sábado, 24 de dezembro de 2011

Meu primo virtuoso

Com Tom Jobim, Toquinho, Miucha e Vinícius de Moraes

As verdadeiras elegias geralmente são mal escritas. E não haveria como ser diferente. É muito difícil reunir sangue frio para, no momento da última despedida, conseguir pronunciar um discurso coerente e que, ainda por cima, faça justiça ao ente querido recentemente falecido. As lembranças se atropelam, as emoções se descalibram, as palavras se embaralham, a garganta, o estômago e o próprio cérebro se atrofiam e chega um momento em que você acha que não dará conta da tarefa. No fundo, você não deseja fazer aquilo. É-lhe mais que penoso. Em verdade, é excruciante. E cada palavra parece ser arrancada de seus dedos por invisíveis tenazes incandescentes. Contudo, é uma tarefa que tem de ser feita. E você a faz. Por que é o mínimo — e também o máximo — que poderia fazer naquele momento. 


TRATAVA-O, RESPEITOSAMENTE, por "Maestro". Ele ria, divertido com a cerimônia, e respondia: “Diga lá, meu Primo.” Era um Primo com P maiúsculo. Ou ao menos era assim que eu ouvia.
   Tinha apenas dez anos a mais do que eu mas, para meus olhos admirados, bem poderiam ser uns dez séculos. 
   Quando o vi pela primeira vez, em um Natal na casa de uma tia, sabia apenas que era o primo famoso que tocaria piano após a ceia, acompanhado pelo coral desafinado do restante da família. Mal sabia eu que as canções que assassinaríamos ao pé de seu virtuoso piano naquela noite feliz eram as mesmas que ele acabara de reger em uma turnê pela Argentina, ao lado de ninguém menos que Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Toquinho e Miúcha. 
   Eu era, então, um moleque de onze anos de idade e, assim como o resto da parentada, devia cantar mal feito o diabo. Mas lembro-me de ter ficado muito impressionado com a fácil agilidade daqueles dedos sobre o teclado.
   Depois, bem depois, vim a compor o resto do retrato: o primo simpático e tolerante daqueles natais em família era uma celebridade. Formado pela Escola Nacional de Música da UFRJ, aluno de Guerra Peixe e Ester Scliar, maestro e diretor musical da TV Globo, era parceiro, arranjador e regente de grandes nomes da MPB e do jazz internacional como Sarah Vaughn e Liza Minelli. Dirigia grandes musicais, tocava piano nos melhores bares e night clubs da Zona Sul carioca, lutava aikido, saltava de asa delta, tinha gosto por carros esportivos conversíveis... e comia todas as estrelas hollywoodianas que davam sopa no eixo Ipanema-Leblon. Não que houvesse muitas na época mas, na falta do produto importado, virava-se muito bem (e com notável assiduidade) com o similar nacional, celebrizando-se, assim, como um Don Juan contemporâneo, uma espécie de Príapo pós-moderno com “um membro de duas oitavas”, como testemunharam, admiradas, algumas jovens instrumentistas (no bom sentido) da sinfônica nacional. 
   Nunca se gabou do dote. Ao contrário. Ele mesmo gostava de desconstruir o mito: “Só se for de pianinho de brinquedo, meu chapa!” Mas a verdade cabal e inquestionável era que, ao fim das noitadas no antológico Chiko’s Bar da Lagoa, as mulheres faziam fila com seus carros para buscá-lo à porta: “Quer carona, maestro?” Uma, duas, três, quatro...
   E isso não é fábula.
  Às vezes me pergunto se o personagem interpretado por Charlie Sheen no seriado Dois Homens e Meio não foi em parte baseado nesta faceta de sua personalidade: pianista mulherengo e espirituoso, amante de uma boa cerveja... 
   É de se imaginar a admiração que eu, então um jovem de vinte e poucos anos, tinha pelo primo virtuoso. Personalidade fulgurante, segura de si, vitoriosa, era também um sujeito dotado de precioso senso de humor. Natal, Reveillon, aniversário, casamento ou velório não tinham a menor graça sem ele por perto. Amigo dos grandes humoristas da época, tinha sempre uma piada nova na ponta da língua que narrava com o mesmo sabor e graça com que tecia seus floreios instrumentais. 

