segunda-feira, 16 de maio de 2011

Turistas


VÊM QUANDO MENOS SE ESPERA, como as moscas, os resfriados, as verrugas nas pontas dos dedos. No começo, após as primeiras arribações — que foram as mais devastadora porque ainda não sabíamos como lidar com o fenômeno — houve quem tentasse encontrar alguma lógica no modo absolutamente perturbador como apareciam e desapareciam de vista, sem motivo aparente para uma coisa ou outra. Passaram-se muitos anos até chegarmos à paradoxal, embora definitiva conclusão de que os visitantes eram um efeito sem causa.
    São muitos, sempre, e sempre famintos e barulhentos. Suas naves platinadas rasgam a atmosfera com estrondos supersônicos, precipitando a febre das bagas e, portanto, a sempre infausta antecipação da colheita. O resultado é um néctar amargo que sabe a remédio para o fígado, ainda pior que o produzido em anos de conjunções solares, cometas e eclipses.
   À sua chegada, somos obrigados a alterar radicalmente a nossa rotina. Não há mais tempo para nada. Evidentemente são criaturas muito primitivas e tão frágeis e desvalidas que não nos resta escolha senão providenciar-lhes conforto, abrigo, comida.

    São devastadores. Cada um deles come, por dia, o que dois de nós não seríamos capazes de consumir em um ano de despudorado desperdício. À sua chegada, as casas de pasto são obrigadas a ficar sempre abertas e estão sempre lotadas — o que é radicalmente contra nossos preceitos sócio-econômico. E é de dar dó ver a gente lá dentro, atabalhoada, tropeçando em panquecas, dobrando turnos para conseguir satisfazer os apetites da horda insaciável. Já o problema do lixo que deixam para trás, seus resíduos e fluidos corporais, é um caso tão sério que nossos ambientalistas são a categoria profissional mais bem remunerada do planeta e, ao mesmo tempo, a com maior índice de suicídios sem bilhete de despedida.
   Os invasores lembram cães no açodamento, loucos na parvoíce e deficientes na inabilidade para tudo o que envolva ação no mundo físico. Uns se perdem, outros se ferem, outros se lascam. Há até os que morrem durante a temporada, mas são raros, que lhes damos toda a assistência possível. Ainda assim, afogam-se nos chafarizes, despencam de perambeiras, ferem-se com os próprios instrumentos...
Já foram resgatados de dentro de poços, de cisternas, do interior de tonéis de geléia, congelados em adegas desativadas, entalados nas tubulações de nitrogênio — todos, curiosamente, com um sorriso idiota rasgado de um a outro lado da face, olhos faiscando como os de uma criança que tenha visto um carro de bombeiros em chamas diante de um parque de brinquedos.
   Ao fim da temporada, quando debandam, temos de procurar em todos os cantos, em busca de retardatários e desertores. Infelizmente, porém, sempre há aqueles que escapam à fiscalização e perdem o transporte. Mas estes não duram muito tempo entre nós, não obstante os cuidados que continuam a receber das pessoas.
    “É algo na composição da atmosfera”, arriscam os cientistas. Outros falam da quantidade de chumbo na água, do alto teor de dioxina nos alimentos, da permanente exposição à irradiação telepática... nunca se sabe. Como ter certeza de alguma coisa?
    É bem verdade que nutrimos enorme desprezo por essas criaturas errantes. Mas é triste vê-los agonizar pelas ruas. Há quem seja favorável à eutanásia, à degola, ao abate — e muitos as tem aplicado, sem prévia consulta às autoridades sanitárias. É uma atitude ilegal, embora justificável. Afinal, os invasores costumam morrer em lugares de difícil acesso, o que impede a remoção dos cadáveres. O ar torna-se irrespirável durante meses a fio. É preferível abatê-los quando ainda estão à vista porque o fim é inevitável, extremamente doloroso e, que diabos! não há quem agüente a fedentina.
    Certa vez, um de nossos sábios, curioso e imprudente como são os sábios, dignou-se a dirigir-se a uma dessas criaturas retardatárias e perguntar-lhe o que as levava a viver errantes e desvalidas pelo espaço cósmico. Seria o seu planeta de origem um lugar assim tão desprezível?
    Como era de se esperar, a resposta dada pela criatura não foi muito clara e, desde então, vem sendo alvo de diversas e variadíssimas interpretações:
— O planeta de onde viemos é uma terra boa e pródiga onde nada nos falta ou nos é penoso. Lá nos sentimos em casa e compreendemos tudo o que ocorre à nossa volta. Temos o aconchego de nossos lares, o amor de nossos entes queridos e a certeza absoluta de que nada será capaz de alterar este estado de coisas...
    A criatura fungou e cuspiu uma gosma verde que arrancou do fundo do peito, sinal de que já estava às últimas.
    — ...o que é uma situação tremendamente aborrecida. A inevitabilidade de uma vida longa, próspera e sem incidentes imprevistos provoca-nos tal fastio que, caso não passemos por temporadas de tremendas privações em algum planeta deste seu universo primitivo, acabamos vítimas de uma estranha doença, um estado de profunda apatia que se prolonga indefinidamente, até morrermos de sede ou de fome.
    O sábio fez menção de dar-lhe as costas e partir mas a criatura acrescentou:
   — Daí que sempre que o tédio se torna insuportável e irrompem os primeiros bocejos, sempre que a vida nos parece tola, vazia, sem objetivo, movemo-nos de nossa dimensão, migrando em grandes bandos para esse seu planeta com o qual não temos a menor intimidade, lugar onde tudo nos parece selvagem, incompreensível, misterioso...
    O invasor mirou o sábio nos olhos e concluiu, quase exultante:
    — Aqui, neste seu mundo, neste seu universo, nesta sua dimensão, neste seu plano material e imperfeito, nos sentimos tão perdidos, tão indefesos, tão amedrontados e, ao mesmo tempo, tão felizes quanto as crianças que nunca fomos.

Da série Crônicas do espaço profundo

2 comentários:

GALAUKO disse...

Muito sinistro e genial esse. Gostei muito.

Alfredo Dario disse...

São os argentinos????

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