terça-feira, 31 de maio de 2011

De volta para o futuro


Depois de quase 20 dias perdido nos infectos cybercafés do passado pré-histórico, o intrépido navegador do tempo volta a ter uma conexão minimamente aceitável o que, em princípio,  viabiliza seu retorno para o Presente. A velocidade de conexão será mantida? Conseguira o nosso herói regressar a salvo para casa? Ou voltará a cair em um labirinto espaço-temporal que o arremessará irremediavelmente nos ermos mais remotos e obscuros do Universo? Ninguém sabe. Nem a Vivo. Esperemos o desenrolar dos fatos.

domingo, 29 de maio de 2011

Mundo Vivo

Míseros 14,6 Kbps. Esta é a velocidade média de conexão que tenho obtido nos últimos dias, graças à operadora Vivo, cujo nome deveria ser trocado para Morto ou Debochado, tal a qualidade do serviço e da assistência técnica que oferece aos seus clientes. Se puderem, evitem. E passem a informação adiante.

O Predador


VIVER NO MATO É O MAIOR BARATO. Mas, às vezes, sentimos falta de um bom restaurante. É claro, sempre podemos recorrer às malditas espeluncas da aldeia, mas o que dizer de um lugar onde o restaurante mais bem apanhado tem o sugestivo nome de McGato? Então, resta-nos apenas trazer os restaurantes para dentro de casa.
   O cardápio varia de acordo com a estação ou com a disponibilidade de mantimentos que encontramos no barracão do povoado. Ontem, por exemplo, resolvemos nos presentear com um banquete árabe: hommus tahine, babaganuge, salada de grão de bico, tabule, quibe cru, arroz com lentilha, charutos de repolho e  kafta. Não é o banquete completo porque nos faltavam a coalhada seca, o carneiro e também porque decidimos não fazer o tradicional frango na brasa com molho de limão e alho. Ainda assim, foi uma comilança das boas, que nos custou duas laboriosas horas de preparo e uma boa meia hora de inenarráveis prazeres sensoriais.
   Pança cheia, lombeira gostosa pós-banquete, começamos a filosofar. Aliás, sou partidário da teoria de que a filosofia é resultado de estômagos bem fornidos. Quando se tem fome, ninguém se interessa em saber de onde veio, para onde vai ou o que está fazendo neste mundo. Para mim, a filosofia é um mero sub-produto da agricultura, da pecuária, da culinária e da mente ociosa de gente empanturrada.

sábado, 28 de maio de 2011

Diário de bordo


“O tempo é o pior lugar onde alguém pode se perder, dava-se conta Arthur Dent, uma vez que estava um bocado perdido, tanto no tempo quanto no espaço. Ao menos, estar perdido no espaço o mantinha ocupado.” — A vida, o universo e tudo mais — Douglas Adams

DE VOLTA AO CYBERCAFÉ da aldeia. Eu deveria ter trazido luvas cirúrgicas para tocar nesse teclado ensebado. As teclas “a” e “e” estão apagadas de tanto uso. A atmosfera cavernosa, o fedor de cassino eletrônico e o blablabla da garotada também não ajudam. Mas vamos lá:
Estas são as viagens da nave interestelar Feijoada Completa, em sua missão de cinco anos para explorar novas vidas, novos mundos, novas civilizações, audaciosamente indo aonde nenhum blog jamais esteve.
Diário de bordo, data estelar 110528. Náufrago em algum lugar na montanha carioca, planeta Terra, Quadrante 17. Século XIX. Relatório de avarias: quadro de energia crítico. Sem conexão com a base. Unidades de teletransporte inoperantes. Comunicadores mudos. Baixa moral entre os tripulantes. Nativos hostis. Carregar fasers.
A caminho da aldeia, desviando dos sapos na estrada. O vento entra pela janela do carro. É um ar leve, rico em oxigênio, amadeirado, com um suave aftertaste de orquídeas, mato queimado e notas tênues de bosta de vaca e cavalo. Aquele que se dispuser a engarrafar esse ar e exportá-lo para o século XXI vai ficar bilionário.
Gado deitado na pista. Uma meia dúzia de vacas prenhes, umas pretas, outras pardas. Um convescote de futuras mamães trocando impressões sobre a maternidade. Paro o carro. Qual a pressa? Abro a porta, saio em meio à manhã gelada de orvalho. O silêncio não é de ouro e nem de prata. É de veludo acetinado. Mas esse, meu chapa, não dá para engarrafar e mandar para o futuro. Ouço o som de cupins roendo um tronco de árvore no acostamento mais adiante.
As vacas vão pastar, eu volto ao carro. Alguns minutos depois, chego à estrada de asfalto. Mais adiante um pouco, a aldeia feiosa cercada de encostas peladas. Povo excitado na manhã plistocênica. Uns a caminho do caixa eletrônico para pagar o dízimo de seu pastor preferido. “Aproveita, querido, e paga também o carnê do Baú da Felicidade”. Outros, a caminho do único supermercado da aldeia, para serem roubados no quilo do frango estragado. Caro e podre. Por aqui é preciso cheirar tudo. E contar os dedos após cumprimentar um nativo. Outro dia, dei bobeira e roubaram a coleira de minha cadela. Já pensaram nisso? A coisa está tão feia que já estão assaltando cachorro.
Chego ao cybercafé. Ou seria "saibercafé" fessora Heloísa? A essa altura dos acontecimentos já não sei de mais nada. Espero vagar um console. O moleque se levanta com dificuldade, juntas estalando. Devia estar sentado ali há um tempão, as olheiras profundas de quem passou a madrugada inteira mandando beijocas pelo MSN.
Digito a crônica “de um jacto” como dizia o Saramago, levanto apressado, pago a fatura e volto ao carro um tanto nauseado. Mas assim que pego o caminho de terra de volta à nave disfarçada de casa pousada no topo da colina, a realidade volta ao prumo: árvores, vacas, pica-paus, ar puro. E esse impagável silêncio de veludo. Às vezes chego a desejar que Scott nunca consiga consertar a nossa nave...

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Ora bolas...

