo da Lógica, o que tornava as tardes bastante aborrecidas”.
Carroll tinha também o hábito de fotografar suas amiguinhas vestidas com trajes de época ou em farrapos — lembrando as crianças vadias dos romances de Dickens — em cenários produzidos no estúdio de casa. 
É importante frisar que o escritor contava com a total aprovação dos pais de suas modelos. Na Inglaterra daquela época, idealizavam-se a beleza e a pureza virginal das meninas e era comum que as crianças andassem nuas nos dias mais quentes verão. O próprio Carrol abominava a idéia de que tal atividade escondesse algo de libidinoso, e certamente  ficaria muito chocado caso fosse indagado a respeito. Mas não há como ignorar o caráter estritamente heterossexual de suas fotografias. Carroll costumava dizer que adorava crianças, à exceção dos meninos, que considerava estúpidos e barulhentos.
Carroll fotografou uma infinidade de pequenas modelos. Entretanto, nenhuma lhe falou tão alto ao coração quanto a bela Alice Pleasance Lidell , sua aluna, musa e paixão — a menina que lhe inspirou um dos mais belos contos de fadas de todos os tempos. “Já tive muitas amiguinhas, mas nenhuma igual a você”, escreveu certa vez. De fato, os vários passeios que fez em companhia da filha do deão Liddell marcaram-no para sempre. “Muitos anos se passaram desde aquela tarde dourada, mas ainda me lembro como se fosse ontem: lá em cima, o céu azul e sem nuvens, o espelho d'água do rio, o barco seguindo placidamente o seu caminho, e aqueles três rostinhos ansiosos de notícias da terra das maravilhas.” 
Em diversas ocasiões, o autor afirmou que escrever Alice fora um puro ato de amor, dedicado a alguém que sintetizava a essência da pureza e da castidade infantis. Em seu romance Sylvie and Bruno, Carroll escreveu: “Foi numa exposição em Londres que eu, tentando atravessar uma multidão, subitamente me encontrei face a face com uma criança de beleza celestial.” Era esse ideal de pureza e frescor infantis que ele julgava ter encontrado na jovem Alice. Segundo o biógrafo William Empson, “o mundo adulto mostrava-se penoso para o artista, que procurava sobreviver mantendo-se ligado à infância.” E o próprio Carroll afirmou certa vez: “Daria de bom grado toda a riqueza que os anos acumularam, o lento resultado da decadência da vida, para voltar a ser uma criança durante um único dia de verão.”
Carroll conheceu Alice quando ela tinha apenas 7  anos. Ele foi seu professor, amigo e correspondente. Segundo a biógrafa Anne Clark, Alice Liddell tipificava a essência da mulher vitoriana. Freqüentava os melhores colégios, vestia as melhores roupas, gostava de música, desenho e pintura. Segundo Clark, “ela fazia o tipo de coisas que se faz quando temos criados para cuidar da gente.” Alice viveu uma época de abundância e teve tempo de sobra para apurar a sua cultura e desfrutar dos confortos e regalias do florescente Império Britânico.
Ao que tudo indica, no entanto, a mãe de Alice não aprovava a estranha relação entre sua filha e o reverendo, e passou a desencorajá-la. Em outubro de 1862, Carroll escreveu em seu diário: “Desde o episódio com Lorde Newry, eu não tenho mais a bênção da Sra. Liddell.” Seja lá o que possa ter acontecido nessa época, e seja lá quem tenha sido esse tal Lorde Newry, o fato é que ocorreu pouco tempo depois daquele antológico passeio de barco que W. H. Auden observou ter sido “um dos dias mais memoráveis da história da literatura”.
Desde então, Carroll e Alice só puderam se comunicar por escrito. O escritor escreveu copiosamente para sua jovem musa, mas todas essas cartas acabaram queimadas pela Sra. Liddell, disposta a pôr um fim ao excêntrico relacionamento. A partir daí, a única forma que Carroll encontrou para ver Alice foi através de uma pequena janela em uma das salas da biblioteca da Igreja de Cristo, que se abria para o jardim do decanato, lugar onde ela costumava jogar croquet. Ali, por tardes a fio, Carroll se perdeu em dedicada contemplação à menina de seus sonhos.
A psicanalista norte-americana Phyllis Greenacre afirma que Carroll possuía um complexo de Édipo mal resolvido. Segundo ela, é possível que o reverendo identificasse a mãe com as meninas, de modo que, em toda a trama do romance, Alice — e não a Rainha de Copas — representasse o real símbolo materno. Também assinala que a diferença de idade entre Alice e Carroll era quase a mesma que havia entre ele e sua mãe, e que esse tipo de inversão é muito comum.
Carroll era o filho mais velho de uma família numerosa, o que, segundo alguns biógrafos, pode ter provocado algum tipo de complexo de rejeição no escritor. Além disso, ele era gago, e esse defeito certamente o impediu de exercer a profissão de diácono e o fez tornar-se uma pessoa muito retraída. Vestia-se de preto, comia pouquíssimo e era extremamente reservado em ocasiões sociais. O pseudônimo com o qual assinava as suas obras literárias — ele só usava o nome verdadeiro em livros didáticos e tratados de matemática — lhe servia como escudo e era uma brincadeira, um jogo de traduções e re-traduções de seus dois primeiros nomes. Segundo o biógrafo Jean Gattegno, “a ausência total de celebridade que marcou seus 48 anos em Oxford não foi acaso nem escândalo: ele não pretendia se fazer notar, e  conseguiu. Oxford, assim como todos os outros meios que freqüentou, foi como um ponto de passagem e não de permanência. E, se o preço a pagar era o esquecimento, não há dúvida de que ele o tenha pago de bom grado. Lá, conheceu as benesses da obscuridade e as delícias do anonimato”.
Quando Alice Liddell já tinha 17 anos, Carroll encontrou-a por acaso no pátio da escola e não gostou do que viu. Devido às transformações da puberdade, ela perdera aquilo que mais apaixonara o escritor: sua encantadora pureza infantil. Em 1880, Carroll renunciou à fotografia e queimou toda a sua coleção de nus, guardando apenas as fotos em que as modelos estão vestidas e que, segundo ele, mereciam ser preservadas.
No último ano de vida, o reverendo Charles Dodgson recusou-se a receber todas as cartas que tivessem Lewis Carroll como destinatário. Morreu de gripe, no ano de 1898, sem nunca ter realizado o seu grande amor, deixando para o mundo o legado de sua obra genial. Para ele caberiam perfeitamente as últimas palavras do personagem Humbert Humbert, no romance Lolita, de Vladimir Nabokov: “Estou pensando em auroques e anjos, no segredo de duráveis pigmentos, no refúgio das artes; pois esta é a única imortalidade da qual poderemos compartilhar, minha Lolita.”

sexta-feira, 23 de março de 2012

Estudo


O profeta do Juízo Final (1984)


