sábado, 31 de dezembro de 2011

Ano Bom

A VELHA TINHA MAIS DE OITENTA anos e morava só em um prédio em ruínas na periferia de uma grande metrópole. Tivera outrora um marido, depois um gato mas, naquela altura da vida, contava apenas com o silêncio e as memórias de um passado idealizado.
Sempre fora uma mulher miúda e encolhera ainda mais com a idade. Tinha as mãos engelhadas pela artrose e a coluna dobrada por décadas de trabalho burocrático em repartições públicas do estado. A pele assumira pouco a pouco o tom macilento das paredes que a cercavam e os olhos eram opacos, obnubilados pela catarata.
E foi talvez por ser tão pequena, tão discreta e silenciosa, por integrar-se tão bem ao meio que habitava, que os técnicos não deram pela sua presença ao fazerem a última vistoria no prédio. De fato, por incrível que pareça, a velha chegou a ter um deles dentro de casa sem, contudo, ser percebida.
O homem entrou apressado, fixou uma massa amarela à parede do vestíbulo e saiu antes que ela tivesse tempo de dizer adeus. A velha também não teve tempo de perguntar para que servia o fio comprido que o homem esticava atrás de si, embora imaginasse que a massa amarela grudada à parede fosse algum tipo de veneno japonês contra insetos.
Implosão em época tão inoportuna recebeu ampla cobertura da mídia e as redes de tevê já prometiam cenas espetaculares nos telenoticiários da noite seguinte. Até mesmo as baratas já sabiam que todo aquele quarteirão de velhos edifícios seria varrido do mapa para dar lugar a um grande centro de abastecimento.
Apenas a velha ainda não havia sido devidamente notificada que, em menos de vinte e quatro horas, exatamente às dez horas da manhã de primeiro de janeiro de 2042 a.D., o lugar que escolhera para passar calmamente o resto de sua velhice seria reduzido a um monte de escombros.
A velha só se lembrou de que era véspera de Ano Novo ao ouvir o repicar dos sinos da igreja, às seis da tarde. Sentiu uma vaga alegria, resquício de alegrias antigas, vividas em tempos de mais esperança. Logo, porém, lembrou-se do marido, do gato, a vaga alegria minguou em melancolia e ela limitou-se a voltar ao interminável bordado.
Bordou horas a fio e caiu adormecida por volta das dez horas. E provavelmente teria dormido até o momento da implosão não fosse despertada à meia-noite pelo espocar de fogos de artifício e, logo em seguida, por um estrondo ensurdecedor, seguido de um projétil luminoso que entrou pela janela e ricocheteou nas quatro paredes antes de pairar ao centro da sala, espalhando fagulhas para todos os lados.
O busca-pé abriu os braços e anunciou, bombástico:
— FELIZ ANO NOVO! — e voltou a dar cabeçadas pelas paredes.
A velha franziu as sobrancelhas.
— O senhor sabe que horas são?
O busca-pé pairou ao centro da sala, olhou para o relógio que trazia no pulso esquerdo, voltou a abrir os braços e respondeu:
— MEIA-NOITE! FELIZ ANO NOVO!
Antes que o busca-pé voltasse a dar cabeçadas, a velha perguntou:
— E quem lhe dá o direito de vir fazer bagunça em minha casa a uma hora dessas?
O busca-pé não esperava tamanha rabugice. O sorriso de animador de auditório murchou numa expressão de desânimo:
— Oh, não! Era só o que faltava! Essas coisas só acontecem comigo! Tantas casas em festa, tanta gente alegre celebrando pelas ruas e me toca entrar justamente pela janela de uma senhora mal-humorada!
Ela percebeu o abatimento do busca-pé mas não deu o braço a torcer.
— Cuidado! Veja que ainda me queima o tapete! Onde já se viu uma coisa dessas?
O busca-pé empertigou-se. Jamais, em toda a sua fulgurante carreira pirotécnica, queimara um estofado que fosse. E já estava a ponto de dar uma resposta malcriada, dizendo que tapete tão úmido, tão mofado, tão ensebado, era absolutamente à prova de fagulhas quando os seus olhos bateram na massa explosiva afixada na parede do vestíbulo.
— M-mas o que é isso? — disse ele, pálido de pavor.
— Massa japonesa contra insetos — respondeu a velha. — Certamente deve ser promoção de uma nova empresa de dedetização que abriu nas redondezas. O homem veio ontem pela manhã e...
— Massa japonesa uma ova! — interrompeu o busca-pé, aterrorizado. E disparou corredor afora seguindo o fio do detonador.
A velha chegou a pensar que havia se livrado do intruso mas ele voltou minutos depois, ainda mais histérico:
— Mulheres e crianças primeiro! — gritou. — Todos ao convés! Vamos evitar o pânico! SOS! SOS! SOS!
E voltou a ricochetear pelas paredes do apartamento.
— Você poderia fazer o favor de parar com essa balbúrdia?
O busca-pé mirou-a consternado:
— Minha senhora, este edifício vai voar pelos ares a qualquer momento!
A velha não deu atenção à advertência do busca-pé.
— Veja só! — disse ela — você está chamuscando os meus moldes de costura! Assim não é possível!
O busca-pé desesperou-se:
— Mas eu estou dizendo...
— Cale-se.
— ...que este edifício...
— Cale-se.
— ...vai voar pelos ares...
A velha fulminou-o com os olhos e ameaçou extingui-lo com a água do copo no qual guardava a dentadura. O busca-pé pressentiu o perigo e não terminou a frase. Em vez disso, enxugou o suor da testa, recompôs-se e perguntou, casualmente:
— Posso usar o seu banheiro?
Por um momento a velha não soube o que responder.
— S-sim, claro... — balbuciou, desconcertada.
O busca-pé ricocheteou até lá e voltou pouco depois, com um sorriso tranqüilizador.
— Foi o que pensei — disse ele. — Os cabos principais dos detonadores correm pela coluna de ventilação dos banheiros. Podemos usar parte deste explosivo — e apontou para a massa amarela — para provocar uma pequena detonação que destrua os cabos e...
A velha interrompeu-o abruptamente:
— O quê? Não contente em invadir a minha casa a uma hora dessas ainda quer provocar uma explosão no meu banheiro?
— Pequena detonação, se me permite o reparo — interrompeu o busca-pé com um sorriso otimista. — Caso contrário, kaput! Banzai! Capice? Em poucas horas, tudo isso vai virar entulho. Urge tomar decisões imediatas.
A velha olhou fixamente para o busca-pé durante algum tempo. Em seguida, sorriu, puxou os óculos até a ponta do nariz e disse calmamente:
— A quem você pensa que engana?
O busca-pé fez cara de que não sabia do que ela estava falando.
— A quem você pensa que engana? — repetiu com firmeza.
O busca-pé manteve a expressão atônita, mas já sem muita convicção.
— Alberto, meu tolo Alberto! Esses são modos de aparecer diante de sua viúva? Já faz mais de trinta anos que você morreu e, convenhamos, era de ser esperar uma aparição mais clássica, mais romântica...
O busca-pé fez menção de retrucar mas acabou corando de vergonha.