Baseado em uma lenda urbana

ELE ESPERAVA O PEIXE enfiar a cabeça para fora da toca, câmara a postos, evitando respirar para que as borbulhas não espantassem o animal arisco, quando ouviu um estrondo grave, oco, cavo, e viu-se sugado para trás, envolvido num torvelinho de bolhas, algas conchas e corais despedaçados.
    Ainda rodopiava em meio à água turva, como um mosquito malferido ao ser sugado por um ralo, visibilidade nula tanta era a areia em suspensão à sua volta, quando ouviu outro estrondo — desta vez um ruído metálico, como o de uma escotilha se fechando — e as trevas completaram o cerco à sua volta.
   O susto do primeiro momento fora tão grande que ele chegou a urinar dentro da roupa de borracha. Agora, porém, tomava-o pavor mais consistente, menos histérico embora mais denso, infinitamente mais sério e ponderoso, à medida que nadava às cegas e ouvia ao fundo o inusitado zumbir de um inseto gigante.
   Nadava sempre adiante, ou numa direção que lhe parecia ser adiante, como se tentando fugir das trevas que o cercavam, quando subitamente chocou-se contra uma parede de metal e quebrou o vidro da máscara de mergulho.
    Ora bolas...
  Rapidamente, desvencilhou-se da máscara e, embora estivesse morrendo de medo, ainda teve sangue frio bastante para olhar em volta, analisar a própria situação e identificar um pequeno ponto de luz na direção para onde subiam as borbulhas. Olhos abertos, começou a subida, ansioso para meter a cabeça fora daquele pesadelo, quando novamente ouviu um ruído metálico, e novamente sentiu-se sugado para baixo, desta vez para ser inapelavelamente arremessado sobre as chamas do inferno. 
   
O guarda florestal que encontrou o corpo na manhã seguinte não conseguia acreditar no que estava vendo: um homem-rã semi-carbonizado, em meio a uma floresta devastada por um incêndio, a mais de vinte quilômetros do mar. Hummm... Demorou alguns segundos até ele finalmente se dar conta do que havia acontecido; e lamentar o azar do pobre mergulhador.
   De fato, os legistas foram categóricos ao afirmar que a vítima não morrera queimada e nem por asfixia, e sim pelas múltiplas lesões que sofrera ao ser despejada sobre a floresta em chamas, da caçamba de um avião-pipa do corpo de bombeiros do Estado da Califórnia.

domingo, 22 de maio de 2011

Picadinho de domingo

SEM INTERNET E SEM TELEFONE, ET NÃO pode phone home. Mandem e-mails. Ainda tenho uns R$ 5 de crédito aqui nesse cybercafé perdido em algum lugar da Serra Fluminense, repleto de adolescentes retardados trocando fotos com pedófilos via Orkut. 
   Saco.
* * *

— Atendimento Vivo, Carla boa-noite, com quem eu falo?
— Fala com Tião.
— Em que eu posso lhe ajudar, seu Tião.
— É qui nóis tá com pobrema aqui na Internéti. Dá pra pidi pro moço aí rodá a manivela mais rápido?
— Pois não, senhor Tião. Qual o número do modem?
— Peraí... xiiiii... mas tem muito número aqui embaixo da aparêio, dona...
— O senhor precisa apenas me dizer o número da linha do modem.
— Ah tá bom... Olha, eu nunca sortei pipa com linha grossa desse jeito mas deve ser prá lá de 50.
— Senhor Tião, há alguém na casa que entenda de computador?
— Tem num senhora. Mas num pricisa. Nóis sabe mexê. Nós só que que o homi aí roda a manivela. Tá muito ruim esse trem aqui...
— O senhor está se queixando de lentidão na conexão, é isso?
— É, uai. Tá lento pacaraio. Nóis tava aqui vendo um clipes do Luan Santana no iutubs e parô tudo nu meio. Anda um cadinho, pára. Anda um cadinho, pára... 
— Senhor Tião, se o senhor não me disser qual a o número da linha do modem eu não poderei ajudar.
— Ah, tão tá... Perái. Ô Sinfrim, ô Sinfrim, meu corno... vem cá vê se tu se intende com essa muié. Eu num intendo nada que ela fala. Parece até o FHC!
— Alô?
— Atendimento Vivo, Carla boa noite. Com quem eu falo?
— Tá falando com Sinfrim.
— Seu Sinfrim, o senhor é o proprietário da linha?
— Eu? Sô não sinhora. So venho aqui filá a bóia do viado do cunhado.
— Mas o senhor sabe qual é o número da linha do modem do seu Tião?
— Rsrsrsrsrsrsrsrs...
— Sr. Sinfrim...
— Rsrsrsrsrsrsrsrs...
— Sr. Sinfrim, o senhor está rindo de quê?
— Rsrsrsrs... é que eu num sabia que o Tião usava modems. Mas olhando assim, pelo tamanho do rabo, deve ser tamanho GG.
— Vocês estão com problema de lentidão, é isso?
— Dona, lentidão aqui é pouco. Tá devagar quase parando.
— O senhor poderia fazer o fazer de desconectar o modem do...
— Mas nem fudenu! Perái que vô chamá a Creusa que tem mais intimidade com o homi.
 A atendente se vira para a colega na baia ao lado, tapa o bocal do fone e diz:
— Já deu pra sentir que essa vai ser uma noite de merda.
 E continua por aí, madrugada afora.
 

* * *

Algumas pessoas não entenderam a nota sobre a TV de 85 polegadas. Se não entenderam, a culpa foi do escritor. Então explico: já há algum tempo venho cismando com os títulos capengas do portal da Globo.com. O título da seção "eletrônicos" dessa semana não é menos sem jeito: "TV de 85 polegadas tem resolução absurda." Fico eu cá a pensar qual teria sido a  "resolução absurda" da TV. Será que ela pirou e decidiu: "De hoje em diante, vou começar a exibir as imagens de cabeça para baixo." Ou, "De hoje em diante só exibo imagens em negativo?" O termo "resolução absurda" não quer dizer nada, não carrega qualquer informação relevante. Isso é péssimo jornalismo. Desculpem o ruído na comunicação.

* * *

Gato cagou no telhado.
A chuva lavou a cagada.
Choveu merda adoidado
Pra ispanto da caboclada.
"Era só o que fartava,"
gritou Tião pro enteado
"Palloci vortô pro Planalto
espalhando bosta pros lado..."

"Xi, padinho, num isquenta
Essa gente é tudo safado
quanto mais ocê recramá,
pior vai ficá pru seu lado
merda de gato é fedida
deixa o ar empestado
mas aduba a terra e as pranta
mior ocê ficá calado."
 Para a Prof. Heloísa, com carinho