EM 1961, QUANDO O JOVEM DYLAN deixou Dinkytown, bairro estudantil de Minneapolis, em direção à Costa Leste dos Estados Unidos, ele pretendia realizar duas viagens diferentes, apesar de seguirem o mesmo itinerário. Em Nova Jersey, pretendia visitar o legendário Woody Guthrie, que estava internado em um hospital sofrendo do mal de Huntington. Woodie era um compositor popular de voz nasalada, e que costumava se apresentar com uma harmônica acoplada junto à boca. Suas músicas eram blues de protesto, que falavam de uma época de depressão, greves e injustiças sociais.
Vista sob esse ângulo, a viagem de Dylan tomava ares de uma peregrinação mística. Para ele, Guthrie era uma espécie de modelo e objeto de adoração. Por outro lado, Dylan almejava o fulgor cultural do Greenwich Village, bairro boêmio de Nova York, e chegava ainda em tempo de organizar a festa. A década do desvario mal começava e Bob Dylan, aos 19 anos, se colocava, quase involuntariamente, bem no olho do grande furacão que viria a seguir. Vista sob esse ponto de vista, sua viagem se aproximava mais de uma campanha política. Ele vinha para participar.
Certas pessoas possuem a capacidade de estar sempre nos lugares certos, às horas certas. Vai nisso um tanto de mérito e um tanto de sorte. Dylan era esse tipo de gente e possuía ambas as qualidades. Mas, quando chegou a Nova York e passou a fazer peregrinações regulares para visitar o mestre acamado, Dylan já trazia em si as sementes do Armagedon, da batalha do Juízo Final.
Bob Dylan tinha 6 seis anos quando sua família se mudou de Duluth, no estado de Minnesota, para a cidade de Hibbing, cuja principal atividade econômica era mineração de ferro, e que se orgulhava de ser “o maior buraco já feito pelo homem”. Em Hibbing, o velho Abraham Zimmerman, pai de Bob Dylan (então Robert Zimmerman) geria uma loja de ferragens. O menino viveu uma infância repleta de episódios românticos, tendo como pano de fundo as estradas de ferro, a vida dos mineiros, dos vagabundos de estrada... e suas músicas. Principalmente suas músicas.
Com 10 anos, Dylan já tocava piano e harmônica. Aos 12 conseguiu uma velha guitarra Sears Roebuck. Por essa época, estourava o rock’n’roll e Bill HaIley e Seus Cometas lançavam o Rock Around The Clock, trilha do filme Sementes da Violência. James Dean já agitava com sua furiosa rebeldia e Elvis Presley dava os primeiros passinhos. 
Bob Dylan se identificava especialmente com o estilo rebelde-rabioso de James Dean. A guitarra surrada e a motocicleta Harley Davidson eram seu atestado de fidelidade ideológica aos ídolos da época.
No jovem roqueiro da década de 50, há também quem encontre semelhanças e influências de Holden Caulfield, o personagem do romance O Apanhador no Campo de Centeio de J. D. Salinger.
Em 1950, Dylan deixou Hibbing e foi para o Colégio de Artes de Minneapolis, em Dinkytown. Ali, começou a freqüentar os café do bairro, como a Bastile e o St. Pauls Purple Union, verdadeiros focos de música folk e membros  da Beat Generation. Seguindo uma tendência da época, Dylan vendeu a velha guitarra e comprou um violão acústico. Como passava por uma fase de reformas, o jovem Robert Zimmerman aproveitou para mudar também o seu nome para Bob Dylan. Tanto a escolha do nome quanto os motivos da troca estão cercados de controvérsias e desmentidos, embora muitos acreditem que objetivasse esconder sua origem judaica.
Portanto, ao chegar a Nova York nos primórdios da década de 60, Dylan já vinha com uma sólida herança de rebeldia e com os fundamentos de todos os movimentos que engendraria ou dos quais tomaria parte a seguir. Em Greenwich Village, imerso em um ambiente de grande concentração cultural, entre beatniks, grupos de música de protesto e artistas vanguardistas, Dylan tocou em clubes de música folk e fez o seu début profissional em abril de 1961, no Gerde’s Folk City. Na platéia, o crítico de música do New York Times, Robert Shelton, aplaudiu entusiasticamente. Pouco depois, Dylan assinou contrato com a Columbia, onde foi introduzido pelo crítico e produtor John Harnmond.
O primeiro disco, Bob Dylan, lançado em março de 1962, era uma coletânea de blues e folks populares, interpretados em seu estilo rascante e inconfundível. Entretanto, nas duas únicas músicas de sua autoria, Song to Woodie e Taikin’ New York, Dylan dava mostras do que pretendia fazer dali em diante: seguindo a mesma linha de Woodie Guthrie, ele levava o trabalho do mestre alguns passos além. 
O LP, entretanto, foi um retumbante fracasso e vendeu apenas cinco mil exemplares. O produtor John Hammond foi chamado às pressas pelo diretor-geral da Columbia, que afirmou: “Vamos ter de cancelar o nosso contrato com o tal Dylan.” Mas Hammond sabia o artista que tinha em mãos e foi categórico: “Só se for por cima do meu cadáver!” O fato é que, apesar do fracasso do disco, a Columbia insistiu e lançou o antológico The Freewheelin’ Bob Dylan no ano seguinte. O álbum incluía canções pacifistas e de protesto, tais como A Hard Rain Is Gonna Fall e Masters of War, todas de sua autoria. Entre elas, sobressaía o hit que se tornou o hino de toda uma geração, a música Blowin’ in the Wind. A versão gravada por Peter, Paul and Mary em compacto simples vendeu 320 mil exemplares em apenas uma semana. Dylan começava a se tornar uma lenda.
Com The Times They Are A-Changin’, ele retornou à carga com mais vigor. Atacou o racismo e o belicismo, e lançou o arcabouço filosófico da chamada contracultura. A faixa-título deste LP de 1964 prega: “Mães e pais de toda a nação, não critiquem o que não podem entender. Seus filhos e filhas estão além de seu controle. A antiga estrada de vocês está ficando velha rapidamente. Saiam da nova, se não conseguem ajudar em nada, porque os tempos estão mudando.”
A essa altura, as músicas de Dylan eram cantadas em todas as manifestações, passeatas e concentrações populares dentro e fora dos Estados Unidos. Personificavam a revolta das minorias e os anseios de grande parte dos jovens daquela época. Apregoavam a revolução iminente.
Dylan conheceu Albert Grossman, o empresário que o transformou em uma indústria. Por seu intermédio, Dylan foi apresentado a Sarah Lowndess, ex-modelo da revista Playboy americana, amiga de Allen Ginsberg (o poeta beat apologista do LSD), dada a esoterismos, estudiosa do zen budismo e do I-Ching. Sara morava com a filha no Chelsea Hotel, para onde Dylan se mudou com armas e bagagens. Acabaram se casando em novembro de 1965.
Com a excursão à Europa realizada ainda naquele ano, Dylan conheceu os Beatles, os Rolling Stones e The Animais. O rock inglês redespertou o seu gosto pelos instrumentos elétricos, que havia abandonado em troca do folk acústico. Com o álbum Bringing it All Back Home, Dylan começava a se desligar do movimento de protesto folk. Suas músicas se tornavam mais herméticas, com imagens delirantes, quase surrealistas. Mr. Tambourine Man, com suas guitarras elétricas, foi considerada oficialmente a primeira música folk rock da história.