— Contudo, pensando bem, é uma fantasia adequada — prosseguiu a velha. — Você sempre foi irrequieto, explosivo e imaturo. Também sempre esteve com a cabeça nas nuvens de modo que a fantasia lhe cai muito bem.
O busca-pé esteve ao ponto de extinguir-se de tão embaraçado. Mas logo recuperou o lume:
— Você também não mudou nada — retrucou. — Continua a mesma criatura resmungona e apática de sempre. Também continua incapaz de se entusiasmar com minhas idéias. Talvez, se eu tivesse tido um pouco mais de apoio...
— Como no caso da máquina de sorvete? — ironizou a velha.
— Como no caso da fábrica de gelo! — corrigiu o busca-pé, irritado.
— Mas se você era incapaz de operar uma simples máquina de sorvete como é que podia pretender administrar uma fábrica de gelo?
— No entanto — respondeu o busca-pé, amuado —, teria dado certo.
— O que me consola — disse a velha a si mesma, simulando tédio —, é que isso é um sonho idiota do qual nem vou me lembrar amanhã de manhã.
— Não! Não! — atalhou o busca-pé. — Nem tudo é sonho. Os explosivos, por exemplo, são verdadeiros. Por favor, ao menos dessa vez, concorde comigo!
Ela quase cedeu. Mas logo mudou de idéia:
— Impossível. Você quer dinamitar o meu banheiro.
— Dentro em breve não haverá mais banheiro!
— Haverá sim!
E ambos se deram conta de que estavam discutindo exatamente como nos bons e velhos tempos.
— O caso — disse a velha com frieza —, é que talvez eu esteja pouco me importando se o edifício vai voar pelos ares.
— Você não pode estar falando sério — disse o busca-pé, consternado.
— Estou sim. Seria uma morte espetacular. Talvez até saísse nos telejornais...
— Os seus quinze minutos de fama — ironizou o busca-pé.
— Tanto assim?
— Tudo bem — disse ele após um profundo suspiro. — Não quer detonações no banheiro? Então será sem detonações no banheiro. Pensarei em outra coisa. Como sempre, você venceu.
A velha sorriu.
— Considerando que isso é um sonho e que nada disso está acontecendo realmente — prosseguiu o busca-pé, medindo as palavras —, você seria capaz, ao menos uma vez, de apoiar uma de minhas idéias?
— Desde que não exploda o banheiro...
— Pois muito bem — disse ele. — Não saia daqui.
E disparou janela afora.
A velha despertou por volta das três horas da madrugada, ainda sentada na cadeira de bordar. Deixou-se ficar ali durante alguns minutos, recuperando-se do estranho pesadelo. Um busca-pé falante que, em realidade, era o seu falecido marido. Que idéia mais extravagante! E, no entanto, parecera tão real...
Ela levantou-se com dificuldade, fechou a janela e deitou-se na cama estreita nos fundos do aposento. O sono não tardou a vir e ela novamente teria dormido até a hora da implosão não fosse despertada pouco depois pelo ruído de alguma coisa que se chocava repetidamente contra a vidraça.
— Você de novo! — disse a velha em meio a um bocejo.
O busca-pé gesticulou para que ela abrisse a janela. A velha obedeceu.
— Suba até o terraço! — gritou o busca-pé, ainda do lado de fora.
— O que?...
— Suba até o terraço! Não temos tempo a perder.
A velha hesitou. O busca-pé voltou a entrar no apartamento.
— Vamos! Você prometeu!
— Mas são dez andares de escada!
— Você consegue. Por favor!
— Mas o que há lá em cima?
— Você não tarda a saber. Vamos, siga-me! — e disparou corredor afora.
Ela estava certa de que jamais conseguiria chegar até o terraço. Certamente teria um infarto antes de alcançar o segundo piso. Mas não foi o que aconteceu. A princípio, ela não se deu conta mas logo ficou evidente que quanto mais subia, mais bem disposta se sentia. E a sensação de bem-estar era tão grande que, ao chegar ao quinto piso, já vencia os degraus de dois em dois.
O busca-pé a esperava, ansioso, ao fim da escadaria.
— Venha não temos tempo a perder.
E abriu a porta do terraço.
— Mas o que é isso? — exclamou ela ao dar com o imenso foguete pousado lá fora.
— Sou um busca-pé, não sou? Tenho amigos influentes no ramo de explosivos — e fez uma expressão de auto-estima quase caricata. — Devemos este belo foguete à iniciativa de milhares de rojões, cabeções, busca-pés, estrelinhas, traques e outros fogos de artifício, meus companheiros de ofício os quais, graciosamente, abriram mão de estourar nesta noite de festa para tirá-la deste edifício condenado.
De fato, por um momento, o foguete pareceu ter sido construído com toneladas de fogos de artifício enfeixados numa única e explosiva estrutura. O aspecto geral era de um tosco foguete de desenho animado e não inspirava a menor confiança. No momento seguinte, porém, já era uma autêntica nave espacial, com uma ampla cabina envidraçada, rampas retráteis, antenas, refletores, luzes coloridas, escotilhas, e muitos outros dispositivos que ela não fazia a menor idéia de para que serviam.
O busca-pé havia disparado na sua frente e ela o perdera de vista. E qual não foi a sua surpresa quando, ao aproximar-se da nave, encontrou Alberto, não mais travestido de busca-pé e, sim, com a aparência que tinha quando jovem. Vestia, então, o mesmo terno de linho branco, a mesma camisa de seda, o mesmo sapato de crocodilo que usara em suas bodas.
— V-você... Você está tão jovem, tão bonito!
— Não tanto quanto você — respondeu Alberto. E apontou para o reflexo da esposa na superfície platinada da espaçonave.
Somente então ela se deu conta do resultado de sua corrida prédio acima. Por algum sortilégio, ela havia rejuvenescido um lustro por lance de escada, chegando ao terraço no esplendor de seus vinte e poucos anos de idade.
— E para onde vamos? — perguntou enquanto examinava o rosto com as mãos e surpreendia-se com a maciez da própria pele.
— Para certo lugar nas cercanias de Beta da Ursa Maior — respondeu Alberto, sonhador.
— E onde fica isso? — disse ela, ajeitando os cabelos, novamente bastos e sedosos.
— A uns sessenta e dois anos luz daqui.
— Assim tão longe?
— Você não vem? — perguntou Alberto em tom de súplica.
Ela hesitou alguns instantes mas acabou entrando na espaçonave. Ele alegrou-se, entrou em seguida, fechou a escotilha e, tomando o microfone do painel de controle, disse:
— Piloto, estamos prontos para decolar.
Ela sobressaltou-se.
— Piloto...?
— Mas é claro — respondeu Alberto. — Como você sabe, sou incapaz de manejar uma simples máquina de sorvete.
— Mas quem é o piloto? — perguntou ela, incomodada com a idéia de ter que fazer viagem tão longa ao lado de um estranho.
Alberto tomou as mãos da esposa e sorriu.
— O gato — disse ele.
E partiram num clarão silencioso.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Um músico por trás do muro