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O escritor invisível


DE VOLTA À TERRA APÓS ALGUNS milênios no espaço, e logo me deparo com essa discussão idiota se devemos ou não ensinar português errado nas escolas. Eu acho que não. Já que pretendem ensinar, que ensinem certo. Se quiserem aprender errado, que vão para a zona. Mas quem sou eu para opiniar? Minha faxineira Gerusa é quem sabe das coisas. E já anda até a escrever livros para o MEC. Imagino a aula: "Vamu lá criançada! é pra conjugá o verbo ir: Eu vô, cê vai, nóis vai...!"  E por aí afora. Primeiro as cotas raciais, a aprovação automática, o bullying, a chacina de Realengo, a reforma ortográfica... e agora isso. Como dizia meu falecido amigo Henrique Diniz, sujeito muito fino e recatado: "Arrebentou a chapeleta, meu caro!" Endosso e assino embaixo.
   De volta de minha viagem nas estrelas, fiquei eu cá muito lisonjeado ao descobrir que ontem, dia do último capítulo de minha pulp-fiction interplanetária, atingi a espantosa marca de mais de 120 acessos, o que quer dizer que meus cinco fiéis leitores andaram muito ocupados, cada um acessando a mesma página 24 vezes em um mesmo dia. Com leitores assim, quem precisa de um Nobel, um Jabuti, um Pulitzer? 
   Esse negócio de blog é mesmo uma invenção do caramba. Vivendo metido no meio do mato, sem telefone fixo, sem correio, sem coleta de lixo, sem vizinho, eu e minha mulher às vezes chegamos a acreditar que não existimos. "Benhê," diz ela às vezes, "sabe que eu estou tendo a impressão de que nós morremos e que tudo isso aqui é uma espécie de purgatório antes do Juízo?" Então eu a levo ao Rio, comemos um eisbein no Bar Brasil, damos um passeio no shopping e a impressão se desfaz por completo. Ao menos até a semana seguinte. "Benhê..." Saco. 
   Não fossem os blogs, confesso, eu também seria vítima de semelhante agonia. É claro que 120 acessos é uma merreca que o Paulo Coelho recebe enquanto mexe o café com a colherinha de prata. Ou o número de mensagens que uma jovem adolescente recebe no MSN entre um "Então..." e um amasso. Para mim porém, é como um cordão umbilical que me liga ao resto do mundo. É a minha confirmação de que há alguém do outro lado. 
   Senão, seria difícil acreditar que ainda estou nesse lado da cerca e acabaria cedendo à paranóia de minha digníssima esposa: "Eu vejo gente morta..." 
    Saco. 
   Vou tentar levá-la ao árabe do Largo do Machado para comer uma esfiha de carne e ver se desencana...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Gran finale

Nasa
— TEM ALGUÉM AÍ? — berrou Marl Debiene ao microfone, assim que se posicionou sob o facho de luz azul fluorescente que iluminava o centro do palco. Nos reverberadores de retorno ouviu um rumor distante, a síntese de muitos bilhões de vozes a clamar, exultantes: “Sim! Aqui estamos!”
Ela fingiu não ouvir a resposta e repetiu:
— Tem alguém aí? — e levou a mão à orelha, como se para ouvir melhor. Dessa vez, a resposta veio tão alta, tão clara que o deslocamento de ar chegou a fazer oscilar os cachos de seus cabelos: “Sim! Aqui estamos!”
— Povos de Tolecalon, eu amo vocês!
O brado nos reverberadores tornou-se insuportavelmente alto e Marl Debiene meneou a cabeça para o robô engenheiro de som, pedindo que ele abaixasse o volume do retorno. Em seguida, olhou discretamente para o relógio de pulso e prosseguiu:
— Vocês devem estar estranhando a ausência dos rapazes da banda, mas hoje decidi dar-lhes folga e fazer um espetáculo solo. Esta será uma noite muito especial. E eu conto com a sua energia, a sua emoção, a sua paixão para transformar este show em uma festa inesquecível!
Outro brado ensurdecedor.
— Antes, porém, preciso lhes contar um pequeno segredo.
Como se obedecendo à ordem de um maestro invisível, fez-se silêncio absoluto em todos os mundos habitados do sistema.
— Eu deveria me desculpar pessoalmente com cada um de vocês mas a verdade é que não sou quem pensam que eu seja. Sou apenas uma máquina projetada por uma cultura já há muito extinta, que floresceu em um pequeno planeta em órbita de uma estrela ordinária em um dos braços externos de nossa Via Láctea.

Alter-ego


O MENSAGEIRO NÃO TEVE dificuldade para projetar e moldar o corpo de seu alter-ego cibernético. A nave era dotada de sofisticadas instalações de bioengenharia capazes de imprimir andróides orgânicos de qualquer espécie, desde que seus computadores fossem devidamente alimentados com algum código genético minimamente consistente. Se quisesse, o Mensageiro poderia criar um dragão com focinho de porco, um trilobite gigante com cauda de pavão-real, um peixe-voador com asas de beija-flor, um rinoceronte com bico de pato, um guaxinim cor de abóbora com rabo de castor...
   Ou uma mulher extraordinária como Marl Debiene, o que foi o caso.
   Àquela altura, o Mensageiro já conhecia a fundo os padrões de beleza de seus excêntricos anfitriões e criou-lhes uma mulher ideal, proporcionalmente perfeita de acordo com seus canones estéticos, encantadoramente sedutora, uma deusa pagã de beleza demoníaca capaz de arrebatar suspiros apaixonados de qualquer criatura, não importando sua espécie, idade ou gênero. Uma mulher cuja simples presença em uma sala fosse capaz de gerar entre os convidados energia bastante para manter as luzes acesas e a alta taxa de hormônios e adrenalina pairando no ar ambiente. Essa parte era fácil. Ele contava com a tecnologia e todos os dados necesários para alimentar o programa.
   O mais difícil viria a seguir. Seria preciso traçar uma estratégia de marketing infalível e extremamente bem coordenada. Literatura, música popular e erudita, cinema, física quântica... tudo deveria ser liberado ao seu tempo de modo a transformar Marl Debiene na criatura mais importante, mais amada, mais respeitada e, principalmente, mais vista do Universo conhecido.

   O Mensageiro não precisava mais da nave que, afora ser um trambolho inútil àquela altura dos acontecimentos, deixara de ser um esconderijo seguro e acabaria sendo descoberta e sucateada pelos inspetores da RSI. O cérebro cibernético da andróide era capaz de armazenar toda informação relevante que o Mensageiro conseguira resumir dos arquivos da nave.
   Era preciso deixar Hamarquis o quanto antes e rumar para Pi, o centro cultural, econômico e administrativo de Tolecalon. E ali, quando todos os holofotes estivessem voltados em sua direção, quanto todos os planetas daquele sistema esperassem ansiosamente pela sua palavra, a sua benção, finalmente cumprir a missão para a qual fora projetado e na qual vinha trabalhando ao longo de tantos milhões de anos.