   Freqüentemente, me levava para a “balada”, que na época não tinha esse nome. Chamava-se “noite”, ainda, nesses tempos de juventude e inocência. Só que as “noites” de meu primo eram sempre de gala, cercadas de muitos refletores, muito brilho, boa comida e bebida, gente bonita, famosa e interessante. 

   E música. Música além da conta. Boa música pra caramba e à beça. Música para extasiar, encantar e apaixonar até mesmo as pedras da Guanabara. 

   Como tocava aquele sujeito!

  Anos depois, ao me ver diante do desafio de compor o personagem Paganini de meu romance Memórias de um diabo de garrafa, freqüentemente recorri às lembranças que tinha desses meus tempos de mascote de instrumentista virtuoso. Vê-lo tocar, realmente, era ter assunto para contar para seus netos “durante todas as tardes de sua idade madura”. E ele de fato conseguia extrair de uma caixa de engraxate rachada o que o segundo maior pianista da casa não extrairia de um Bosendorfer Imperial. (Não ouso pensar o que faria o maestro com um instrumento desse calado. Trasmutação de água em vinho? A pedra filosofal? Vá lá saber. Mas o bom e velho Yamaha do Chiko’s mais que bastava para o seu gênio.)

   Tínhamos alguma semelhança física, a ponto de algumas pessoas nos confundirem no lusco-fusco dos night clubs. Certa noite, ele sugeriu: “Senta ao piano e finge estar tocando.” Obedeci. Ele se enfiou por baixo do piano, esticou as mãos até o teclado e começou a tocar. Por incrível que pareça, executamos duas músicas inteiras até alguém se dar conta do embuste. “É meu primo” explicou depois. “Uma versão mais jovem e tenra de mim mesmo...” 

Certa tarde, lá pelos meus vinte e cinco anos de idade, o primo ligou e perguntou:
   — Está de bobeira?
   Claro que eu estava.
   — Então se apronta que vou ai te buscar para te mostrar um lance maneiro.
   A gente se falava meio assim nessa época. Ou, ao menos, é assim que me lembro.
   Fomos de Laranjeiras até o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, a bordo de seu possante Bugre conversível 1.0, uma vez que o antigo Porsche usado nos tempos da Globo já fora rifado havia algum tempo.
   Entramos pelos fundos, junto com o pessoal da limpeza. Tudo muito cedo ainda. Mofo de teatro adormecido. Silêncio nas coxias. Avançamos pelos camarins, pelos bastidores, ganhamos o proscênio, descemos por uma escadinha precária no extremo oposto do palco e chegamos ao chiqueiro, uma sala com jeito de vestiário de estádio de futebol onde se espremiam uma dúzia de músicos.
   Até então eu pensava que, à hora H, pouco antes das batidas de Molière, eu seria devidamente encaminhado à platéia. Mas estava enganado. Em dado momento, uma campainha tocou, os músicos se levantaram, ajeitaram golas e gravatas, recolheram instrumentos e partituras e, em fila, saíram pela porta da sala. 
   O maestro me olhou com olhos maliciosos e meneou a cabeça, sugerindo que eu os acompanhasse. Atônito, obedeci. Ele seguiu logo atrás.
   Os músicos se acomodaram em seus lugares no fosso, o maestro subiu ao pódio e pediu que eu me sentasse aos seus pés, onde eu ficaria oculto da platéia por uma divisória de madeira que subia até a sua cintura.
   O espetáculo era Evita, de Rice e Webber, na qual meu primo não apenas era maestro como também diretor musical. Assisti a tudo maravilhado, a uma cusparada dos violinos, bem ao lado do regente, acompanhando cada um de seus movimentos.
  A peça que se desenrolava no palco era suntuosa, uma superprodução como poucas vezes vimos por estas bandas. Mas o que realmente encantava era poder assisti-la daquele ponto de vista inusitado, dentro do fosso da orquestra, observando cada movimento dos instrumentistas, ouvindo a respiração ofegante do maestro endiabrado, os grunhidos que emitia nas passagens mais fortes, como um tenista profissional durante os saques. A vida no seu auge.

