segunda-feira, 16 de maio de 2011

Marl Debiene


ELA SORVEU UM GOLE DE LICOR, pousou a taça delicadamente sobre a mesa e lançou um olhar entediado pela janela da biblioteca de seu palacete de verão. Lá fora, além de jardins aparentemente intermináveis, por trás de muros supostamente indevassáveis, ouvia o clamor da multidão de fãs e, vez por outra, os tiros de advertência disparados pelos seguranças nas guaritas. 
  Ela detestava os seguranças, aqueles brutamontes insensíveis, mas também não suportava os fãs e todo o perigo que representavam, de modo que aturava os primeiros para manter os segundos bem longe de onde estava. Embora nem sempre longe o suficiente. Naquele momento, por exemplo, a gritaria que faziam — embora distante — incomodava como o rumor de algum aparelho mal lubrificado que alguém esquecera ligado em um cômodo remoto da casa.
   Olhou para o relógio sobre a mesa e emitiu um suspiro de enfado. Em seguida levantou-se e aproximou-se do imenso espelho de cristal na parede oposta à janela. De fato, não havia mulher que pudesse se comparar a ela em beleza. Tinha a pele muito alva em contraste com um cabelo muito negro que lhe caía em cachos generosos sobre os ombros, emoldurando um rosto redondo e perfeitamente proporcionado. Os olhos, igualmente negros e amendoados, densos e penetrantes, pareciam esconder quase todos os segredos do universo. O nariz de traços retos embora ligeiramente arrebitado na ponta, dava-lhe um ar maroto e juvenil que combinava muito bem com a boca de lábios suaves, sempre úmidos e rosados. 
   Mas a multidão de fãs que se aglomerava lá fora não estava ali movida apenas pelo desejo incontível de ver e, se possível, tocar, apertar, beijar, sugar, penetrar e estraçalhar aquela deusa encarnada entre os homens. Em verdade, a maioria daqueles loucos e loucas que se acotovelavam lá fora estariam exatamente ali, fazendo exatamente o que estavam fazendo mesmo se ela fosse uma bruxa velha e feia com uma verruga cabeluda na ponta do queixo.
Marl Debiene não era apenas uma superestrela. Ela era a superestrela, a pessoa mais extraordinária, mais bem dotada, mais querida e mais famosa do universo. Obviamente, era também a mais bem sucedida. Em menos de cinco anos, aquela mulher maravilhosa havia conquistado a admiração, o respeito e a idolatria de multidões incalculáveis, influindo radicalmente no modo de vida de dezenas de bilhões de criaturas. De fato, nunca alguém fizera tanto para tantos. E em tão pouco tempo.
   Tudo começou quando publicou o seu primeiro romance, Ruínas ao sol, recebido pela crítica como “a grande obra prima do gênio literário, jamais igualada pelos maiores escritores e filósofos de todos os tempos, e provavelmente jamais superada por qualquer criatura até o fim do universo tal qual o conhecemos.”
   Na semana seguinte, porém, Marl lançou outros três volumes que obrigaram os críticos a reverem suas previsões. Passos contados, Gosto de neve e A Fúria revelaram-se obras capitais da literatura e da filosofia universal que a elevaram definitivamente à imortalidade.
   Ao mesmo tempo em que publicava os seus livros, porém, Marl Debiene surpreendia dando início à uma igualmente meteórica carreira musical, estreando como cantora de suas próprias canções, acompanhada por um obscuro grupo de músicos populares de Buorni, que contratara a partir de um anúncio de jornal. Em uma semana, o primeiro fonograma de Marl Debiene já havia vendido mais de duzentos bilhões de cópias. E seu primeiro show ao vivo, transmitido em rede, foi assistido por uma multidão incalculável de espectadores em todos os planetas do sistema. Afora a música popular, Marl igualmente compunha para grandes orquestras, elevando-se, assim, à categoria de maior compositora erudita de todos os tempos.
   Na mesma época em que lançava o segundo disco de música popular, estreava também o primeiro filme, no qual escrevera o roteiro, editara o copião e dirigira a si mesma. A versão cinematográfica de Ruínas ao sol estourou nas telas de todos os mundos civilizados, provocando pela primeira vez o cancelamento da festa de entrega de prêmios da academia uma vez que todas as estatuetas seriam destinadas à mesma pessoa e a coisa ficaria um tanto sem graça, convenhamos.
   Mas tudo isso era apenas o começo. Logo, Marl Debiene aportaria contribuições ainda mais relevantes para a comunidade interplanetária. A sua maior realização, aquela que a tornou a criatura mais célebre e celebrada de todos os tempos fora — “até então, nunca se sabe...” como dizia a imprensa, então muito cautelosa  —  a tese
Bomba de pósitons e a factibilidade do moto contínuo, que não apenas revolucionou tudo o que se sabia de física à época de sua publicação, como debelou a carência crônica de energia que havia séculos assolava todos os planetas habitados do sistema. Esta tese também levou grandes conglomerados dos setores de energia, combustíveis e transportes à bancarrota, mudou radicalmente as relações políticas, econômicas e culturais dos seres vivos de todos os planetas habitados do sistema e tornou-a a criatura mais rica e poderosa de todos os tempos.
   De fato, podia-se dividir a história da civilização de Tolecalon entre antes e depois de Marl Debiene embora, ao menos até aquela data, ninguém soubesse ao certo quem ela era, de onde viera e quais eram os seus verdadeiros propósitos. Protegida por um exército de advogados e seguranças, ela guardava silêncio a respeito de tudo isso. Mas muito em breve todas essas dúvidas seriam esclarecidas, bem como outras, jamais aventadas — sequer imaginadas — por qualquer um dos muitos bilhões de habitante daquele sistema planetário. 

Da série Crônicas do espaço profundo

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