Da série Crônicas do espaço profundo

terça-feira, 17 de maio de 2011

Um presente para as estrelas

Carcamon, Pi (Starpress)
Finalmente marcada a data, hora e lugar do próximo e ansiosamente esperado megashow da supermegastar Marl Debiene. A artista, que recolheu-se ao seu palacete de verão após o fracasso de sua última aparição em Frontisterra — que resultou na morte de mais de dez mil espectadores após um inesperado e maçico ataque de moscas paradimensionais — convocou a impressa esta tarde para anunciar a sua decisão de voltar aos palcos. Finalmente recuperada da profunda depressão que a abateu após a terrível chacina, a multitalentosa artista declarou estar pronta para oferecer aos seus fãs “um espetáculo inesquecível” e um misterioso “presente para as estrelas”, provavelmente nome da música que dá nome para esse seu novo espetáculo multisensorial. Alguém duvida que vai ser um arraso?
   O show será realizado no próximo dia 18, às 19:00 UT, em A453b, um asteróide de órbita excêntrica que estará nas proximidades de Pi nesta data. A escolha do lugar não foi esclarecida pela produção, embora os especialistas acreditem que se deva a questões de iluminação, ponto de transmissão ou, simplesmente, decór cenográfico. Ainda abalados com a recente tragédia, a atriz e sua equipe decidiram que o espetáculo não terá platéia mas será transmitido ao vivo, em todas as bandas, faixas e freqüências, para os todos planetas habitados de Tolecalon e outros sistemas vizinhos.  

Da série Crônicas do espaço profundo

Hamarquis

Adrian Mann

HAMARQUIS ERA UM planeta industrial. Noventa porcento da população — mais de vinte bilhões de habitantes — era de operários ou de gente que trabalhava em empregos secundários, gerados pela atividade fabril. A abundância de metais raros como ouro, prata, tungstênio e titânio e a mão de obra barata foram determinantes para que o planeta se transformasse no que era então: o maior produtor de manufaturados do sistema, produzindo  desde cotonetes até naves de cruzeiro de grande porte.
   Outrora um paraíso da biodiversidade, a superfície de Hamarquis era então um gigantesco conglomerado de complexos industriais, que se estendiam num tapete contínuo de pólo a pólo do planeta. Havia muito que os oceanos secaram e não fossem os depósitos de água subterrâneos, a vida seria inviável.
   É de se entender, portanto, porque os habitantes de Hamarquis eram tão cínicos e pouco amistosos. As condições de vida naquele planeta infernal estavam longe do minimamente aceitável, mesmo para criaturas primitivas de base carbono como as que ali viviam. Os poucos condomínios de luxo, dotados de áreas de lazer, restaurantes, centrais de abastecimento de bens de consumo, discotecas, quadras esportivas, piscinas, praias e florestas artificiais, eram privilégios de uma microscópica elite de engenheiros tecnocratas. E até mesmo essas instalações, luxuosas que fossem, não eram capazes de amenizar a atmosfera sufocante e opressiva daquele maldito planeta.

Insight


MARL DEBIENE SERVIU-SE DE de mais uma dose de licor e foi até a sala de vídeo onde reviu atentamente os acontecimentos de seu último show. As cenas eram terríveis. Atacada por todos os lados, a multidão em pânico se aglomerava em uma massa compacta ao centro da planície, enquanto o maior e mais variado enxame de moscas paradimensionais já registrado em toda a história daquele sistema rodopiava ao seu redor em um torvelinho mortal. Moscas-projéteis, moscas-explosivas, moscas-incendiárias. Moscas-serrote, moscas-martelo, moscas-verruma. Moscas-agulha, moscas-navalha, moscas-canivete. E a multidão de espectadores pouco a pouco despedaçada pela nuvem implacável, como um bloco de gelo sendo escavado por um maçarico. Ao fim de tudo, foi difícil encontrar naquela montanha de corpos estraçalhados um membro inteiro, um dedo não amputado, um fragmento de rosto que ainda vagamente lembrasse o de um ser humano.
    Ela deteve a imagem com um gesto do indicador e voltou a ação até o momento inicial do ataque. Repetiu a cena diversas vezes, focando neste ou naquele detalhe. Nada revelador. Nenhuma pista. Por que tantas? Por que tão variadas? As moscas eram criaturas especializadas e raramente atacavam em enxames mistos. Alguma coisa as atraíra involuntariamente até ali.
    Marl Debiene voltou novamente para o início da gravação e dessa vez deixou-a correr sem interrupções, com som. Observou atentamente cada pequeno detalhe do espetáculo até o momento exato do ataque. Nada ainda.
    Foi quando ouviu um baque surdo, repetitivo, como se houvesse alguém batendo à janela da sala de vídeo para chamar-lhe a atenção. Indignada, foi até a janela e já estava a ponto de desancar o segurança atrevido que ousava importuná-la em seus aposentos particulares quando deu com uma mosca-prego chocando-se repetidas vezes contra a vidraça.
    Interessante.
  Movida por pura intuição, ela desligou o som dos reverberadores e imediatamente a mosca sumiu de vista.
    Muito interessante.

   Ela passou o resto da tarde brincando de bobo com a mosca-prego, que ia e voltava à sua janela sempre que ela repetia aquele mesmo trecho da canção “Virgem devassa”, a mesma que tocava quando seu show se transformara em um terrível massacre.
   Quando escureceu, pediu que um jardineiro capturasse a criatura dentro de uma gaiola de fibra de titânio e a levasse imediatamente até o seu laboratório de pesquisas. Ou ela muito se enganava, ou sua missão naquele sistema estava chegando ao fim.

Da série Crônicas do espaço profundo

Visita inesperada

CINQÜENTA ANOS SE PASSARAM. Mas o Mensageiro sentia como se tivesse dormido toda a eternidade. Ainda sonolento, tentou focar os sensores mas demorou alguns segundos até finalmente dar-se conta de que lá fora, em meio à névoa venenosa do depósito de rejeitos, uma criatura aproximava-se da espaçonave.
   Não era possível ver detalhes de seu corpo e nem de sua fisionomia porque o recém-chegado vestia um traje NBC — nuclear, biológico, químico — dotado de tanque de oxigênio independente. Mas notava-se perfeitamente que era bípede, um par de membros superiores, uma cabeça, um par de olhos, indefectível exemplar da espécie dominante naquele planeta. Trazia a tiracolo uma caixa de metal repleta de ferramentas.
   O Mensageiro esperou que chegasse bem diante da nave e, então, fez-se ouvir através dos alto-falantes externos:
   — Vocês receberam a mensagem?
  O recém-chegado assustou-se com a voz. Mas logo recompôs-se.
    — Se recebemos a mensagem? Mas é claro que recebemos! — “Ótimo”, pensou o Mensageiro. “Fizemos algum progresso.” — Ou você pensou que ia ficar por isso mesmo? — acrescentou o outro. — E mesmo que não o tivessem denunciado, a gente ia acabar descobrindo de qualquer forma.
   Era sempre assim. Toda vez que o Mensageiro pensava estar começando a entender alguma coisa, os alienígenas diziam algo absolutamente incompreensível e ele voltava à estaca zero.
   — Desta vez passa — disse o recém-chegado, enquanto dirigia-se a um poste de luz ali perto. — Mas, da próxima, vou lhe arranjar uma tremenda multa!
   E, sem mais explicações, cortou o cabo de alta tensão que alimentava a espaçonave.

Como é bom...