Ontem, uma multidão compareceu ao São João Batista para prestar-lhe as últimas homenagens, mas eu não estava presente. Não tive coragem. Quando menos, acho que não suportaria um velório de família sem o maestro para contar piadas enquanto bebericávamos o café frio e ralo da capela. Mas acho que o principal motivo de minha ausência tenha sido o fato de não desejar poluir a sua lembrança com a imagem tosca de um corpo inerte rodeado de flores fedorentas dentro de um caixote de madeira. Prefiro me lembrar dele como naquela tarde, no pódio, conduzindo a orquestra pelos fios invisíveis de sua mágica batuta. Prefiro me lembrar das noites intermináveis, repletas de cristais, espelhos e champanhe, embaladas pela música maravilhosa que extraía de seu piano. Enfim, prefiro me lembrar dele como o super-herói verdadeiro, de carne, osso e espírito, com quem tive o privilégio de conviver em minha perdida juventude.
   Fama semper vivat.

No musical Evita, Teatro João Caetano, 1983.

6 comentários:

Mario Raposo disse...

So' nao concordei com o comentario inicial.
A elegia e' excelente, emocionante e muito bem escrita.
O mesmo orgulho que vc tem de ser primo do Edson eu tambem tenho por ter um irmao que escreve tao bem.

BETI VAN WIEN disse...

QUE COISA LINDA QUE VOCÊ ESCREVEU, PRIMO! ACABEI DE LER E CHEGUEI A VER VOCÊ COM O MAESTRO. FIQUEI EMOCIONADA.

Catarina disse...

Oi Alexandre,
sou filha mais nova do edson. Lindo o texto, e gostei bastante em saber dessas historias de suas epocas. Eh bom saber o quanto meu pai aproveitou a vida, e era feliz. Sempre ouvi mas nao assim nesses detalhes.. Gostaria ate de saber mais historias, mais encrencas.
Acho sim que eh essa imagem que vc tem que guardar dele, pois como vc deve saber, smp foi mto vaidoso e tenho certeza que essa imagem que ele quer que tenhamos para sempre. Alegre, divertido, bonito.
Deus sabe o que faz, e quando faz. E sei que agora ele esta descansando em paz.
Parabens pelo texto.

Alexandre Raposo disse...

Catarina querida, sempre quis conhecê-la pessoalmente. Seu pai falava muito de você, e com um tremendo orgulho. Eu só não podia elogiar muito as suas fotos porque ele ficava com ciúmes! Tenho muitas outras histórias do Edson para contar, todas hilárias, embora essas que registrei em minha crônica tenham sido as que mais ficaram marcadas em minha memória e em minha alma. Seu pai era um gigante. Ter podido conviver com ele em nossa juventude foi um privilégio inexcedível. A vida ficou mais pobre e mais triste com a sua partida. Cabe a nós cuidar para que a lembrança de sua existência exemplar fique para sempre guardada em um lugar privilegiado de nossos corações.

Marta Ubeda disse...

Oi Alexandre, gostei muito do que escreveu.Você soube expressar com muita sensibilidade um pouco da vida do Edson. Com certeza, vai deixar uma grande saudade!!! Ele foi meu primeiro professor de piano, quando eu tinha uns 7 anos. Me lembro muito das farras que fazíamos lá em casa, em copacabana. Muitas vezes, minha mãe ficava conversando com ele até altas horas da madrugada. Todas as vezes que ele ia lá em casa, eu ficava encantada com o piano maravilhoso que tocava. A última vez que o vi foi nas gravações do programa do Clodovil, aqui em Curitiba, no Teatro de Arame. Eu, Marisa e minha mãe acompanhávamos sempre que ele vinha para cá. Teve uma vida muito agitada e rica. Agora, que descanse em paz. Beijos saudosos, Marta.

Maria de Lourdes Accioly disse...

Bravo! para o Maestro, como foi aclamado merecidamente em seu funeral.
E Bravo! para o nosso querido escritor que mais uma vez nos brinda com um texto brilhante.
Meu beijo para você.

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