Para desespero das patrulhas ideológicas do folk puro, Dylan lançava o álbum Highway 61 Revisited e o compacto simples Like a Rolling Stone, com o qual confirmava sua adesão ao rock. Ao se apresentar no Festival de Newport, Dylan foi agraciado com a maior vaia de sua vida, repetida logo após no Forest Hill Stadium. O público, enfurecido com a guinada radical do ídolo, gritava aos brados: “Queremos Dylan!” e “Traidor!” e exigia que ele cantasse os antigos sucessos. Mas, ao mesmo tempo em que desapontava a um público restrito e conservador, ganhava a atenção de milhares de adoradores do rock. Em fins de 1966, gravou o primeiro álbum duplo não antológico da história do rock, Blonde on Bonde, que ele mesmo considerou certa vez como um de seus trabalhos  mais completos e gratificantes.
Até então Dylan havia cumprido parte de sua jornada. Suas músicas refletiam, catalisavam e induziam à revolução generalizada da década. Foi revolucionário, inclusive, dentro de sua própria revolução, quando optou pela linguagem eletrificada do rock, em contraponto ao folk rural. Mas ainda faltava um longo caminho a ser percorrido.
Em julho de 1966, Dylan sofreu um grave acidente de motocicleta que quase lhe custou a vida. A absoluta falta de notícias a seu respeito induziu a suspeitas de que havia morrido. Entretanto, um ano depois, Dylan convocava os membros da The Band e realizava uma série de gravações no porão de sua casa, posteriormente editadas como The Basement Tapes. Até o dia 7 de maio de 1967, ninguém sabia onde Bob Dylan estava, qual o seu estado de saúde ou, mesmo, se estava vivo. Após uma busca persistente, o repórter Michael Lachetta do Daily News, localizou Dylan em um refúgio, a 160 quilômetros de Nova York, nas montanhas perto da colônia de arte de Woodstock. Lachetta encontrou um novo Dylan, mais calmo, fortalecido espiritualmente, ocupado com a poesia, a leitura e a música. “O que eu tenho feito”, declarou Dylan na ocasião, “é conversar com alguns amigos mais chegados, me informar a respeito do mundo exterior, ler livros sobre os quais você nunca ouviu falar, e pensar em meu destino. Principalmente, tenho trabalhado para realizar uma música melhor, pois, afinal de contas, ela é o sentido de minha existência.
Pouco tempo depois, no início de 1968, ele ressurgia com o álbum John Wesley Harding, que novamente surpreendeu os fãs.
A antiga agressividade panfletária havia sido substituída por uma pregação quase religiosa. Dylan se transformava novamente e, mesmo a sua voz, antes rascante, ficara mais suave. Dylan se defendia: “Não houve mudança alguma em modo de cantar; apenas deixei de fumar. Pare de fumar e você será capaz de cantar como Caruso.” O álbum seguinte, no entanto, Nashville Skyline lançado em 1969, confirmava haver mais na música de Dylan além de novos hábitos de saúde. O disco persistia no novo estilo — bem definido na faixa Lay Lady Lay — açucarado e dócil.
Os álbuns Self Portrait e New Morning antecederam a um outro período de silêncio e afastamento do compositor,  talvez ressentido com as críticas de Joan Baez e outros que o acusavam de alienação, participou do Concerto para Bangladesh, produzido por George Harrison, e do festival da Ilha de Wight. Apenas em 1974, apareceu com o álbum Planet Waves. Mais uma vez, os fãs não receberam com bons olhos o novo estilo adotado pelo ídolo; místico, defensor da resistência passiva, pregador dos princípios de tolerância e amor ao próximo.
Dylan passou os quatro anos seguintes procurando restabelecer os vínculos com seu público. Voltou a gravar antigos sucessos e retornou à canção de protesto com a música Hurricane, na qual defendia o ex-lutador de boxe Rubin Hurricane Carter, injustamente condenado por três crimes ocorridos em Nova Jersey.
Após uma experiência cinematográfica no filme Pat Garret and Billy The Kid, de Sam Peckinpah, Dylan decidiu  realizar o  próprio filme. Rodado em 1976, Renado and Clara foi lançado em 1978, com três horas e 52 minutos de duração. Escrito, dirigido e produzido por Dylan, o filme trata de uma relação amorosa triangular entre Renaldo — obviamente identificável como o próprio Bob Dylan — Clara — sua esposa Sarah — e a mulher de branco — personificando a cantora Joan Baez, com quem Dylan tivera um caso no início de sua carreira, ainda em Greenwich Village.
A nova fase se definiu claramente quando Dylan declarou que se convertera ao cristianismo. Aceitara Cristo em seu coração após uma visão: “Havia em meu quarto uma presença tão forte que não poderia ser ninguém mais além de Jesus Cristo.” Um ano antes desta declaração, Dylan já havia se divorciado de Sarah, que saiu do casamento com uma gorda indenização de 12,5 milhões de dólares. Entre as justificativas para o divórcio requerido, Sarah alegou que Dylan abrigara uma mulher no quarto de hóspedes de sua casa e que chegara ao descaramento de convidá-la à mesa para comer com o resto da família. Teria sido essa mesma mulher quem o convencera a se converter à Igreja Fundamentalista.
O   álbum Slow Train Coming, lançado em 78, pontilhado de gospels — música que faz parte dos cultos protestantes nas igrejas norte-americanas — era descaradamente fundamentalista. Saved, álbum editado em 1979, e Shot of Love, de 1981, persistiram na mesma linha religiosa que marcou essa última fase de sua carreira.
Hoje Bob Dylan está de volta. O álbum Infidels, lançado no Brasil agora em janeiro de 1984, ainda apresenta um Dylan fiel a Cristo, aferrado às mesmas doutrinas que propagou com Slow Train Coming, Saved e Shot of Love. Entretanto, durante as gravações de Infidels, Dylan declarou: “Religião é uma palavra suja. Não significa absolutamente nada. A Coca-Cola é uma religião. O petróleo é o aço são religiões. Em nome da religião as pessoas têm sido estupradas, assassinadas e pervertidas. A religião de hoje é a servidão de amanhã.”
Dylan também não se mostrou disposto a uma volta à canção de protesto. Ao ser questionado se o disco apresentaria alguma canção política, Dylan foi categórico: “Não escrevo canções políticas. Canções políticas são slogans. Nem mesmo sei o que é política. É como uma serpente com a cauda na boca, um carrossel de pecados.”
Mas em Infidels, contrariando o próprio compositor,  encontramos canções evangelizadas (como Man of Peace) mas também nos surpreendemos com outras altamente explosivas, de protesto e crítica ao estabelecido,  como Union Sundown. Ao ser posto contra a parede pelo repórter do semanário inglês New Musical Express, Dylan irritou-se: “As pessoas querem saber onde estou e qual é a minha, porque não sabem onde estão, nem qual é a delas.” 
De resto, Infidels nos apresenta um Bob Dylan amadurecido, capaz de, pela primeira vez, conciliar as duas grandes viagens que sempre empreendeu, paralelamente, ao longo da vida. De um lado, o compromisso com a crítica, com a revolução, com o engajamento político que caracterizou o Bob Dylan de princípios da década de 60. Por outro, o compromisso com a religiosidade, com o aprimoramento da alma, com o restabelecimento dos valores reais do caráter humano. O jovem rebelde iconoclasta cedeu lugar ao homem experiente, conhecedor dos mecanismos do poder, calmo e paciente, embora ainda combativo e contestador. Hoje, aos 42 anos de idade, Bob Dylan já sabe quantas estradas deve um homem percorrer antes que se possa chamá-lo, definitivamente, de um homem. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Papo com Mário Quintana (1988)