Interior do batiscafo Trieste, 1960
COMO É BOM SENTAR-SE NO TOPO de uma colina, diante da entrada da barra, e ficar a admirar os iguanodontes preguiçosos refestelados ao longo da linha costeira, chifres emaranhados de algas, carapaças impregnadas de plâncton fluorescente!
   Depois, muito depois, já ao crepúsculo da estrela gigante, quando a anã branca estiver bem à prumo no céu, como é bom descer a colina de monociclo a jato, em linha reta, a pique, sem tomar conhecimento da excelente estrada asfaltada que serpenteia ao longo da encosta, pantufas cravejadas de carrapichos, observando a expressão desesperada dos nativos quando cruzamos desabalados à frente de seus lentos e coloridos balibus de passeio!
   Como é bom subir a pé uma montanha de mais de vinte quilômetros de altura e, quando todas as extremidades do seu corpo começarem a ficar esverdeadas por causa da altitude, quando a sua capacidade de raciocínio ficar igual à de uma água viva com problemas de retardo, como é bom tentar fazer um comercial para o seu patrocinador, dizendo: “Senhoras e senhores, este relógio... este relógio... perdão, esta bússola...” E daí por diante.
   Como é bom descer ao fundo da mais profunda fossa submarina de um oceano de ácido sulfúrico, a bordo de um batiscafo de fibra de titânio com espaço interno igual ao do tambor de uma máquina de lavar roupa de solteiro e, uma vez lá embaixo, a mais de trinta mil metros de profundidade, ser abalroado, mastigado, engolido e cuspido por um monstro abissal — mandíbulas escancaradas, olhos cegos saltados das órbitas, imagem que obviamente não deixou de registrar em todo tipo de mídia para a revista de sua sociedade geográfica nacional.

A mensagem


O MENSAGEIRO — OU SEJA, A IMENSA nave de metal resplandecente no interior da qual viajava uma máquina dotada de inteligência sobre-humana chamada “Mensageiro” — pousou suavemente em um depósito de lixo nos arredores de Gabrispule, maior pólo petroquímico de Hamarquis, um dos vinte e sete corpos planetários em órbita do sistema binário de Tolecalon.
   O lugar da aterrissagem vinha bem a calhar. Ao seu redor, espalhavam-se milhares de hectares de terra estéril e desolada, coalhada de contêineres de rejeitos tóxicos e radiativos, esconderijo perfeito para alguém que quisesse passar despercebido durante algum tempo.
   Afinal, antes de anunciar-se aos novos anfitriões, era preciso conhecer a sua cultura, seus modos de ser e agir, seu idioma, costumes e legislações. Caso optasse por uma entrada triunfal, possivelmente encontraria dificuldades para fazer tudo como desejado.
   Antes de mais nada, era preciso recarregar as baterias principais, havia muito exauridas. Sem elas, estaria incapacitado de dar continuidade ao programa. Em verdade, a energia que conseguia captar com as suas baterias solares mal era suficiente para que se mantivesse operacional. Por sorte, o lugar onde aterrissara era cruzado por uma vigorosa rede de transmissão de energia. Ainda assim, ele quase não teve força suficiente de estender um braço mecânico e se conectar à fonte salvadora. Durante a manobra, chegou a ter uma pane total e perder a consciência. E só conseguiu recobrá-la alguns segundos mais tarde porque algo dentro dele achava um absurdo viajar centenas de bilhões de quilômetros para morrer a uns míseros centímetros da tomada.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Turistas


VÊM QUANDO MENOS SE ESPERA, como as moscas, os resfriados, as verrugas nas pontas dos dedos. No começo, após as primeiras arribações — que foram as mais devastadora porque ainda não sabíamos como lidar com o fenômeno — houve quem tentasse encontrar alguma lógica no modo absolutamente perturbador como apareciam e desapareciam de vista, sem motivo aparente para uma coisa ou outra. Passaram-se muitos anos até chegarmos à paradoxal, embora definitiva conclusão de que os visitantes eram um efeito sem causa.
    São muitos, sempre, e sempre famintos e barulhentos. Suas naves platinadas rasgam a atmosfera com estrondos supersônicos, precipitando a febre das bagas e, portanto, a sempre infausta antecipação da colheita. O resultado é um néctar amargo que sabe a remédio para o fígado, ainda pior que o produzido em anos de conjunções solares, cometas e eclipses.
   À sua chegada, somos obrigados a alterar radicalmente a nossa rotina. Não há mais tempo para nada. Evidentemente são criaturas muito primitivas e tão frágeis e desvalidas que não nos resta escolha senão providenciar-lhes conforto, abrigo, comida.

O Mensageiro

Nature / NASA / Ames / JPL-Caltech / T. Pyle

O MENSAGEIRO APROXIMAVA-SE DO fim de sua longa jornada. Já não lhe restava dúvida de que os planetas que giravam ao redor daquele sistema binário pululavam de vida inteligente. Finalmente, o espaço aparentemente insuperável entre duas civilizações interplanetárias havia sido superado. Em breve teria início um dos diálogos mais extraordinários já travados entre duas inteligências alienígenas desde a criação do Universo.
    Enquanto ultimava as manobras de desaceleração, o Mensageiro surpreendeu-se com um antigo comando que ordenava que voltasse a antena em uma determinada direção e emitisse um sinal para notificar o remetente de que a mensagem havia sido entregue. A ordem era de prioridade máxima mas ainda assim ele a ignorou. Mesmo que a antena de transmissão não tivesse sido esmagada por um meteorito havia mais de dez milhões de anos, mesmo que ainda lhe restasse energia para emitir um pulso suficientemente forte para ser ouvido de tão longe. Aquela não seria a primeira vez que desobedeceria a um comando. Já o fizera outras vezes. E faria outras tantas, sempre que o programa original não lhe parecesse coerente e lógico.
   Quando fora lançado ao espaço, o Mensageiro era uma jovem e promissora criatura cibernética que já demonstrava uma percepção extremamente lúcida da realidade que o cercava e que era capaz de, entre muitas outras coisas, compor música, poesia e fazer descobertas científicas por conta própria. É claro que a música era ainda muito simples, a poesia excessivamente esquemática e as “descobertas científicas” uma mera enumeração de causas e efeitos um tanto óbvios. Mas o fato é que os poemas faziam sentido e indicavam terem sido compostos movidos por algo parecido com “inspiração”, mesmo que um tipo de inspiração ainda induzida artificialmente. A evolução seria lenta, sabiam antecipadamente por seus criadores, mas inexorável. Bastava-lhe tempo. E tempo era o que não faltaria ao Mensageiro durante a longa jornada.