Na década de 70, o Pink Floyd foi o posto avançado do chamado rock-progressivo, traduzindo em suas músicas os sonhos delirantes de toda uma geração. Entretanto, quinze anos após o primeiro disco, com o lançamento do álbum duplo The Wall, o Pink Floyd mudou radicalmente de estilo, deixando a psicodelia de lado e partindo para uma música engajada, anti-belicista e impregnada de feroz crítica social. A matéria a seguir — publicada em 1983, logo após o lançamento de The Final Cut, último álbum do grupo com sua formação original — conta com um depoimento exclusivo do próprio Roger Waters.


CRISTAL PALACE, LONDRES, DÉCADA DE 70. Dezoito mil espectadores se acotovelam para assistir a mais um show do Pink Floyd. Ao redor do palco flutuante, um enorme polvo inflável estende seus tentáculos por todo o lago. As luzes diminuem de intensidade e o ruído do fogos de artifício é completamente abafado pelo poder de uma aparelhagem de som diabólica. O público, antes em delírio, é subjugado pela música, anestesiado por um espetáculo visual de rara beleza. A primeira música termina com acordes heróicos, as luzes se acendem novamente para dar lugar a um outro espetáculo que não estava no roteiro: sobre as águas daquele lago histórico, flutuam os corpos inertes de milhares de peixes, vítimas dos decibéis ensurdecedores.
Cristal Palace, Londres, década de 80. Talvez os mesmos espectadores do show anterior, dez anos mais velhos. Sobre o palco, os contra-regras acabam de colocar o último dos 340 tijolos de papelão que formam uma sólida muralha ao redor dos quatro componentes do grupo, isolando-os da platéia. Subitamente, uma réplica em tamanho natural de um antigo avião Spitfire da Segunda Guerra Mundial sobrevoa as cabeças assustadas dos quase vinte mil espectadores para cair espetacularmente por trás da muralha. Ao fim do show o muro explode em pedaços e a platéia se queda absolutamente estática, talvez assustada com o inusitado silêncio que substituiu a última concussão.
Antes de aderir ao rock progressivo, o Pink Floyd era apenas uma banda desconhecida de rythm’n’blues. O nome surgiu da fusão do prenome de dois antigos bluesmen da Geórgia, Pink Anderson e Floyd Council, muito admirados pelos garotos do Floyd. O gosto pelo ritmo norte-americano foi uma constante ao longo de toda a extensa obra do grupo.
Em 1968, o Pink Floyd animava as tardes do UFO, um clube londrino de aficionados por ficção científica e, segundo a famosa revista musicalMelody Maker, não havia nada mais underground e alienado do que aquela turma de fanáticos. Lá fora, além das paredes do UFO, os Beatles e os Rolling Stones já lançavam os fundamentos da infância rebelde e da adolescência crítica do rock’n’roll. Em Paris, as ruas se transformavam em barricadas e ouvia-se o velho brado anarquista durante os eventos de maio. No mundo inteiro, uma juventude participante anunciava o advento de uma nova era. Nessa mesma época, porém, o Floyd produzia a sua própria música, espacial, futurista, alucinógena, tida como "alienada" pelos setores mais sisudos da vanguarda revolucionária mundial.
E tinham alguma razão em suas críticas. Na época, o líder do grupo era o alucinado guitarrista Syd Barret, sujeito de equilíbrio emocional instável e que acabou por ser internado pelos companheiros devido ao seu comportamento anti-social e auto-destrutivo, que provocou uma meia dúzia de escândalos dos bons logo após o lançamento do primeiro álbum do grupo.
Daí para a frente, com David Gilmour como novo guitarrista, o Pink Floyd iniciou sua fase clássica. As obras Atom Heart Mother, Medley, Ummagumma e o extraordinário Dark Side of the Moon constituíram a música de fundo dos vertiginosos anos 70.
Subitamente, porém, o Floyd estacionou a sua produção musical, provavelmente ressentindo-se do LP Animals que, apesar de ter vendido bem, não despertou grandes reações e nada de novo apresentou aos fãs mais exigentes. A década terminou sem que houvesse esperanças de ressurreição para a antológica banda. Segundo a crítica, o Floyd agonizava em uma poça de lama, como o último remanescente dos chamados dinossauros do rock.
Mas não por muito tempo. Afinal, o Pink Floyd sempre reservou surpresas inesperadas ao seu público. Quando silenciaram os tambores eletrônicos da disco music e nossos Johns Travoltas já se cansavam de seus malabarismos e acrobacias, ele ressurgiu com uma proposta completamente diferente daquela que encantou aos jovens de 1968: uma música que procurava sintetizar, em suas histéricas convulsões, toda a saga do rock sob um ponto de vista crítico, reflexivo, "engajado".
The Wall, o disco que marca a volta do grupo ao panorama da música pop internacional, é uma obra suntuosa que demonstra que eles não estiveram tão inertes assim naqueles tempos de crise. Transformado em filme por Alan Parker (O Expresso da Meia-Noite, Fama), The Wallnarra os traumas e crises de um bem-sucedido músico de rock, chamado Pink, constantemente atormentado por seus traumas: o pai que morreu na guerra deixando apenas um instantâneo no álbum de família; a mãe superprotetora que o afoga com seus medos e restrições; os professores extremamente severos — reminiscências de uma Inglaterra vitoriana e repressiva — e a mulher com quem não consegue estabelecer uma relação normal, talvez devido aos traumas anteriores. Para Pink, cada um deles é apenas mais um tijolo no muro que ele mesmo construiu e por trás do qual procura esconder todo o seu amargo desdém pelo mundo. Em verdade, o drama do The Wall não é mais do que uma condensação estilizada que sintetiza a própria história e origem do rock, um fenômeno do pós-guerra, da Guerra Fria, de tempos de reconstrução e reavaliação da condição humana.