“Era uma vez, em um conto de fadas, uma pastorinha tão pequenina que, em vez de cuidar das ovelhas, as ovelhas é que cuidavam dela.” (Mário Quintana, Porta giratória, Editora Globo, 1988.) 

Há em Porto Alegre um poeta tão amado e tão velhinho, que, em vez de cuidar da cidade, a cidade é quem cuida dele. Chama-se Mário Quintana e acaba de completar 82 anos.
Hoje, Quintana não mais caminha pela Rua da Praia, não é mais visto em seus antológicos passeios pela Praça da Alfândega e não mais freqüenta a redação do Correio do Povo, como era seu costume. Também já foi a época em que parava para assistir filmes de terror no Cinema Cacique ou inspecionar as prateleiras da Livraria Globo para ver os lançamentos literários. Desde que foi atropelado e fraturou o colo do fêmur em 1985, o poeta não é mais visto ao ar livre com a antiga freqüência. As ruas, bares e rodas intelectuais de Porto Alegre se ressentem dessa ausência e lembram, nostálgicas, do tempo em que o poeta era personagem corriqueiro do vaivém da cidade. Mas nem por isso abriram mão desse convívio: em seu apartamento, no Hotel Residence (onde habita a convite do proprietário, o ex-craque Falcão), Mário Quintana mal encontra tempo para receber tantas visitas, telefonemas, pedidos de entrevista e farta correspondência.
“O Mário é tão nosso quanto o pôr-do-sol no Guaíba ou uma cuia de chimarrão”, opina o motorista de táxi ao ouvir a conversa da reportagem. Verdade é que não foi preciso dar-lhe o nome da rua e nem o do hotel para onde íamos: bastou pedir-lhe que nos levasse ao Poeta. Porque, nesta cidade, na cabeça do povo, poeta, poeta mesmo, de verdade, há só um. Quintana conquistou entre a sua gente a honra e a responsabilidade de ser uma espécie de administrador de sonhos, encarregado de criar a poesia do cotidiano da metrópole.
Quintana gosta de dizer que foi criado em um ambiente propício à poesia, “onde não se considerava o poeta um maluco ou uma ovelha negra”. Nascido na remota Alegrete, quase na fronteira com a Argentina, em 30 de julho de 1906, ele sempre esteve em contato com a literatura. O pai recitava-lhe Camões e La Fontaine (no original), à cabeceira da cama, enquanto, lá fora, o cometa de Halley fazia a sua passagem, “belo como um cavalo”, como escreveu mais tarde.
Em 1926, começou a fazer traduções para a Livraria Globo e verteu para o português obras importantes da literaturas inglesa e francesa: entre os autores traduzidos, nomes como Joseph Conrad, Lin Yutang, Guy de Maupassant, Proust, Virginia Woolf, Simenon, Graham Greene, Aldous Huxley, Voltaire...
A estréia como autor se deu nesse mesmo ano, quando venceu um concurso de contos. Entretanto, em meio à grande festa do Modernismo, Quintana preferiu o caminho lírico da poesia tradicional e, para horror de seus contemporâneos, escrevia sonetos. E foi com sonetos que publicou o primeiro livro, Rua dos Cata-ventos. De lá pra cá, seguiu-se uma obra portentosa, materializada em poemas cheios de lirismo e mordacidade, que sempre privilegiaram a poesia do dia-a-dia e as coisas mais simples da vida:
“Mas por que você não escreve umas coisas mais sérias?”
“Ora, tia Élida! Eu já não sou mais criança...”
Notoriamente avesso a entrevistas e a que devassem a sua intimidade, o poeta surpreende ao convidar o repórter para conhecer o seu quarto de dormir: “Desde que não venha com essas coisas de gravar.”
Na parede, sobre a cama, cartazes de Bruna Lombardi, a musa inspiradora e inspirada, Cecília Meireles, em seus tempos de beleza hollywoodiana, e Greta Garbo. Velhas paixões? “Velhas e novas”, responde. De volta à sala, Quintana aponta para as duas jovens secretárias e diz: “Depois do acidente, elas são as minhas novas pernas. Bonitas as minhas pernas, não é verdade?”

O senhor sempre afirmou que detestava entrevistas porque, ao concedê-las, se sentia como em um interrogatório policial. Por isso, antes de mais nada, gostaria de lhe dizer que não pretendo interrogá-lo como um policial e nem tampouco bisbilhotar a sua intimidade...

Não vai me interrogar? Mas eu não sei falar! Eu não sou discursivo, sou muito calado. As pessoas têm de tirar as coisas de mim com saca-rolhas. O poeta é para dentro, os outros é que vivem para fora.

Sendo assim, que tal uma visão de como o poeta encara o mundo de hoje com a perspectiva de seus 82 anos de idade e poesia?

Tirando algumas coisas, o mundo é sempre o mesmo. A gente carrega o mundo dentro da gente, o mundo particular, individual, que não muda. O que muda são as circunstâncias exteriores. Mas a gente não muda, nem mesmo com o passar da idade. Eu me sinto apenas na oitava edição de mim mesmo; é o mesmo livro. Eu não vejo diferença alguma. Hoje é mais difícil viver do que no tempo de minha mocidade, justamente por causa dessas circunstâncias exteriores. Naquele tempo quase não havia circunstâncias exteriores! (Gargalhadas.) Era mais fácil viver, barbaridade! Agora é mais fácil morrer, não é mesmo? Mas tenho razões para acreditar na sobrevivência. Creio que evoluímos. Não acreditar na sobrevivência é como um cozinheiro que começasse a fazer uma bela macarronada às seis horas da manhã e, ao meio-dia, atirasse tudo pela janela. Creio que há esperança de continuarmos a evoluir. Se não a alma, ao menos a espécie.

E a que atribui a dificuldade de existir no mundo de hoje?

Ao excesso de população. À miséria. Hoje, como é que um camarada pobre vai arranjar dinheiro? Ou tirando a quina — o que não é muito fácil, há anos eu não tiro nem um terno —, ou assaltando um banco — eu não tenho coragem para isso —, ou fazendo um casamento rico — mas agora é tarde. São as únicas maneiras de um camarada ficar rico hoje em dia.

O senhor sempre gostou de jogos de azar: loto, jogo do bicho etc. Realmente deseja enriquecer?

Eu já disse num poema que o dinheiro traz comodidade, mas não traz felicidade. Eu nunca quis ser rico, apenas quis ter onde morar, o que comer, beber e me vestir. Para que dinheiro para incomodar?

Mas joga na loto. O que faria se acertasse a quina?

Antes de tudo não contaria para ninguém! (Risos.) Depois, daria uma quantia para instituições de caridade que tivessem a sua seriedade comprovada, metade para meus herdeiros naturais e o resto... Para que eu ia guardar todo esse dinheiro?