Marl Debiene


ELA SORVEU UM GOLE DE LICOR, pousou a taça delicadamente sobre a mesa e lançou um olhar entediado pela janela da biblioteca de seu palacete de verão. Lá fora, além de jardins aparentemente intermináveis, por trás de muros supostamente indevassáveis, ouvia o clamor da multidão de fãs e, vez por outra, os tiros de advertência disparados pelos seguranças nas guaritas. 
  Ela detestava os seguranças, aqueles brutamontes insensíveis, mas também não suportava os fãs e todo o perigo que representavam, de modo que aturava os primeiros para manter os segundos bem longe de onde estava. Embora nem sempre longe o suficiente. Naquele momento, por exemplo, a gritaria que faziam — embora distante — incomodava como o rumor de algum aparelho mal lubrificado que alguém esquecera ligado em um cômodo remoto da casa.
   Olhou para o relógio sobre a mesa e emitiu um suspiro de enfado. Em seguida levantou-se e aproximou-se do imenso espelho de cristal na parede oposta à janela. De fato, não havia mulher que pudesse se comparar a ela em beleza. Tinha a pele muito alva em contraste com um cabelo muito negro que lhe caía em cachos generosos sobre os ombros, emoldurando um rosto redondo e perfeitamente proporcionado. Os olhos, igualmente negros e amendoados, densos e penetrantes, pareciam esconder quase todos os segredos do universo. O nariz de traços retos embora ligeiramente arrebitado na ponta, dava-lhe um ar maroto e juvenil que combinava muito bem com a boca de lábios suaves, sempre úmidos e rosados. 
   Mas a multidão de fãs que se aglomerava lá fora não estava ali movida apenas pelo desejo incontível de ver e, se possível, tocar, apertar, beijar, sugar, penetrar e estraçalhar aquela deusa encarnada entre os homens. Em verdade, a maioria daqueles loucos e loucas que se acotovelavam lá fora estariam exatamente ali, fazendo exatamente o que estavam fazendo mesmo se ela fosse uma bruxa velha e feia com uma verruga cabeluda na ponta do queixo.

As moscas


NUNCA UM VIAJANTE HAVIA DEITADO os olhos sobre aquilo e, portanto, aquilo continuava ali, intocado, havia tanto tempo que ninguém mais se lembrava quanto. Segundo a palavra dos sábios, ouvida da boca dos sábios que os precederam, aquele antiqüíssimo complexo arquitetônico deveria ser para sempre ignorado, assim como os seus misteriosos construtores. Exatamente por isso, nossos irmãos do Outro Lado, reverentes e supersticiosos, construíram as suas cidades e traçaram as suas estradas ao largo das imensas ruínas e ninguém ousava desafiar a proibição ancestral, que fora mantida e respeitada pelos séculos dos séculos.
   Certo dia, porém, como era inevitável, um visitante extraviado deu com as malditas ruínas. E descobriu que eram muito antigas; e que haviam sido habitadas por uma misteriosa cultura alienígena que ali florescera havia muitos milhões de anos e que se extinguira de uma hora para outra, por motivos jamais esclarecidos.
   De fato, as ruínas impressionavam. Construídas com um mineral duríssimo, desconhecido no planeta, espalhavam-se por milhares de quilômetros quadrados e eram absolutamente indestrutíveis. A maioria dos arcos, portais, colunas, assim como vastas seções das muralhas, eram peças inteiriças, sem juntas ou encaixes de qualquer natureza, e pesavam dezenas de milhões de toneladas cada uma. É difícil crer que tenham sido transportadas de um outro planeta até o lugar onde estavam, embora a ciência ainda não nos tenha contemplado com outra alternativa mais lógica.
   Da mesma forma, os estudiosos nunca chegaram a um acordo de como ou para que haviam sido erguidas. O que se sabia é que a chamada “esplanada”, a parte que aflorava terra acima, fora utilizada como moradia e local de trabalho durante milhares de anos, embora não tenhamos certeza se os moradores foram as mesmas pessoas que construíram aqueles edifícios ou uma outra cultura ali estabelecida posteriormente. Já, a parte subterrânea — que englobava mais de dois terços de todo o conjunto arquitetônico — continuava indevassável, imersa em especulação e mistério. O que haveria ali dentro, afinal de contas? 

domingo, 15 de maio de 2011

Picadinho de domingo

Batendo Ponto 
Esta noite, após ser fragorosamente derrotado pela concorrência, o seriado Batendo Ponto, da Rede Globo irá ao ar pela última vez. Imagino a surpresa dos marketeiros da emissora. Afinal, era apenas mais um programa de humor debilóide, com episódios mal escritos, mal produzidos e mal representados. Devia, portanto, ser um sucesso estrondoso, seguindo a consagrada fórmula do Sai de Baixo e dos imortais Trapalhões. O que deu errado? O tema. Para a maioria dos brasileiros, essa parada de ter emprego sem trabalhar, esse negócio de enrolar o patrão, de dar cano na empresa, de empurrar com a barriga, de cozinhar os pepinos até as férias ou a chegada do próximo feriadão é coisa muito séria. Não se faz piada com a cultura de um povo. A gente esculhamba quase tudo. Mas não venham lançar holofotes sobre a multicentenária tradição da vagabundagem nacional. Pega mal. Não fica bem na fita. Deu no que deu.
 
Facebook
Estou eu cá a prosear com minhas musas e sereias virtuais quando entra a seguinte mensagem em inglês quimbundo: "I am Mr. Franklin Dubai, a citizen of Ghana. I have in my bank the existence of a big amount of money that belongs to a customer, Mr. Daniel Raposo who happen to have the same surname as yours .The fund is now without any claim because Mr. Daniel died in a deadly earthquake in China in 2008 . I want your cooperation so as to make the bank send you the fund as the beneficiary and next of kin to the fund. This proposal will be of a great mutual benefit to us. At the receipt of your reply, I will give you details of the transaction. I look forward to hearing from you."

Resposta: "Dear Mr. Frank Dubai, What a coincidence! I also happen to have here in my bank a debt mounting an enormous amount of money that belongs to a costumer, Mr. William Dubai who happen to have the same surname as yours. Mr. William died in a deadly flood in Rio de Janeiro in 2011. I want your cooperation so as to make the bank send you the bill as the bondsman and next of kin to the debt. This proposal will be of a great mutual benefit to us. At the receipt of your reply, I will give you details of how to transfer my money and how to pay the debt of your late relative. I look forward to hearing from you."

Amor estrangeiro
Apaixonada, a gringa se vira para o mineirinho de Governador Valadares e diz:
- Let's get married! You love me and I love you!
- No, no, no! Nada feito! Cada um lava o seu, uai!

sábado, 14 de maio de 2011

Em pé sem ordem!