Neste ano de 1983, o Pink Floyd lançou seu último LP, The Final Cut, que, segundo nota na contracapa, é “um réquiem para o sonho do pós-guerra”. The Final Cut procura dar prosseguimento e maior profundidade ao primeiro tijolo do The Wall — o trauma de um pai ausente, morto em uma guerra estúpida, reavivado agora pelo recente conflito das Falklands. O disco é dedicado ao pai do baixista Roger Waters, morto em 1944 no desembarque de Anzio na Itália. Ainda na contracapa, lê-se a dedicatória: “Para Eric Fletcher Waters, 1913-1944.”
“Na época em que morreu, meu pai estava passando por uma fase de transição." diz Waters. "No início da guerra — e talvez tenha sido por isso que sofri tanto a sua perda — ele era um cristão muito devoto, um homem admirável que se negou a lutar por questões de consciência. Afinal, ele era um cristão. Perguntaram-lhe se ele estava disposto a exercer qualquer outra atividade além de servir no campo de batalha e ele respondeu: ‘Claro, qualquer coisa que não exija que eu mate alguém.’ E passou a trabalhar como chofer de ambulância durante a Blitz de Londres. Quando não estava dirigindo a ambulância, fazia serviços voluntários, ajudando a remover entulho de edifícios destruídos.”
"Foi nessa época que o Sr. Eric Fletcher Waters veio a conhecer certas pessoas, começou a se envolver com a ala esquerda da política e mudou de opinião. Passou a crer que, em determinadas circunstâncias, era necessário lutar. A despeito de suas profundas crenças religiosas, achou que existia um conceito nebuloso chamado autodefesa de um país: “Meu pai resolveu se apresentar dizendo que tinha mudado de idéia. Fez seu treinamento basico de seis semanas e, como tinha nível universitário, foi para a guerra como segundo oficial. Alistou-se e... morreu.”
A trilha inicial de The Final Cut, a faixa "The Post War Dream", é umaoverture que estabelece as premissas básicas do disco, indagando o que houve com o sonho do pós-guerra. Waters explica:
“Veja, por exemplo, a última guerra, na qual morreu tanta gente. Hoje os veteranos e heróis dessa guerra têm de vender suas condecorações, suas Cruzes da Vitória, para poderem comprar o pão de cada dia. A coisa é tão horrível que o próprio país prefere ignorá-la. Aliás, nas paradas da vitória, eles não queriam deixar que desfilassem os veteranos que tinham sido queimados ou desfigurados. A exibição desses mutilados de guerra não era recomendável do ponto de vista ideológico. Durante algum tempo sonhamos o sonho do pós-guerra. Quando a Guerra Fria começou a ceder na década de 60 e houve uma certa recuperação econômica no mundo, esse sonho ainda parecia real para muita gente. Depois, porém, a coisa muda: o sonho se dissipa, há uma nova recessão mundial, todo mundo volta a passar dificuldades e, para coroamento de tudo, começa uma estúpida guerra comercial e industrial da qual teremos que sair algum dia, de algum jeito.”
Essa guerra industrial a que Waters se refere e a mesma que vem levando a Inglaterra e o Japão a um conflito comercial de grandes proporções. Em The Post War Dream ele menciona a produção de navios japonesa e o quanto isso vem prejudicando a indústria naval britânica: “Cerca de quatro milhões de ingleses estão desempregados a essa altura. Esta semana outro estaleiro será fechado e só aí já são mais uns três mil desempregados. O que eu tentei dizer é que deve haver uma maneira melhor de viver neste mundo do que disparar numa corrida desesperada para ver quem fabrica o melhor carro ou o melhor navio. No entanto, parece que esse sistema de mercado mundial, onde vence aquele que fabrica melhor e mais barato, satisfaz certa espécie de ambição humana.” Segundo Waters, a noção ocidental sempre foi que a melhor maneira de recolher o lixo é deixar que alguém diga: “Eu o apanho por dez dólares”, enquanto outro diz: “Eu o faço por 9,50” e deixar que as leis do mercado decidam tudo. “Em minha opinião é uma atitude desesperadamente retrógrada. Infelizmente, nossa primeira-ministra é a favor desta filosofia monetarista. Acho que agora existe uma pequena chance de que um número cada vez maior de pessoas, ao sair da universidade e ingressar no serviço público ou no corpo diplomático, comece a pensar: ‘Ei, espere um pouco; esse sistema não resulta em um bocado de desperdício?”’
Roger Waters se refere aos líderes políticos com desconfiança e desdém: “Acho que os políticos não se interessam tanto pelos problemas como, por exemplo, os engenheiros se interessam. Deveria haver uma maneira melhor de escolher os dirigentes de um país do que deixar que eles apareçam na televisão fazendo propaganda de suas qualidades. Talvez fosse melhor ter um comitê popular de uns cem participantes, encarregados de escolher o melhor homem. Este não poderia ir à televisão para se promover ou tentar angariar votos. Não poderia nem mesmo candidatar-se ao posto. Mas, uma vez escolhido, seria obrigado a aceitar o cargo a serviço do país.
Qualquer pessoa que realmente deseje ser o presidente dos Estados Unidos é completamente inadequada para o cargo. Precisamos admitir que Ronald Reagan não é apenas um velho caubói. Mas certamente não me parece mais sensível do que um vaqueiro. Eu, por mim, não acredito que o povo americano vá permitir que Reagan brinque de Guerra nas Estrelas. Acredito que o povo absolutamente não vai permitir que ele se porte desta forma. Posso estar errado, mas acho que chegará o momento em que eles dirão: ‘Ei, cara, chega de jogar esse jogo estúpido!’
"Veja: Reagan é o líder do maior país do mundo e, no entanto, basta a gente olhar para ele para ver que é o tipo do sujeito que se sentiria feliz se conseguisse acertar uma bala na cabeça de dez entre onze galinhas a uma distância de quarenta passos. Pela maneira como ele anda pode-se ver que ele é esse tipo de homem. E está procurando governar o país mais poderoso do mundo a partir deste princípio — o princípio do eu-sei-matar-galinhas-melhor-do-que-você. Não conheço Ronald Reagan nem conheço Margaret Thatcher, mas, do modo como eles são capazes de odiar, acho que têm muito medo das pessoas e desejam o cargo para poderem se sentir mais fortes.”