Quem sabe se doasse para a Casa de Cultura Mário Quintana?

A Casa de Cultura? É, é muito bom aquilo, fazem muita coisa. Mas eu nunca vou lá! (Risos.) Sou um comodista.

 Então o título do livro A Preguiça como Método de Trabalho não era uma licença poética?

Não, não sou preguiçoso. Afinal de contas, um poeta trabalha 24 horas por dia. Mesmo que ele não esteja fazendo nada, está acumulando histórias. O que não tem é hora fixa de trabalho. Aliás, é muito bom fazer poemas. Acho que todo mundo devia escrever poesia. Todo poema é uma tentativa de auto-superação, faz bem para a alma. Pode até não dar certo, mas não tem importância. Sem dúvida, vale a pena fazer poema... desde que não venham me mostrar depois! (Risos.)

É tão desagradável assim ler poemas alheios?

Quando descubro um bom poeta fico tão contente que é como se eu mesmo tivesse feito o poema. Mas a maioria... Entretanto, é necessária a maioria. E preciso haver muitas chiquinhas-gonçalves e não-sei-quem-da-silva para surgir uma Cecília Meirelles. E necessária toda aquela efervescência para brotar a flor.

E quais novas flores têm nascido no canteiro da poesia nacional?

O que eu vejo de bom no Brasil atualmente é que o pessoal não está mais se alistando em escolas. Cada um segue a sua própria linha. Se alistar numa escola poética é o mesmo que embarcar num navio. Quando o navio naufraga — quer dizer, quando a escola passa de moda — todo o povo pula. Agora vai cada um no seu barquinho; quanto a chegar à outra margem, isso vai depender do esforço de cada um. Mas eu só conheço bons poetas que já estão velhos. O mais novo, o Walmir Ayala, também já está velho, tem cerca de 50 anos. Tem também aquele... como é o nome daquele que me chamou de “animal da palavra”? Como é? Ah, o Ney Duclós. O poema é bom. Diz: não sei o quê... “brontossauro da cidade de vidro... borboleta amarela na floresta queimada! Desconfie da sua fala mansa. Ele é o flagelo de Deus e vocês não sabem...” O rapaz é muito bom. O poema está no seu livro Outubro.

E depois de Porta Giratória, o que vem?

Meu próximo livro reunirá 120 poemas selecionados entre 210, porque sou muito exigente comigo mesmo. Irá se chama A Cor do Invisível. Estes poemas são de várias épocas. Tem um de 1925, quando eu tinha apenas 19 anos.

Este título tem algum significado oculto?

Eu acho que o título é bastante claro e diz respeito ao mundo intelectual que o poeta exprime por meio de imagens. Um livro de poemas é um livro de figuras. Um pensador, um filósofo, pensa por meio de associação de idéias. Já o poeta pensa por meio de associação de imagens, ou seja: dá colorido ao mundo da invisibilidade. Não sei se expliquei direito. Mas, para que explicar nomes? Mal comparando, é o mesmo que perguntar a Deus o que ele quis dizer com a Criação. Eu, por exemplo, troco muito os nomes e passo muita vergonha. Às vezes encontro um velho amigo e digo: “Artur, como vai?” E ele me responde: “Mas eu não me chamo Artur!” E eu fico com aquela cara. Mas agora descobri uma maneira muito boa para evitar essa situação: se encontro um amigo dos tempos de colégio e digo: “Oh, Alfredo, como vai?”, e ele me diz que não se chama Alfredo, eu então lhe pergunto: “Por quê?” Aí é ele quem fica com cara de tacho! Nesta questão de nomes, entretanto, perdi uma vez para uma senhora, dessas que perguntam o que a gente quis dizer com um poema. Queixou-se de que o poema era nebuloso e eu lhe respondi: “E o que quer dizer uma nuvem?” E ela: “Depende: às vezes quer dizer chuva, às vezes, bom tempo.” Tenho de confessar que essa eu perdi. (Risos.)

E o seu affair literário com a Bruna Lombardi, a quantas anda?

A Bruna é um elixir para mim. Ultimamente ela não me tem escrito; anda muito vagabunda. Eu também não escrevo. Mas somos bons amigos. Quando eu a conheci, ela tinha 24 anos. Recentemente, em primeiro de agosto, ela fez 36. Digo isso assim porque ela é uma criatura tão extraordinária que não se importa que a gente diga a idade dela. Gostei muito de seu último livro de poesias, O Perigo do Dragão. É um livro em que se revela a mulher inteira, sem preconceitos. É um livro corajoso. Também li o seu Diário do Grande Sertão.
          
E que tal achou o desempenho de sua musa na minissérie da tevê?

Ao que parece, Diadorim é um papel difícil.  Mas a verdade é que não cheguei a conhecer Guimarães Rosa e não consegui lê-lo. Aquele estilo dele de inventar palavras... eu tinha impressão de que subia uma ladeira de cascalho. Por que não falam de Euclides da Cunha? O pessoal se baba todo na frente do Guimarães Rosa e ignora o Euclides da Cunha porque acha difícil. Esse pessoal moço acha difícil o Euclides da Cunha, mas aquela orquestração dos períodos dele parecia uma sinfonia! Um ritmo amplo... aquilo chega a ser poesia épica, transcende a prosa.

Sabe-se que, apesar de haver traduzido grandes obras da literatura inglesa, o senhor nunca soube falar inglês. Como vão as suas aulas de conversação?

Para traduzir, aprendi inglês por mim mesmo, sozinho: eu, uma gramática e um dicionário. No fim, sabia ler inglês, mas lia como estava escrito. Afinal de contas, fui ó primeiro a traduzir Virginia Woolf para o português, uma tradução muito elogiada. Mas ainda não comecei as minhas aulas de conversação por causa da surdez. Faz uma semana que inaugurei este novo aparelho. Antes, entendia tudo trocado e se começasse as aulas eu aprenderia errado. Agora posso ouvir o meu curso de inglês em discos. Inglês da Inglaterra, bem entendido. O bom inglês é aquele falado pelos mordomos dos filmes de suspense. (Risos.) Engraçado, né? O pessoal acha graça nessa história de aprender inglês aos 82 anos. Mas a gente precisa fazer projetos em longo prazo para desafiar o diabo.

E o senhor não sente saudade de seus tempos de boêmia, seus bares de fé, amigos de copo? Como eram as suas farras adolescentes?

(Gargalhadas.) Naquele tempo não havia farra. Bebida era chope e cachaça; agora é que inventaram essas ervas. Meu companheiro de bar era o Augusto Meyer, grande poeta. Já o Veríssimo não bebia, não fumava, era um santo! Nos reuníamos no Chalé da Praça Quinze. O Augusto e eu preferíamos os bares Hubertus e Lilliput, um bar pequenininho cujos donos gostavam muito de literatura e fiavam para os poetas — imagine que coisa horrível! Naquela época a gente também tinha artistas prediletos. A nossa querida era a Greta Garbo, para quem escrevi duas poesias. Uma dessas foi tão resumida que acabou em dois versos. Não chega nem a um haikai, que tem três. Agora, a pedidos, vou publicar no próximo livro o texto integral, os 18 versos do poema.