Foto Álbum Colégio Andrews

DIZEM QUE ELE ERA O MELHOR professor de matemática da escola mas, quando eu o conheci, lecionava biologia. Fosse qual fosse a matéria, entretanto, suas aulas eram um espetáculo imperdível. 
   Nunca houve e, possivelmente, jamais haverá um professor como ele. E não há como haver. Na era do politicamente correto, o velho Maia certamente acabaria afastado do magistério. Seus métodos de ensino pouco convencionais — embora extremamente eficazes — não teriam lugar nas escolas contemporâneas. Aqueles eram outros tempos, época em que era preciso estudar para passar de ano e o corpo docente era respeitado e admirado pelos alunos.
    Parecia sizudo, rabujento, irascível. Mas bastava abrir a boca e dizer uma barbaridade para logo percebermos que era todo o contrário. Ao entrar na sala de aula, pedia que as meninas mais bonitas da turma se sentassem na primeira fila, para “melhorar a paisagem”.  Em seguida, contava uma ou duas piadas e deixava a garotada conversar durante uns cinco ou dez minutos enquanto acompanhava, sorridente, o tumulto inevitável causado por sua chegada. 
   Em dado momento, porém, no auge da vozearia, quando as coisas pareciam a ponto de sair de controle, dava uma violenta porrada na mesa ou no quadro-negro, gritava “Agooooora!” e todos se calavam imediatamente. Então, começava a aula: “Os protozoários são microrganismos eucariotos, unicelulares...” E ai de quem não estivesse prestando atenção!
    Tinha verdadeiro horror de alunos que se levantavam no meio da aula. Nesses casos, esperava o meliante estar bem longe de sua carteira para somente então decretar o implacável: “Em pé sem ordem!”
    Era a senha. Munidos de canetas, lápis ou qualquer outro objeto pontiagudo que estivesse ao seu alcance, os outros alunos tinham autorização para cutucar os fundilhos do infrator até que este finalmente conseguisse voltar ao seu lugar. Crianças, como sabemos, são criaturas muito cruéis e espetavam para valer. E um “em pé sem ordem” caprichado podia deixar o infrator com dificuldade para se sentar durante dias a fio. É claro que só fazia isso com os moleques, mas corriam boatos de que certa vez fora repreendido pela diretoria por ter decretado um pé sem ordem para uma menina — o que certamente não é verdade. Embora tratasse os rapazes com amistosa truculência, era de um extremado cavalheirismo com as damas. E jamais expulsou uma menina de sala de aula. Em verdade, era difícil o Maia expulsar um aluno de sala, não importando o sexo do delinqüente, tendo sido eu um dos poucos contemplados. Mas, fazer o quê? eu era uma peste naqueles tempos.
   Sempre que um aluno vinha reclamar da nota recebida na última prova ele recomendava: “Diz Maia...” para depois emendar, “...desmaia que eu vou pensar no seu caso.” Já se fosse uma menina bonitinha, variava: “...desmaia no meu colo que eu revejo a sua nota.” 
   Botafoguense doente, implicava com alunos que torcessem para outros times: “Tudo menos Fla Flu!” escrevia no quadro, furibundo, sempre que seu time era eliminado do campeonato estadual.
    Quando era escalado para tomar conta de alguma turma durante uma prova de outra matéria que não a sua, levava um exemplar do Jornal dos Esportes e mergulhava na leitura até tocar a sineta. Se os alunos fossem discretos, podiam colar à vontade. Mas se a coisa passasse dos limites mandava os delinquentes terem uma conversinha com o diretor, o Prof. Jorge. Todos pensávamos que ele estava alheio ao que acontecia na sala mas todo jornal que o professor Maia levava para as provas tinha um furinho estratégico na dobra através do qual vigiava a turma.    
   Em provas de sua matéria, porém, era bem mais rigoroso. Mas dava algumas chances para os alunos. “Quinta-feira tem prova. Quem trouxer binóculo vai se dar bem”.  É claro que ninguém trazia. No dia combinado, ele colava no quadro-negro um papelucho minúsculo contendo o gabarito da prova. “Eu avisei...” Na prova seguinte, recomendava que trouxéssemos varas de pesca. Ninguém trazia e então, no melhor estilo de quermesse junina, colocava uma série de envelopes no aparador de giz do quadro negro, cada um contendo uma das respostas.
    Apesar de todas as brincadeiras, era um professor muito rigoroso. Mas sabia que as matérias que lecionava eram extremamente indigestas para jovens pré-adolescentes com os hormônios à flor da pele. Por isso, sempre que possível, temperava as aulas com seu histriônico senso de humor. Aprendíamos brincando. E brincávamos aprendendo. 
   “Sei que, daqui a alguns anos, vocês não se lembrarão de quase nada do que lhes ensinei.” dizia ele “Mas alguma coisa sempre fica. E, se isso acontecer, já me darei por satisfeito.”
    Seja lá onde estiver, meu bom e velho Prof. Carlos Shankrow Maia, tenha certeza de que, de minha parte, seus ensinamentos, assim como a memória de sua extraordinária personalidade, jamais serão esquecidos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

My life in the USA


EVERYBODY SAY MY ENGLISH is terrible. Linda say is hideous. Maybe. But I’m living in America for the past five years and I never had any communication trouble. Most of the people speak Portuguese or Spanish everywhere I go. Linda say is because I go to the wrong places. Maybe. But I also never had any trouble with the American people as well. I just say: “Pizza Hut!” and everybody look happy.
   To tell you the truth, I guess everybody like me. I am what we Brazilians call a "good public square", which means that I am very good at making friends. Linda say that maybe I am seeing the wrong people. Maybe... 
   Linda is the manager. I am the delivery guy. She is what we Brazilians call a "fire-in-your-clothes" girl, which means she is a very intolerant boss. No problemo. I am the best pizza deliver in that joint. I drive like mad, you know. Most Brazilians drive like this. And I know every corner in this town. 
    In Brazil I was a lawyer. Big deal. Everybody is a lawyer in Brazil. So I decided to try the American Dream.
    It wasn’t easy. Thousands of Brazilians came and go to the USA every year without any trouble. But I am from the State of Minas Gerais, city of Governador Valadares.
    I don’t know who started the rumor but your immigration  guys now think that we are some kind of Latin American Al Kaeda branch. Not really. People from Governador Valadares area all Catholic. We love cheese-bread, black beans paste and pumpkin with jerked beef. No terrorists, I can assure you.
    Yes, I know there are tens of thousands of my co-citizens in your country but this is because we love America. God Bless.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Vôo noturno