Na canção "The Fletcher Memorial Home" ("O Lar Memorial de Fletcher") Roger Waters nos apresenta os líderes mundiais como crianças que cresceram demais, crianças que agora lidam com brinquedos mortíferos. E propõe a construção de uma enorme mansão, afastada dos outros seres humanos, onde os líderes mundiais pudessem conversar entre si por intermédio de um circuito fechado de TV, e brincar de polícia e ladrão, isolados do resto do mundo. “Para mim, se eles estivessem trancados em algum asilo seguro, eu me desinteressaria por eles completamente. Naturalmente, muitos deles vivem realmente trancados. Não há muita diferença entre ser o presidente dos Estados Unidos e estar trancado em um asilo de loucos. A diferença é que, como presidente, eles têm muito poder e podem afetar a vida de muitas pessoas. Mas são submetidos a toda espécie de tutela; são vigiados constantemente, têm de obedecer uma série de regulamentos, adotam um horário muito rígido, recebem certos remédios... Há uma porção de semelhanças. Se Ronald Reagan estivesse recebendo esses cuidados das pessoas que deveriam estar exercendo suas funções — escrevendo-lhe discursos, dando-lhe as injeções nas horas certas, para que ele não dê tantos tropeços em público, seria ótimo. Eles merecem a nossa pena. E verdade que os detesto por matarem pessoas, mas, uma vez trancados no Fletcher Memorial Home, tornar-se-iam supostamente inofensivos. E preciso ser bondoso com essa gente.”
Pacifista radical, Roger Waters chegou a se envolver com campanhas de desarmamento. Até pouco tempo foi um dos diretores da Campanha Oxford de Desarmamento Nuclear, em parte porque, na época, já tinha algumas das idéias que tem hoje e, em parte, “porque esta seria a única maneira pela qual conseguiria continuar a olhar de frente para as gaivotas que voam na praia à tarde”.
A respeito das Falklands e do conflito armado com a Argentina, Waters diz: “Graças a Deus, diferentemente do que ocorreu no Vietnã, nas Ilhas Falkland, morreram somente uns 200 dos nossos soldados. Talvez eu não devesse falar assim, pois não sei o total de feridos... mas ainda nos sentimos muito heróicos em relação a essa guerra — ou tentamos desesperadamente sentir-nos assim. Quando digo nós, estou sendo sarcástico, porque eu não me incluo entre eles; mas o governo inglês ainda procura apegar-se à idéia de que a guerra das Falklands foi um exemplo de defesa heróica dos princípios ocidentais tradicionais de liberdade e democracia. Nos Estados Unidos seria tolice pensar nesses termos em relação à Guerra do Vietnã. Afinal, com toda a publicidade a respeito do Agente Laranja, dos desfolhantes e tudo o mais, o assunto é indesejável. Lá eles procuram abafar o assunto o mais que podem.
“Não se pense, porém, que vivo numa espécie de pesadelo ao sentir estas coisas acontecendo à minha volta. Falo de uma posição muito confortável. Levo uma vida razoavelmente boa, sou bem casado, tenho meus filhos, uma boa casa... e um bocado de dinheiro. Para mim, trata-se de um fenômeno observável, algo que sinto ao meu redor. No duro, a vida tem sido muito boa para mim. Há uma espécie de paradoxo no fato de eu estar aqui, falando contra o sistema competitivo mundial, e estar envolvido numa indústria altamente competitiva... e estar vencendo.”
Na música-título do álbum The Final Cut, Roger Waters fala da relação entre um homem e uma mulher, uma mulher que reage mal quando, num momento de honestidade, ele lhe revela o seu lado fraco. “Todos somos sujeitos a doutrinação. E fomos doutrinados com a idéia de que ‘eu sou um bom homem pois sou um homem forte’. Em nossa sociedade não se pode ser bom quando não se é forte. No caso desta canção, trata-se apenas de uma pergunta: ‘Como você reagiria se eu lhe mostrasse o meu lado fraco?’ E uma expressão de minha paranóia acerca de como a minha esposa ou de como as mulheres reagiriam se conhecessem meu lado fraco.”
Em verdade, desde o desabafo de The Wall, Roger Waters vem abordando o mesmo tema de uma maneira tão sentida e pessoal que qualquer observador mais atento pode identificar na explosão genial destas últimas duas obras o dedo de uma mulher e o peso de uma relação em crise. Apesar de Waters e sua esposa Susie viverem agora em aparente harmonia, tudo indica que ela foi o estopim que deflagrou a nova fase do grupo, revivendo fantasmas há muito adormecidos na mente do irrequieto compositor.
Como o cantor Pink, protagonista de The Wall, Roger Waters confessa ter passado maus momentos em uma época em que o seu relacionamento com a esposa estava periclitando. Na chocante seqüência em que Pink se tranca em uma imensa suíte de um hotel de Los Angeles e passa a destruir tudo o que lhe aparece pela frente (inclusive ele mesmo, mutilando-se com a navalha) e logo após entra em coma devido a uma forte overdose de heroína, é claríssimo o contraponto com a realidade do autor. Apesar de não revelar como, nem em que condições, Waters confessa ter estado a ponto de realizar o corte final (the final cut) em um momento de desespero e abandono.
O fato é que o Pink Floyd voltou a falar, após quinze anos de silenciosa privacidade. Seu simbolismo já não é tão indevassável quanto no princípio, nos áureos tempos do Atom Heart Mother.
“Acho que tenho a responsabilidade de dizer o que sinto, porque tenho uma plataforma de onde posso falar e é possível que eu esteja expressando os mesmos sentimentos de várias pessoas que não possuem uma plataforma. Mas não me entendam mal: não é por isso que digo o que digo em minhas canções” conclui Roger Waters.