E como o poeta encara o advento da AIDS, a mudança dos costumes em função da nova epidemia?

Sempre há uma peste, uma doença para flagelar a humanidade. Deve ser um dos remotos desígnios de Deus! (Gargalhada.) Mas é melhor deixar Deus em paz. Não sou religioso, mas acredito na segunda pessoa da Santíssima Trindade: Jesus. Isso porque há testemunhos históricos de que ele viveu entre nós. Agora, quanto ao Espírito Santo, creio que ninguém saiba o que é.

Falando de política, alguma coisa de novo sob o sol?

Antes, as manifestações populares eram dissolvidas pelas brigadas. Hoje, a oposição faz comício nas escadas da Prefeitura, fala-se. Ameaça de golpe? Sempre houve ameaça de golpe. Sempre existirão marechais deodoros. Mas a coisa está bem melhor.

Sei que o senhor não gosta de falar sobre a Academia, mas...

Eu não gosto de falar da Academia porque pode parecer a fábula das uvas verdes. O que aconteceu de fato nos episódios de minhas candidaturas é que o pessoal aqui do Sul achou que deveria haver outro gaúcho na Academia além do Viana Moog. Fui indicado. O que podia fazer? Dizer que não? A verdade é que fiquei encantado quando não fui eleito. Mas não pretendo falar sobre a Academia. Nem mesmo dizer que não pretendo falar.

As crianças e a infância estão sempre presentes em sua poesia e...

Certa vez, quando ainda morava no Hotel Majestic, eu estava na porta de um bar e uma guriazinha de seus 17 anos atravessou a rua, veio em minha direção e disse: “Eu vim aqui só para lhe dar um oizinho’.” Eu fiquei encantado com o “oizinho”. Antigamente as crianças não se animavam a falar com os adultos. Agora é o contrário. Os adultos é que têm que se calar.

Poeta...
Vai me perguntar mais alguma coisa? É que eu estou tão cansado...

Entrevista publicada em Ele Ela, setembro de 1988 

quarta-feira, 7 de março de 2012

O Obsessor



Eu ESTava furioso com alguém. Mais do que seria capaz de admitir conscientemente. Talvez por isso, certa tarde após a feijoada, adormeci e, sem que me desse conta, vi-me caminhando em meio a um deserto de dunas intermináveis. Era um sonho aborrecido, certamente agravado pelas fermentações resultantes do almoço suntuoso e pelas emanações dos espíritos então consumidos — mais por hábito de que por gozo já que, àquela altura da vida, trafegava em um estado ambíguo de plácida inquietude no qual nada me satisfazia, embora nada me fizesse a menor falta.
A caminhada era extremamente penosa. O sol abrasador ia alto no céu, eu sentia fome, sede, a areia fofa e escaldante chegava à altura dos joelhos e eu já estava firmemente disposto a puxar a alavanca vermelha e passar para outro sonho menos enfadonho quando, ao longe, divisei, não um oásis, não uma fonte de águas cristalinas e restauradoras, não a entrada de uma caverna mágica repleta de tesouros, tampouco as dobras sinuosas e flutuantes de um tapete voador capaz de me tirar daquele apuro, mas, sim, as extremidades protuberantes de tendas coloridas que se espalhavam por uma ampla extensão do deserto e cuja placa que encontrei à entrada anunciava como sendo uma Extraordinária Feira de Mistérios, Maravilhas, Bizarrices e Variedades.
Ah, eu poderia ter me detido em qualquer uma daquelas tendas: odaliscas seminuas dançando ao som de lânguidos tambores; refinadas casas de pasto donde exalavam aromas irresistíveis e diante das quais os donos apregoavam maravilhas culinárias montando avestruzes, tigres e rinocerontes; tendas alegres, tomadas de música, alarido de vozes e tilintar de taças; outras repletas de alfarrábios e objetos encantados, todos muito antigos e raros, como ampulhetas mágicas capazes de reverter o tempo e permitir que se reparassem os erros do passado; espelhos habilitados a projetar eventos ainda não ocorridos e prevenir desgraças e catástrofes futuras; cornucópias de grãos, vinho, ganja, ouro... todo um acervo de assombros.
Quis o destino, porém, que, em meio a tanta maravilha, tantos irrecusáveis apelos, meus olhos se vissem atraídos para uma tenda modesta erguida em uma das aléias secundária da feira.
A princípio, desagradado com o aspecto geral da baiúca, tentei voltar os olhos em outra direção; sem resultado. Por algum estranho sortilégio, e por mais que enveredasse por outros caminhos, sempre acabava diante daquela tapera. Era uma atração irresistível embora nada naquela tenda alquebrada parecesse realmente digno de nota. As estacas que a sustinham pareciam a ponto de ceder à podridão da idade e a lona de cor indefinida estava muito gasta e desbotada, com alguns furos junto ao topo do mastro — o que certamente não deveria ter muita importância já que naquele deserto nunca chovia, mas que contribuía, e muito, para o aspecto arruinado do conjunto.
Pouco abaixo do mastro, uma placa de zinco amassada nas bordas sobre a qual algum caprichoso calígrafo grafara em letras de espetáculo circense:

Dr. Luis C. Araújo
OBSESSOR

Corri os olhos pelo interior da tenda, que descobri ocupada por uma fileira de enferrujados gabinetes de arquivos, algumas estantes esparsamente ocupadas por livros de lombadas ensebadas e alguns enfeites de louça e vidro de extremo mau gosto. Ao fundo do aposento, através de uma névoa de fumaça de charuto vagabundo, mal e mal divisei uma escrivaninha surrada por trás da qual refestelava-se o sujeito.
Ao dar com a figura gorducha, suarenta e mal barbeada, apertada dentro de um mal ajambrado terno de Tergal puído nos cotovelos, tive vontade de dar meia volta e retornar ao alegre burburinho da feira. Antes, porém, o sujeito abriu um sorriso de dentes amarelados de nicotina e exclamou:
— Seja muito bem-vindo! Em que posso ser útil?
Desconsertado, dei a desculpa padrão:
— Nada, obrigado. Só estou olhando.
Mas o sujeito conhecia bem o riscado e emendou:
— Poderia ajudá-lo a escolher algum de nossos serviços?
O tom arrogante e malicioso de alguém que estava a ponto de me fazer uma oferta evidentemente desvantajosa me cativou de algum modo. Sempre admirei os canalhas declarados.
— Bem, em realidade, não faço idéia do que tenha a oferecer.
Ele sorriu como se já tivesse ouvido aquela resposta um milhão de vezes.
— Ah, certamente deve sabe. De outro modo, não teria entrado aqui. — O sujeito afastou a cadeira, cruzou os pés sobre o tampo da escrivaninha e entrelaçou os dedos das mãos atrás da cabeça. — Mas já que insiste, deixe-me fazer uma pequena apresentação. A LCA Obsessores Ltda. é uma empresa especializada em obsessões. Nossos técnicos são especialistas treinados para levar a cabo missões de diferentes naturezas obsessivas, em todas as esferas cósmicas e planos dimensionais do universo conhecido. — Ele fez uma pausa e, após uma careta de desagrado, retificou: — Ao menos naquelas aonde as obsessões funcionam, que, afinal, são a grande maioria.
— Mas o que, exatamente, faz um obsessor? — perguntei, disposto a por fim à lengalenga introdutória e ir direto ao assunto.
Ele sorriu, satisfeito, como se estivesse ansioso para que eu fizesse a pergunta.
— Um obsessor é o mais eficiente instrumento de vingança que alguém pode utilizar contra um inimigo. Atire uma bomba atômica na cabeça do infeliz e estará lhe fazendo um favor. Agora, solte um obsessor bem treinado no seu rastro e o cretino rezará para não ter nascido. Durante várias reencarnações! — Ele recolheu os pés do tampo da escrivaninha e acendeu uma guimba de charuto que escolheu no cinzeiro lotado.
— Veja — prosseguiu em um tom de voz muito didático, quase paternal —, vingança não é coisa para amadores. Um sujeito lhe faz uma grande cachorrada. Por exemplo: destrói a sua aldeia, mata a sua mulher, extermina a sua família, seqüestra os seus filhos, rouba o seu amor, seu emprego, sua dignidade, envenena o seu cão, o que seja. E o que você faz? Se lança contra ele. Com fúria. Com gana. Com medo. E, infelizmente, com a desastrada incompetência de qualquer homem de bem que se meta a fazer coisas de bandido. Poderá até mesmo matá-lo. Mas e daí? O que ganharia com isso? Coisa nenhuma. Certamente o resto da vida em uma cela de cadeia enquanto o canalha lá em cima planeja a volta para outra existência de facínora. Talvez ainda chegue a tempo de estuprar a sua neta!
 Subitamente, lembrei-me de meu recente desafeto. E comecei a me interessar pela história.
— Com um obsessor, entretanto, você contará com os serviços de altíssimo nível de um especialista intensivamente treinado para transformar vidas alheias em um inferno. Metódica e cientificamente. Sem paixões, sem arrebatamentos. Apenas a mais pura e total eficiência. E a certeza de um trabalho bem feito.
Ele tirou uma baforada do charuto e sorriu.
— Se alguém procura um obsessor profissional, certamente deve ter motivos de sobra para desejar o pior para o inimigo. — Ele olhou para mim com olhos pequenos e maliciosos e voltou a sorrir. Involuntariamente, desviei o olhar. — E nós da LCA Obsessores Ltda., estamos plenamente preparados para satisfazer as necessidades de nossos clientes. Temos planos de obsessão cobrindo dezenas de existências garantidamente miseráveis. Temos também o Plano Master Plus, um tanto mais caro, mas que, por outro lado, garante a obsessão eterna e indefinida de um mesmo espírito através dos milênios, sem franquia ou limite máximo de reencarnações; isso, é claro, se no meio tempo o infeliz não conseguir evoluir para um plano superior aonde não tenhamos jurisdição, o que é pouco provável. Ninguém que seja atormentado por um de nossos especialistas tem cabeça para pensar em auto-superação ou elevação espiritual.  
A idéia era interessante.
— Mas, diga-me — perguntei —, como exatamente age um obsessor? Quais sofrimentos impõe às suas vítimas?
— Ah, de todo o tipo! — O rosto do sujeito se iluminou como se eu inadvertidamente tivesse acionado o interruptor de um letreiro de neon. — Basicamente, dedicam-se a atormentar os vivos e impedir o seu desenvolvimento espiritual. Agora, o modo como fazem isso varia de caso a caso. E de especialista para especialista. Você jamais verá uma situação semelhante. Cada obsedado e cada obsessor são indivíduos únicos, e as possibilidades de interação entre eles são praticamente infinitas. Há infinitas maneiras de se destruir a vida de alguém. Basta analisar, esperar. E agir na hora certa. Carinhosamente, costumo chamar os meninos de “meus pequenos artistas”. Cada um deles tem o seu estilo próprio e inconfundível. E alguns são absolutamente geniais. Muito melhores do que jamais fui em meus tempos no front de batalha. É difícil crer que tenham sido treinados por mim...
— Então você não se encarrega pessoalmente dos casos?
— Ah, não. Não mais, pelo menos. Já tive os meus dias de glória. Hoje, deixo isso para os garotos. A função de obsessor é extremamente desgastante. Pede espíritos mais jovens e mais bem dispostos. Cuido dos contratos, da manutenção do negócio, da contratação e treinamento de principiantes. Também dou uma mão na logística, na elaboração dos planos de obsessão, participo do planejamento de novos tormentos...
— Tormentos? De que tipo?
Ele acendeu outra guimba de charuto naquela que ainda mantinha acessa entre os dedos, expeliu duas fedegosas baforadas e respondeu:
— Trabalhamos com detalhes. Sutilezas. De nosso plano espiritual, não temos muito poder sobre a matéria ou fenômenos físicos. Mas os poucos milionésimos de joules de energia que ainda podemos manipular podem operar maravilhas.
— Como assim?
— É uma técnica muito sofisticada que teria prazer de explicar amiúde em outra oportunidade. Por ora, basta dizer que, com um pouco de treinamento, podemos utilizar essas minúsculas partículas de energia para inverter micro-campos magnéticos, interferir em processos elétricos do cérebro humano, corromper sinapses... Recentemente, com o advento da informática, descobrimos que também podíamos fazer o mesmo com os computadores de nossos obsedados. Você não faz idéia do campo que isso abriu para a prática da obsessão moderna...
— Faço idéia — respondi, subitamente tomado por um profundo desprezo pelo sujeito asqueroso.
— Imagine, por exemplo, uma pessoa extremante talentosa, que decida dedicar a vida a um tipo de tarefa que exija muito controle e concentração. Digamos, operador de guindaste, piloto de helicóptero, controlador de tráfego, neurocirurgião... Agora, imagine um obsessor habilidoso, capaz de estimular e amplificar certos fatores dispersivos no cérebro dessa pessoa. Às vezes, um simples ajuste no volume da audição, uma pequena calibrada no brilho e no contraste da visão, certa supersensibilidade para gostos e aromas, e o sujeito fica incapacitado de se concentrar em qualquer coisa mais complexa que um jogo da velha!
Senti-me levemente nauseado, um incômodo lampejo de reconhecimento lentamente despertando nas camadas mais profundas de minha consciência.