ELE ESTAVA EM UM AVIÃO porque, naquele sonho, viajava muito. Desde que se entendia por gente sonhava que era aquele homem velhusco, alquebrado, cuja vida de vendedor autônomo se resumia a atravessar o país vendendo implementos agrícolas para comércios provincianos. Era, de longe, o seu sonho mais aborrecido.
    Não tinha, porém, controle sobre os próprios sonhos e, portanto, via-se agora ali, outra vez a bordo de um avião de carreira, em uma longa e enfadonha viagem através do país. Uma hora após o tumulto da distribuição do jantar, o vôo transcorria tranqüilo e ouvia-se apenas o rumor abafado das turbinas lá fora e, vez por outra, o ruído do trinco da porta do banheiro já que a maioria dos passageiros estava profundamente adormecida. Pairava no ar um fedor que misturava aromatizador de ambientes, desinfetante de privada, comida azeda, café requentado, suor e peido de gente há muito confinada. 
   Desanimado, desligou a luz de leitura, fechou a mesinha de apoio e esticou um olhar através do corredor. Algumas fileiras mais adiante, uma senhora lia uma revista de moda e, a cada página virada, erguia no ar uma lufada de perfume barato que, misturada ao tradicional buquê aromático servido graciosamente pelas empresas aéreas em longos vôos sem escala espalhava-se por toda a cabina em um fedor nauseabundo de lixo hospitalar sabor lavanda.
   O sujeito ao lado começou a roncar alto e a se esparramar sobre o assento. Aborrecido, ele se encolheu para evitar contato físico e voltou a vasculhar a cabina, na esperança de encontrar alguma poltrona vaga. Sem chance. O vôo estava completamente lotado. 
   Ele emitiu um suspiro frustrado, levou a mão ao maço de cigarros e pensou em ignorar o aviso de NÃO FUME. Mas se conteve. Em vez disso, procurou o pente no bolso da calça, penteou o topete, voltou a guardar o pente, dessa vez no bolso interno do colete, e estava a ponto de voltar a ligar a luz de leitura e procurar a revista de bordo quando, inesperadamente, o avião pareceu perder toda a sustentação aerodinâmica — ou seja lá como se chama essa coisa que faz os aviões continuarem voando — e passou a cair a prumo, em uma queda vertiginosa e inexorável rumo ao solo.
   Ele se agarrou nos braços da poltrona, deu graças por estar com o cinto atado, e observou, atônito, a comissária ser arremessada em altíssima velocidade em direção à traseira da aeronave, seguida por um certamente mortal carrinho de bebidas e uma infinidade de bolsas e outros objetos que se soltaram dos bagageiros. Nesse momento, as máscaras de oxigênio foram liberadas, o que aumentou ainda mais o caos dentro do aparelho.
   Com dificuldade, ele afastou a cabeça para o lado para voltar a olhar para o corredor e viu, lá embaixo, bem lá embaixo, a porta da cabina dos pilotos escancarada e a silhueta de braços movendo-se sobre um painel repleto de luzes vermelhas que piscavam, desesperadas.
  Uma fração de segundo depois, sentiu-se leve, quase imponderável e observou diversos objetos — lápis, bolsas, pedaços de papel e sacos de vômito — flutuando pela cabina, momentaneamente desprovidos de gravidade. Algumas pessoas berravam, mas a maioria estava apavorada demais para conseguir emitir algum som.
   “Então é assim”, pensou. “É assim que se morre em um desastre de avião. A gente sempre acha que essas coisas só acontecem com os outros mas, no entanto...”
   A seguir, ouviu um ruído pavoroso de metal rasgado e sentiu um violento impacto de ar frio, sólido como granito, seguido do silêncio gelado que antecede a morte em queda livre a trinta e cinco mil pés de altitude.

O menino despertou com um grito abafado na garganta. Estava muito suado e a roupa de cama se acumulava no chão do quarto, como se ele tivesse esperneado durante o sono. Ele se recostou à cabeceira, tirou a camisa do pijama e esfregou os olhos, como se para afastar os últimos vestígios do pesadelo.
  Ao se levantar, pisou inadvertidamente sobre o carrinho de Autorama, tropeçou na perna da mesa de futebol de botão, e acabou caindo sobre o Forte Apache que ganhara no Natal anterior. Emitiu um palavrão em surdina, levantou-se com alguma dificuldade e correu até a sala. Mas decepcionou-se ao perceber que os pais ainda não estavam acordados.
   O relógio de parede marcava 6h25, era sábado, de modo que teria de esperar cerca de quatro horas até poder contar o sufoco que passara naquele avião condenado. Sem ter o que fazer, caminhou a esmo pela casa, folheou uma revista Realidade deixada sobre o sofá da sala e bebeu o restinho de bebida que encontrou no fundo de um copo que os pais haviam esquecido sobre a cômoda na noite anterior. O gosto era horrível e a náusea que sentiu o fez voltar a se lembrar do pesadelo.
   Na cozinha, pegou um prato fundo no escorredor da pia, serviu-se de uma generosa porção de sucrilhos que regou com uma xícara de leite criteriosamente medida. Depois, pegou o prato, uma colher, e foi se sentar diante da televisão, que ligara em volume mínimo para não acordar os pais. Já não tinha mais vontade de contar o sonho para ninguém, não só porque já havia se esquecido de muitos dos detalhes mais emocionantes como também porque, afinal de contas, ele tinha certeza de que jamais voltaria a se encontrar com aquele pobre caixeiro viajante cuja vida medíocre e aborrecida o vinha atormentando havia já alguns anos.

Vida selvagem IV


A gente nem se espanta mais com a quantidade de insetos esquisitos que aparecem por essas bandas. Moramos aqui há mais de dois anos e raro é o dia em que não avistamos ao menos um inseto jamais visto anteriormente. Dessa vez, entretanto, não temos como negar que a barata de Itu que apareceu ontem à noite chegou a chamar atenção. E justo na hora do jantar! Conheço gente que teria um infarto ao ver um bicho tão grande, feio e cascudo como esse. Já nós, que gostamos de qualquer bichinho, asqueroso que seja, a adotamos e já demos até nome: Maconha. Afinal, ela é o maior barato, não é mesmo?

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O primeiro degrau

















Por Constantine Cavafy
tradução de Alexandre Raposo

O jovem poeta Eumênio
certo dia reclamou com Teócrito:
“Escrevo já há dois anos
e compus apenas um idílio.
É meu único trabalho findo.
Vejo, entristecido, que a escada
da Poesia é alta, muito alta;
e deste primeiro degrau de onde estou sinto que
jamais subirei mais que isso.”
Teócrito replicou: “Palavras como essas
são impróprias e blasfemas.
O simples fato de estar no primeiro degrau
devia deixá-lo feliz e orgulhoso.
Chegar a este ponto não é pouca coisa:
o que fez até agora é algo maravilhoso.
Até mesmo este primeiro degrau
está muito acima do mundo comezinho.
Para alguém pisar neste degrau
tem de ser, por direito,
um membro da Cidade das Idéias.
E é algo raro, pouco comum
ser aceito como cidadão daquela urbe.
Seus conselhos são repletos de legisladores
que nenhum charlatão pode enganar.
Chegar a este ponto não é pouca coisa:
o que fez até agora é algo maravilhoso.”
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