Em tempo: Roger Waters estará no Brasil entre março e abril de 2012, com apresentações em Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. Aos fãs que pretendem comparecer aos shows, fica a dica, colhida ainda naquela época mas que deve valer até hoje: o cara odeia, mas detesta mesmo, platéia retardo-mental que gosta de bater palminhas ou cantar acompanhando o cantor, o que parece ter virado moda aqui no Brasil: “Odeio a participação do público. É algo que me deixa literalmente arrepiado. Gritar, berrar e cantar em grupo pode ser um barato na igreja, mas não em nossos shows.”
Então, não digam que não avisei...

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Acontecia no piano bar

Edson Fredrico, Danuza Leão e Candice Bergen
Em 1987, quando eu era chefe da sucursal carioca de famosa revista erótica paulistana, fui encarregado de redigir uma matéria sobre os pianos bares do Rio de Janeiro. A pauta pedia que eu pegasse pesado, contando todas as baixarias ocorridas no lusco fusco daqueles inferninhos de luxo e cometendo todo tipo de indiscrição a respeito das grandes celebridades que freqüentavam a noite chique carioca — no que, como verão ao seguir, fui muito bem sucedido.
Infelizmente, a pauta era uma armadilha do lado negro da Força para derrubar este pobre cronista que vos narra. Justamente por ter cumprido à risca aquilo que me fora pedido, acabei demitido e, obviamente, a matéria não foi publicada. No ano seguinte, porém, o texto acabou nas páginas da concorrente carioca, para onde eu voltava alegre e faceiro após aquele triste (e broxante) purgatório na Terra da Garoa. O texto que segue reúne trechos daquela matéria “polêmica”, na qual fui mais que ajudado pelo maestro Edson Frederico que, afinal de contas, é o grande protagonista da reportagem.
Portanto, minhas queridas Gabriela e Catarina, aí vai: um apanhado de histórias sobre a juventude de seu pai, um pequenino — diria microscópico — exemplo de como meu primo era engraçado e espirituoso, um sujeito tão seguro de si que não se importava em fazer troça de si mesmo, que trabalhava com enorme prazer e estava sempre muito, mas muito de bem com a vida:

NÃO EXISTE, A RIGOR o que se convencionou chamar de a noite carioca. Enquanto os gatões e gatinhas da juventude dourada se espalham pelos baixos e pelos circos (que de voadores só têm as latas de cerveja), enquanto boêmios, intelectuais e jornalistas disputam os bares da Lapa, do Centro e adjacências — vez por outra fazendo concessões à Zona Sul apenas para visitarem o tradicional Antonio’s —, o beautiful people tupiniquim se esconde em um tipo de estabelecimento ímpar em suas características: o piano-bar.
   O piano-bar se divide em piano, público, garçom e barman. Ao redor do nobre instrumento de cordas percussivas, imersos em uma atmosfera carregada de fumaça, requinte e desejo, debruçados sobre generosas doses de scotch ou vodca importada, as maiores celebridades do jet set e do showbiz deste e de outros planetas fazem a sua noite carioca particular, embora a mesma cena possa estar acontecendo em Hong Kong, Nova Iorque ou Alfa Centauri uma vez que tais ambientes têm a mesma variedade étnica e cultural de um McDonalds. Brasileiríssima, mesmo, só a música, e ainda assim, bem de vez em quando.
   Entretanto, seria incorreto afirmar que a noite chique é a mesma todo o tempo. A verdade é que, mesmo comprimida, estratificada e pressurizada nas pequeninas naves espaciais que são os pianos-bares, até mesmo essa noite carioca tem as suas sensíveis variações. (...)
   Entre as oito e as onze horas, ocorre nesses recintos o fenômeno do pré-motel executivo. Ainda trajando seus indefectíveis uniformes de trabalho (gravata, paletó e pastinhas 007) e trazendo a tiracolo a secretária do terceiro andar, executivos de grandes e médias empresas executam a dança da corte, ritual que vale a pena ver para crer.
   A dança do pré-motel começa em passos lentos, pianinho, passa a um alegro vivace em crescendo para desaguar num gran-finale de pano rápido. Primeiro, executivo e secretária sentam-se afastados, falam amenidades, fofocas profissionais (ele de olho no decote dela, ela se esforçando em disfarçar o decote indisfarçável). Em dado momento, já alegrinhos por causa do segundo uísque, ou ele ou ela — pouco importa — vai ao banheiro. Na volta, sentam-se mais próximos e estão líricos, carinhosos, falando baixinho, aos arrulhos. Então, quando menos se espera, o beijo rasgado de extrair amídalas, a conta por favor e o motel, na certa. (...)
   Após a saída do último casalzinho executivo, começa o que chamamos de horário nobre, ditado pela saída dos grandes shows e pelo fim das funções de teatros e casas de espetáculos. E é aí que, usando a velha expressão, o circo pega fogo. O álcool já fez efeito e, protegidos pelas paredes surdas de seus redutos revestidos de veludo e espelhos, artistas, celebridades e colunáveis aprontam das suas, pra valer. (...)
   Depois do horário nobre (que não tem hora para acabar, dependendo da disposição das feras), tem início o deprimente espetáculo da xepa de feira, quando os garis já estão varrendo a rua, o chuchu das bichas já está brotando e quem até então não cantou ninguém vai ter de se virar mesmo é no cinco contra um. As mulheres remanescentes estão desesperadas e os homens, nem se fala. Nessas horas, até a garota que vende cigarros vira a Brooke Shields.
   A respeito da xepa de feira, vale lembrar que é o horário em que ocorrem as melhores piadas espontâneas — e as piores baixarias. Foi numa hora como essa, por exemplo que vimos certa portentosa cantora carioca de sexualidade alternativa perseguindo o gerente do Chiko’s Bar com um sapato na mão por que ele ousara acordá-la para, gentilmente, convidá-la a se retirar, já que estavam fechando a casa. O gerente fugiu pelos fundos, atravessando a cozinha em ritmo de papa-léguas, levando alguns pratos na correria desabalada. Foi uma fuga vergonhosa mas a verdade é que a estratégia deu resultado, já que a feroz cantora saiu correndo atrás e o maître, espertamente, trancou a porta.
   Algumas noites depois, ao se levantar para levar sua amiga Zezé Motta em casa, este pobre repórter ouviu às suas costas a voz tonitruante desta mesma maldita cantatriz das trevas a esbravejar: “Aí, ô garotão... Como você não vai dar conta da crioula mesmo, depois leva ela lá em casa para o café da manhã.” (...)
   Boa mesmo aconteceu outro dia, em célebre piano-bar de Ipanema: fora das paradas por um bom tempo, após uma temporada naturalista em Mauá, Odile Marinho (ex-Rubirosa) encontrou seu ex-namorado, o pianista Edson Frederico, e disse: “Oh, meu querrido, há quanto tempo: Como é que eu estou? Ainda bonita?” E, antes que o jovem maestro pudesse responder, tirou a camiseta, expondo a todos os seios que, justiça seja feita, ainda fariam a cabeça de qualquer cristão. Foi um pega pra capar: “Ninguém se mete!” “Tira!” “Bota!”, até a intervenção do maître e de alguns garçons, que acabaram por vesti-la. Mas ainda assim ela esperneava e gritava: “Seus merdes, ele já foi meu namorrado, viu? Tão pensando o quê? Eu compro essa merde desse bar...”
   Há quem diga que Frederico é chave de cadeia. Mentira, a culpa não é dele. Seu único defeito, talvez, seja esse perigoso hábito de comer a carne aonde ganha o pão (ou vice versa). Nós, da noite, sabemos que, naquela vez em que um sujeito chegou ao Chiko’s Bar e descarregou um revólver em sua direção — alvejando gravemente um garçom, que ficou paraplégico —, ele não tinha culpa nenhuma. Também não teve culpa quando uma mulher desconhecida entrou no bar cambaleante, olhou para o pianista com cara de poucos amigos e perguntou: “Cadê o Luís Eça?” E, ao não receber resposta, emendou: “Quem é esse merda?”, para logo depois pegar um cinzeiro de cristal e atirá-lo em direção ao american bar, causando um estrago de alguns milhões de cruzeiros ao estabelecimento. É o que diz Frederico: “Se tudo correr bem, você é uma gracinha. Mas se alguma coisa der errado... cherchez le pianiste!
   Frases de efeito (ou com defeito) é o que mais se ouve em um piano-bar. Tais como aquelas presenciadas por todos os freqüentadores do Calígola quando da discussão entre uma freqüentadora e um garçom: “Tá pensando o quê? Eu sou uma lady, viu, seu filho da puta?” Ou a resposta na ponta da língua dada por certo pianista mal-humorado: “Você toca por música?” E ele: “Não. Por dinheiro.”
   Aliás, o pianista é uma criatura bem sacrificada na noite dos piano bares. É ele quem tem a obrigação de, além de tocar, ficar de olho em tudo que acontece ao redor (nunca se sabe se terá de dar no pé quando da chegada de algum corno furioso), além de aturar galhardamente a bolina do brotinho sentado na mesa ao lado. Mas a sua verdadeira cruz são os bêbados-chatos-musicais.
   Bêbado-chato-musical é aquele sujeito que faz sempre o mesmo pedido: “Toca aquela!” Mas os bêbados-chatos-musicais chegam às raias do inconveniente quando, por exemplo, ao se apoiarem na borda do piano para pedirem “aquela”, fecham a tampa na mão do pianista. Ou quando, em meio a um solo complicadíssimo, chegam no ouvido do músico e começam a cantarolar outra melodia: “Toca aquela que é assim ó: tralalalá...” (...)
   Para encerrar a parte dos chatos, é bom lembrar o ocorrido no Chiko’s faz uns seis meses. Lá pelas duas da manhã, em pleno horário nobre, o pianista começou a receber uma série de bilhetinhos insistindo para que tocasse a mesma música:Rosas Vermelhas para uma Dama Triste”. Como não se lembrasse do título, no primeiro intervalo perguntou quem estava requisitando a canção. O garçom apontou para uma mesinha no fundo do bar onde conversava um casal. “Com licença, senhor, mas poderia solfejar o comecinho dessaRosas Vermelhas para uma Dama Triste’, que eu não estou me lembrando?” E o chato, com uma cara de quem não gostou da intervenção: “Agora não precisa mais, era surpresa para ela...” (...)
   Certo fim de noite, já completamente de porre, a famosa cantora baiana se oferece para “dar uma canja”. O pianista, que está a ponto de fechar a loja, se recusa. A cantora adverte: “Se você não deixar eu dar uma canja, vou fazer xixi no piano!” O pianista não acredita na ameaça e qual não é a sua surpresa quando a cantora sobe no Yamaha, arria a calcinha, se agacha e urina sobre as cordas. No dia seguinte, ao sentir o cheirinho característico, o ceguinho afinador que prestava serviços à casa lamentou-se: “Tratam tão mal este piano...”
   Aliás, piano de bar é realmente um instrumento muito sacrificado. Certa noite de bruxas, este mesmo pianista que teve o piano batizado, foi obrigado a ver o seu instrumento de trabalho pisoteado por uma mulher que resolveu usá-lo como palco de show erótico. Além de contrariado com o gesto, ainda teve de fazer um esforço danado para não confundir as teclas. (...)
   Bons e saudosos tempos foram os do Happy Hour, barzinho ali ao lado do Antonio’s, lugar minúsculo em que cabia um piano de cauda e o público disputava o espaço que sobrava. Havia quem falasse, inclusive, que o Happy Hour era o banheiro do Antonio’s, tantas as brilhantes carreiras ali desperdiçadas.
   Lembro de certa noite em que, além de Sônia Braga, Walter Clark, Boni, Roniquito, Tarso de Castro e Pelé, ainda estavam lá a Candice Bergen, a Jacqueline Bisset e a Liza Minelli. Era uma noite de glória. Mas acontecia ali um fenômeno curioso: todos sabemos que o carioca recebe muito bem as visitas, sejam celebridades ou não. Mas assim que a Jacqueline Bisset freqüenta duas vezes o mesmo bar, vira uma chata, o tradicional “arroz de festa”. Então, ali, naquele Happy Hour entupido, ninguém estava dando muita bola nem para ela nem para o resto da turma célebre. Ao contrário: os freqüentadores estavam mesmo era de saco cheio porque o bar era pequeno e tinha gente saindo pelo ladrão.
   Pois foi nessa noite que, lá pelas tantas, uma bela jovem emergiu por entre as pernas do pianista, que, assustado, parou de tocar. E ela, sorriso romântico rasgado nos lábios, pediu: “Maestro, tocaLígia’?” Foi uma gargalhada só. E o mais curioso foi que ela não saiu dali o resto da noite. (...)
   E etc, etc, etc...

