terça-feira, 17 de maio de 2011

Hamarquis

Adrian Mann

HAMARQUIS ERA UM planeta industrial. Noventa porcento da população — mais de vinte bilhões de habitantes — era de operários ou de gente que trabalhava em empregos secundários, gerados pela atividade fabril. A abundância de metais raros como ouro, prata, tungstênio e titânio e a mão de obra barata foram determinantes para que o planeta se transformasse no que era então: o maior produtor de manufaturados do sistema, produzindo  desde cotonetes até naves de cruzeiro de grande porte.
   Outrora um paraíso da biodiversidade, a superfície de Hamarquis era então um gigantesco conglomerado de complexos industriais, que se estendiam num tapete contínuo de pólo a pólo do planeta. Havia muito que os oceanos secaram e não fossem os depósitos de água subterrâneos, a vida seria inviável.
   É de se entender, portanto, porque os habitantes de Hamarquis eram tão cínicos e pouco amistosos. As condições de vida naquele planeta infernal estavam longe do minimamente aceitável, mesmo para criaturas primitivas de base carbono como as que ali viviam. Os poucos condomínios de luxo, dotados de áreas de lazer, restaurantes, centrais de abastecimento de bens de consumo, discotecas, quadras esportivas, piscinas, praias e florestas artificiais, eram privilégios de uma microscópica elite de engenheiros tecnocratas. E até mesmo essas instalações, luxuosas que fossem, não eram capazes de amenizar a atmosfera sufocante e opressiva daquele maldito planeta.
   A grande maioria dos trabalhadores vivia em condições subumanas. As cidades que habitavam eram verdadeiras colméias verticais, cada favo para cinco indivíduos, que recebiam do Estado uma ração de comida que nunca durava os dez dias previstos na embalagem. Água, apenas para beber, e com moderação. Banho era um luxo impensável. Já as condições de trabalho nas fábricas eram bem inferiores àquelas que prevaleciam em sistemas mais próximos ao núcleo galáctico.
   Porém, ao contrário do que se poderia imaginar , ninguém estava em Hamarquis contra a vontade. Longe disso. A disputa para cargos vagos no planeta era tremendamente acirrada. E até mesmo o mais insignificante operário daquele planeta infernal era um profissional altamente qualificado em sua especialidade e ganhava os olhos da cara para fazer o que fazia.
   Após trabalharem alguns anos ali, quase todos os operários — com exceção, é claro, daqueles infelizes que sucumbiam à insalubridade do meio — amealhavam créditos suficientes para comprarem uma ilha tropical e viverem o resto da vida cercados de luxo e prazeres em algum planeta paradisíaco em órbita estável, ao redor da alva Calon. Freqüentemente, porém, gastavam o resto de suas vidas (e de suas fortunas) em planetas-lupanar e asteróides-cassino, em um sistema planetário vizinho onde a prostituição e o jogo eram institucionalizados e a luz da única estrela era de um amarelo mortiço, como a que ilumina nossos piores pesadelos.
   Não era de se estranhar portanto, que num ambiente como aquele, onde  tempo era dinheiro e não se pensava em outra coisa além de processos industriais, reciclagem e estocagem de rejeitos químicos e radioativos, otimização dos meios de produção, promoções, aumentos de salários, horas extras, organizações sindicais, greves, piquetes, grandes e pequenas sabotagens, atos de terrorismo e outros aborrecimentos do gênero, havia pouco espaço para deslumbramentos e reações arrebatadas diante da chegada de um simples visitante de outro planeta, não importando de quão longe ele viesse e quanta cultura tivesse para compartilhar com os seus interlocutores.
   Ao procurar saber o que ocorrera com a mensagem que lançara como carta aberta na rede, novas surpresas. A mensagem de fato fora recebida e, ao seu tempo, certamente teria das autoridades competentes a atenção merecida. Só que aguardava numa fila de mais de doze mil documentos semelhantes, enviados por outras diferentes inteligências alienígenas deste e de outros universos. Devidamente armazenada em um pequeno banco de dados num gigantesco computador que ocupava todo um quarteirão do imenso complexo arquitetônico do Ministério de Relações Interplanetárias e Paradimensionais — o qual, por sua vez,  ocupava todo o hemisfério norte de Pi, quinto planeta em órbita ao redor da rubra Tole — teria de esperar um pouco para ser devidamente analisada.
   Afora o tamanho da fila, ele não preenchera o formulário padrão e não seguira as normas aceitas para documentos daquela natureza. Sua peça teria de passar por um corpo de examinadores, que analisaria a viabilidade e a conveniência de uma futura reformatação do documento dentro das normas vigentes. Segundo o funcionário que atendera a sua chamada, haveria uma espera de ao menos cem anos toleanos para que a sua proposta fosse finalmente examinada e aprovada — ou não — pela junta de análise.
   — Mas o que são cem anos para quem passou tanto tempo coçando os circuitos nas vastidões do espaço, não é mesmo? — concluiu o funcionário no tom indefectivelmente debochado-sem-graça dos habitantes de Hamarquis. 
   De fato, um século caloniano era pouco tempo para uma inteligência cibernética como a do mensageiro, acostumada aos grandes e inimagináveis vazios do espaço profundo. Mas ele não pretendia esperar mais um ano sequer naquele lugar insuportável, em meio àquela gente cínica, mal educada, apática e ignorante. Não fora para isso que o construíram. Era, antes de tudo, uma criatura voltada para o conhecimento, para grandes realizações científicas, artísticas e intelectuais. E mais uma vez ele se recusou a obedecer o programa original de seus criadores.

Da série Crônicas do espaço profundo

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...