— Agora, se o obsedado tiver alguma pronunciada falha de caráter, tudo fica mais fácil — prosseguiu. — Alcoólicos, narcômanos e tabagistas são presas fáceis. Mas gente irascível e de pavio curto também é um prato feito. Bastam pequenos estímulos nos lugares certos do cérebro e... bum! Explodem como frascos de nitroglicerina. Basta esperar o momento certo para precipitar as explosões, e a vida do sujeito ficará para sempre comprometida.
Ele acendeu outro toco de charuto. Desajeitado, deixou cair algumas brasas sobre o colo. Levantando-se de supetão, afastou-as com as mãos espalmadas, mas não a tempo de evitar que um cheiro nauseabundo de Tergal carbonizado tomasse conta do ambiente.
— Como disse — concluiu ele, uma careta de contrariedade ao dar com o estrago na calça do terno —, as possibilidades são infinitas. Por isso, antes de darmos início a um plano de obsessão, fazemos um estudo completo e detalhado das vidas passadas do obsedado, atentando para detalhes, procurando brechas, pontos fracos, atalhos. E, uma vez estabelecidos os objetivos, nossos especialistas não descansam até cumprirem a missão que lhes foi designada.
Novamente fui assediado por um inexplicável surto de náusea. Algo naquele sujeito, naquela cena, parecia-me desagradavelmente familiar. Como a lembrança de uma antiga dor de dentes, de um esquecido furúnculo inflamado na nádega.
— Do modo como fala, dá a entender que seus especialista são infalíveis — disse eu, tentando reprimir o mal estar. — Vocês nunca cometem erros? Nenhum de seus obsedados consegue escapar à influência de sua obsessão?
Ele não gostou da pergunta. E demorou algum tempo antes de responder, evidentemente aborrecido:
— Não, não somos infalíveis. Sempre há um ou outro desgraçado a nos estragar a folha de serviços. Mas devo adiantar que são poucos. Estatisticamente, somos bem sucedidos em oitenta e sete por cento dos casos. É claro, existem obsedados resistentes, duros na queda. Mas, sempre que nos vemos às voltas com um obsedado mais rebelde, lançamos mão de um engenhoso artifício: o obsessor encarnado.
— Como assim?
Ele sorriu.
— Nossos especialistas preferem, é claro, trabalhar no plano espiritual. Para isso foram treinados. Mas existem umas poucas dezenas de obsessores especializados em atuar no plano material. Ganham bem mais do que os seus colegas do lado de cá, dada a natureza insalubre do meio onde atuam. Nascer e viver, você sabe, dói uma barbaridade. 
Foi a minha vez de esboçar um sorriso desanimado.
— É uma última alternativa. Se, por um lado, o obsessor encarnado ganha maior poder para lidar com a matéria, por outro perde a onisciência e a clareza de sentidos que nos é natural no mundo dos espíritos. Por isso, suas missões devem ser muito simples e objetivas. Em realidade, são sondas robotizadas, se me permite a metáfora, programadas para realizar tarefas específicas.
— Como o que, por exemplo?
— Aqui, também, as possibilidades são quase infinitas. Imagine, por exemplo, um obsessor encarnado como mãe, mulher ou “melhor amigo” de um obsedado, especialmente programado para transformar a vida daquela criatura em um inferno? Para isso, é claro, é preciso um especialista muito habilidoso, o que é muito difícil de encontrar atualmente. Mas não precisamos ir tão longe. Basta programar o obsessor para que, em certo dia e hora pré-determinado, avance um sinal vermelho, se atrapalhe com um bisturi, aperte o botão errado... e estragamos a evolução de uma criatura por toda aquela existência. É claro que o objetivo primário não é o homicídio, embora, em certos casos, matar seja o único meio de interromper a evolução de um espírito mais obstinado...
A náusea atingiu outro pico intolerável e então, subitamente, dei-me conta. Eu conhecia aquele sujeito. Não pessoalmente, é claro. Mas eu o conhecia muito bem. E de longa data. Já tive os meus dias de glória, dissera ele havia pouco. Hoje, deixo isso para os garotos. A função de obsessor é extremamente desgastante. Subitamente, a náusea desapareceu, tão misteriosamente quanto se instalara. E eu tive absoluta certeza do que fazer em seguida.
— E qual seria o preço de um plano completo, Master Plus, desses que garanta a obsessão de um espírito pelo século dos séculos? — perguntei, interessado.
Ele quase suspirou, aliviado, por termos voltado a falar de negócios.
— Comparado com o que oferecemos? Uma verdadeira ninharia. Pedimos apenas que nossos clientes compartilhem conosco parte da culpa. Não é preciso ser muito esperto para compreender a vantajosa relação entre custo e benefício de uma transação dessa natureza. Afinal, quanto mais canalha for o seu desafeto, menos culpa você terá no cartório. Sei de um caso em que o cliente não apenas foi absolvido como acabou premiado pelas altas instâncias espirituais pelos serviços prestados!
Eu sabia que era mentira, bazófia de vendedor tentando engambelar um comprador ingênuo. Mas fingi acreditar em cada palavra do que ouvia.
— Não se esqueça, também, que oferecemos uma garantia estendida de nossos serviços, em troca de um pequeno acréscimo nas tarifas.
— Como assim?
— Se, por um acaso, não sejamos capazes de cumprir uma missão, caso haja algum conflito de interesses envolvido, o caso é imediatamente transferido para outra empresa. Como deve imaginar, não somos a única firma de obsessão do mercado.
Gostei dessa última parte.
— E como fazemos para selar o pacto?
Ele pareceu surpreso com a rapidez com que aceitei o negócio. Sorridente, apontou para o outro extremo do cômodo, onde havia uma pequena cabina.
— Basta entrar ali, pegar uma cédula, preencher o nome de seu desafeto e depositá-lo na urna.
— Simples assim?
— Claro. Por que complicar?
— E posso escolher qualquer pessoa?
Ele assentiu.
— Desde que seja um espírito que vague nas baixas esferas... Como já expliquei, não temos jurisdição em planos espirituais mais evoluídos.
Ele percebeu a minha expressão de contrariedade.
— Algo o perturba?
— Sim — respondi, simulando insegurança. — É que não tenho certeza se a pessoa que desejo obsedar ainda se encontra em uma baixa esfera espiritual. Em verdade, nem sei se está encarnada!
Ele voltou a sorrir.
— Mas isso não tem a menor importância! Veja: caso a pessoa escolhida tenha conseguido elevação espiritual, paciência. Seu voto cairá no vazio, e o acordo será desfeito. Entretanto, se ela ainda vagar aqui por essas baixas esferas, o que é o mais provável, esteja encarnada ou não, ah, meu amigo, nós certamente a pegamos mais cedo ou mais tarde. Como deve saber, todo espírito precisa fazer visitas periódicas ao mundo material para exercitar o perispírito e desenferrujar os ossos. E a escolha da urna é implacável. Não há espírito inferior que esteja imune aos seus desígnios.
Ele se levantou da cadeira e apontou para a cabina.
— Então, o que está esperando?

Ao sair da tenda lúgubre, sentia-me leve, limpo, restaurado, livre de uma angústia corrosiva que havia muito me azedava a alma. Fizera o que era certo. O que era justo. E a areia do deserto já não mais me obstava o passo.
Aliviado, aproximei-me de um grupo de unicórnios amestrados que se apresentava para uma pequena platéia. Ali me detive por um longo tempo, observando as suas mágicas evoluções sobre o picadeiro, divertindo-me com os comentários maravilhados da criançada em torno até que em dado momento, acima do alarido da feira, ouviu-se um berro medonho que fez estremecer as estacas de todas as tendas e calou temporariamente a platéia atônita.
Fui o único a não ser pego de surpresa. Em verdade, eu já esperava por aquilo. Ansiosamente. E foi justo por isso que ali me detive, ansioso, à espreita. Ainda assim, e para o espanto de todos ao meu redor, não fui capaz de reprimir uma escandalosa gargalhada ao imaginar a cara que deve ter feito o sujeito ao abrir a urna e ver o nome que eu grafara na cédula: 

Dr. Luis C. Araújo
OBSESSOR

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