sábado, 24 de dezembro de 2011

Meu primo virtuoso

Com Tom Jobim, Toquinho, Miucha e Vinícius de Moraes

As verdadeiras elegias geralmente são mal escritas. E não haveria como ser diferente. É muito difícil reunir sangue frio para, no momento da última despedida, conseguir pronunciar um discurso coerente e que, ainda por cima, faça justiça ao ente querido recentemente falecido. As lembranças se atropelam, as emoções se descalibram, as palavras se embaralham, a garganta, o estômago e o próprio cérebro se atrofiam e chega um momento em que você acha que não dará conta da tarefa. No fundo, você não deseja fazer aquilo. É-lhe mais que penoso. Em verdade, é excruciante. E cada palavra parece ser arrancada de seus dedos por invisíveis tenazes incandescentes. Contudo, é uma tarefa que tem de ser feita. E você a faz. Por que é o mínimo — e também o máximo — que poderia fazer naquele momento. 


TRATAVA-O, RESPEITOSAMENTE, por "Maestro". Ele ria, divertido com a cerimônia, e respondia: “Diga lá, meu Primo.” Era um Primo com P maiúsculo. Ou ao menos era assim que eu ouvia.
   Tinha apenas dez anos a mais do que eu mas, para meus olhos admirados, bem poderiam ser uns dez séculos. 
   Quando o vi pela primeira vez, em um Natal na casa de uma tia, sabia apenas que era o primo famoso que tocaria piano após a ceia, acompanhado pelo coral desafinado do restante da família. Mal sabia eu que as canções que assassinaríamos ao pé de seu virtuoso piano naquela noite feliz eram as mesmas que ele acabara de reger em uma turnê pela Argentina, ao lado de ninguém menos que Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Toquinho e Miúcha. 
   Eu era, então, um moleque de onze anos de idade e, assim como o resto da parentada, devia cantar mal feito o diabo. Mas lembro-me de ter ficado muito impressionado com a fácil agilidade daqueles dedos sobre o teclado.
   Depois, bem depois, vim a compor o resto do retrato: o primo simpático e tolerante daqueles natais em família era uma celebridade. Formado pela Escola Nacional de Música da UFRJ, aluno de Guerra Peixe e Ester Scliar, maestro e diretor musical da TV Globo, era parceiro, arranjador e regente de grandes nomes da MPB e do jazz internacional como Sarah Vaughn e Liza Minelli. Dirigia grandes musicais, tocava piano nos melhores bares e night clubs da Zona Sul carioca, lutava aikido, saltava de asa delta, tinha gosto por carros esportivos conversíveis... e comia todas as estrelas hollywoodianas que davam sopa no eixo Ipanema-Leblon. Não que houvesse muitas na época mas, na falta do produto importado, virava-se muito bem (e com notável assiduidade) com o similar nacional, celebrizando-se, assim, como um Don Juan contemporâneo, uma espécie de Príapo pós-moderno com “um membro de duas oitavas”, como testemunharam, admiradas, algumas jovens instrumentistas (no bom sentido) da sinfônica nacional. 
   Nunca se gabou do dote. Ao contrário. Ele mesmo gostava de desconstruir o mito: “Só se for de pianinho de brinquedo, meu chapa!” Mas a verdade cabal e inquestionável era que, ao fim das noitadas no antológico Chiko’s Bar da Lagoa, as mulheres faziam fila com seus carros para buscá-lo à porta: “Quer carona, maestro?” Uma, duas, três, quatro...
   E isso não é fábula.
  Às vezes me pergunto se o personagem interpretado por Charlie Sheen no seriado Dois Homens e Meio não foi em parte baseado nesta faceta de sua personalidade: pianista mulherengo e espirituoso, amante de uma boa cerveja... 
   É de se imaginar a admiração que eu, então um jovem de vinte e poucos anos, tinha pelo primo virtuoso. Personalidade fulgurante, segura de si, vitoriosa, era também um sujeito dotado de precioso senso de humor. Natal, Reveillon, aniversário, casamento ou velório não tinham a menor graça sem ele por perto. Amigo dos grandes humoristas da época, tinha sempre uma piada nova na ponta da língua que narrava com o mesmo sabor e graça com que tecia seus floreios instrumentais. 

   Freqüentemente, me levava para a “balada”, que na época não tinha esse nome. Chamava-se “noite”, ainda, nesses tempos de juventude e inocência. Só que as “noites” de meu primo eram sempre de gala, cercadas de muitos refletores, muito brilho, boa comida e bebida, gente bonita, famosa e interessante. 

   E música. Música além da conta. Boa música pra caramba e à beça. Música para extasiar, encantar e apaixonar até mesmo as pedras da Guanabara. 

   Como tocava aquele sujeito!

  Anos depois, ao me ver diante do desafio de compor o personagem Paganini de meu romance Memórias de um diabo de garrafa, freqüentemente recorri às lembranças que tinha desses meus tempos de mascote de instrumentista virtuoso. Vê-lo tocar, realmente, era ter assunto para contar para seus netos “durante todas as tardes de sua idade madura”. E ele de fato conseguia extrair de uma caixa de engraxate rachada o que o segundo maior pianista da casa não extrairia de um Bosendorfer Imperial. (Não ouso pensar o que faria o maestro com um instrumento desse calado. Trasmutação de água em vinho? A pedra filosofal? Vá lá saber. Mas o bom e velho Yamaha do Chiko’s mais que bastava para o seu gênio.)

   Tínhamos alguma semelhança física, a ponto de algumas pessoas nos confundirem no lusco-fusco dos night clubs. Certa noite, ele sugeriu: “Senta ao piano e finge estar tocando.” Obedeci. Ele se enfiou por baixo do piano, esticou as mãos até o teclado e começou a tocar. Por incrível que pareça, executamos duas músicas inteiras até alguém se dar conta do embuste. “É meu primo” explicou depois. “Uma versão mais jovem e tenra de mim mesmo...” 

Certa tarde, lá pelos meus vinte e cinco anos de idade, o primo ligou e perguntou:
   — Está de bobeira?
   Claro que eu estava.
   — Então se apronta que vou ai te buscar para te mostrar um lance maneiro.
   A gente se falava meio assim nessa época. Ou, ao menos, é assim que me lembro.
   Fomos de Laranjeiras até o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, a bordo de seu possante Bugre conversível 1.0, uma vez que o antigo Porsche usado nos tempos da Globo já fora rifado havia algum tempo.
   Entramos pelos fundos, junto com o pessoal da limpeza. Tudo muito cedo ainda. Mofo de teatro adormecido. Silêncio nas coxias. Avançamos pelos camarins, pelos bastidores, ganhamos o proscênio, descemos por uma escadinha precária no extremo oposto do palco e chegamos ao chiqueiro, uma sala com jeito de vestiário de estádio de futebol onde se espremiam uma dúzia de músicos.
   Até então eu pensava que, à hora H, pouco antes das batidas de Molière, eu seria devidamente encaminhado à platéia. Mas estava enganado. Em dado momento, uma campainha tocou, os músicos se levantaram, ajeitaram golas e gravatas, recolheram instrumentos e partituras e, em fila, saíram pela porta da sala. 
   O maestro me olhou com olhos maliciosos e meneou a cabeça, sugerindo que eu os acompanhasse. Atônito, obedeci. Ele seguiu logo atrás.
   Os músicos se acomodaram em seus lugares no fosso, o maestro subiu ao pódio e pediu que eu me sentasse aos seus pés, onde eu ficaria oculto da platéia por uma divisória de madeira que subia até a sua cintura.
   O espetáculo era Evita, de Rice e Webber, na qual meu primo não apenas era maestro como também diretor musical. Assisti a tudo maravilhado, a uma cusparada dos violinos, bem ao lado do regente, acompanhando cada um de seus movimentos.
  A peça que se desenrolava no palco era suntuosa, uma superprodução como poucas vezes vimos por estas bandas. Mas o que realmente encantava era poder assisti-la daquele ponto de vista inusitado, dentro do fosso da orquestra, observando cada movimento dos instrumentistas, ouvindo a respiração ofegante do maestro endiabrado, os grunhidos que emitia nas passagens mais fortes, como um tenista profissional durante os saques. A vida no seu auge.

Ontem, uma multidão compareceu ao São João Batista para prestar-lhe as últimas homenagens, mas eu não estava presente. Não tive coragem. Quando menos, acho que não suportaria um velório de família sem o maestro para contar piadas enquanto bebericávamos o café frio e ralo da capela. Mas acho que o principal motivo de minha ausência tenha sido o fato de não desejar poluir a sua lembrança com a imagem tosca de um corpo inerte rodeado de flores fedorentas dentro de um caixote de madeira. Prefiro me lembrar dele como naquela tarde, no pódio, conduzindo a orquestra pelos fios invisíveis de sua mágica batuta. Prefiro me lembrar das noites intermináveis, repletas de cristais, espelhos e champanhe, embaladas pela música maravilhosa que extraía de seu piano. Enfim, prefiro me lembrar dele como o super-herói verdadeiro, de carne, osso e espírito, com quem tive o privilégio de conviver em minha perdida juventude.
   Fama semper vivat.

No musical Evita, Teatro João Caetano, 1983.

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