quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O Forum


Equipe da revista ELE ELA, 1985

Há muitos e muitos anos, em uma galáxia muito longe daqui, em uma época em que ainda não havia celular, Internet, sites pornográficos e encontros virtuais, um tempo de trevas e ignorância, sem BBB, sem Facebook, sem Twitter, sem nem mesmo um modesto ICQ, havia uma seção em uma extinta revista erótica sediada no Rio de Janeiro que mobilizava as atenções, corações, mentes e fantasias sexuais de legiões brasileiros, o Fórum. Visto com olhos contemporâneos, tratava-se de uma bobagem: a mera transcrição de cartas enviadas pelos leitores — datilografadas ou escritas a mão! —  narrando suas aventuras e fantasias sexuais. Naquele tempo porém, com o país recém-saído de duas longas décadas de ditadura, censura e feroz repressão às liberdades individuais, a seção tinha um enorme apelo.
Quando ainda em meu segundo ano de faculdade, mas já como redator contratado da revista, fui encarregado de administrar a seção, cargo que exerci por mais de um ano, até chegar outro calouro desavisado para ocupar o meu lugar. O texto abaixo reúne algumas lembranças desses tempos gloriosos em que o sexo era sem culpa, ninguém transava com camisinha, e a DST mais braba era curada com uma simples injeção de Benzetacil.

Em certa sexta-feira após o expediente, a pretexto de comemorar o aniversário de um colega, a redação se reuniu em um famoso bar da Glória para tomar o inevitável suco de laranja das 20h. É claro que o papo não podia girar a respeito de outra coisa a não ser a revista e, por extensão, mulher. Lá pelas tantas, já empolgados por uns três ou quatro refrescos, ouvimos uma voz feminina vinda do fundo do bar: “Aí, marmanjos! Vocês é que são os tais da grutinha?” Silêncio sepulcral. Todos os olhares convergiram na direção de onde vinha a voz e encontraram não uma, mas um grupo de quatro mulheres muito bem apanhadas, numa congregação que mais lembrava um comitê popular do movimento feminista. E, a julgar pelos olhares que nos lançavam, evidentemente eram membros da ala radical.
Meio sem graça, alguém respondeu com a voz trêmula:
“E, mais ou menos, né...”
A pergunta veio direta, na bucha:
“Vem cá, esse Forum de vocês é verdade ou mentira?”
Não pudemos deixar de rir. Sempre a mesma pergunta! E claro que daí para frente as mesas se juntaram, as dúvidas foram esclarecidas e pelo menos dois redatores da revista tiveram pretextos de sobra para escrever um Forum na manhã seguinte. Mas não o fizeram. Não era preciso. Nunca foi preciso.
Outro dia, conduzido pelo RP da empresa, um grupo de publicitários de diversas agências visitou a redação. Bastante inibido, um deles se adiantou ao grupo e explicou:
“Nós viemos aqui para...”
Não foi preciso terminar. Macaco velho, o chefe de redação emendou:
“Para saber se o Forum é verdade ou mentira, né?” E, sem esperar a resposta, pousou sobre a mesa um caixote de madeira contendo aproximadamente 900 cartas de experiências íntimas dos leitores. “São as do mês...”, completou falsamente modesto.
E claro que, apesar dos insistentes apelos, não deixamos que vasculhassem a caixa. Afinal, entre outras virtudes, sempre nos gabamos do sigilo escrupuloso que oferecíamos aos nossos leitores. Mas até hoje fico a imaginar as loucuras que aquela junta publicitária não faria caso colocasse as mãos no material. Pois não havia gente que chamava o Forum de “termômetro informal da sexualidade brasileira”?
De uma vez por todas e daqui para a frente: o Forum era verdadeiro e todas as cartas publicadas eram escritas por leitores ávidos por verem publicada a sua peça erótica em nossas páginas amarelas. As centenas de cartas que chegavam por mês eram  lidas por uma equipe de redatores e selecionadas a partir de critérios como qualidade do texto, erotismo e originalidade. Uma vez escolhidas as titulares, as cartas iam  para o estaleiro onde — respeitando-se ao máximo o texto original — eram corrigidos erros de ortografia eventuais e substituídos os termos chulos por correspondentes publicáveis. Mas, igualmente de uma vez por todas, não fomos nós que inventamos esse papo de “grutinha do amor”.
Foi em novembro de 1973, na edição n. 55, que pela primeira vez se viu uma seção com o nome Forum. Entretanto, naqueles tempos bicudos, o Forum era completamente diferente da pícara seção que se tonou posteriormente e se apresentava assim: “Esta é a sua opinião. Escreva para a redação”. Ou seja, cumpria a função de uma seção de cartas e crítica dos leitores. Mas mudou devagarzinho.
Em meados da década de 70, o Forum já publicava cartas (ousadíssimas para a época) com ofertas de trocas de casais, e, por volta de março de 1977, abordava temas como sexo grupal, insatisfação, frigidez e esterilidade, fazendo as vezes de consultório sexual. Mas foi apenas na edição n. 98, de junho de 1977, que o Forum publicou pela primeira vez alguma coisa parecida com uma experiência (ou fantasia) de um leitor. A carta se chamava Um Sabor Muito Feminino Para o Seu Chiclete e dizia: “...Admito francamente minha preferência pelo chamado sexo oral — mais precisamente, o delicioso cunnilingus. Só tenho outro xodó na vida: mascar chiclete. E a novidade, que certamente interessará aos leitores, é que consegui conciliar minhas duas paixões. Toda manhã, antes de sair para o trabalho, coloco um tablete desse chiclete tipo americano dentro das chamadas partes íntimas da minha mulher, enquanto ela faz a sua ginástica matinal. Quando ela termina, retiro o chiclete, refaço a embalagem e vou para o escritório. Passo umas três horas feito louco, antecipando aquele gostinho divino na minha boca, mas agüento firme até quase a hora do almoço, quando tiro do bolso o meu chiclete (que eu apelidei de chiclêta) e começo a mascar... Ah! Vocês não imaginam!”
Gradativamente, entremeadas por cartas curiosas (mas ainda do tipo “doutor, o que eu faço com o meu pinto?’’), as experiências dos leitores foram ganhando espaço na seção. No número 107 apareceu, enfim, o primeiro relato (com começo, meio e fim) de uma relação sexual, intitulado Amor em Mar de Espanha, onde a leitora inaugurou um dos maiores chavões da seção, o termo cavalgar: “... sentindo-o intensamente vivo sob mim, cavalguei-o, a princípio em trote lento, passando em seguida à marcha rápida, para chegar, com imenso prazer, ao galope largo, desatinado.”
Um dos principais argumentos de quem afirma que o Forum não era verídico — ou seja, que suas histórias era forjadas na própria redação da revista — é o que costumam chamar de “linguagem pasteurizada”. Entre muitas cartas de leitores indignados com “a desfaçatez com que são impostas essas ‘cartas de leitor’; evidentemente criadas por imaginativos escritores”, a maior parte argumenta que “obviamente são escritas pela mesma pessoa, uma vez que se valem dos mesmos artifícios semânticos”. Ou seja, o que o indignado leitor queria dizer ao certo é que o Forum não era autêntico porque usava sempre os mesmos termos, como se fossem recursos estilísticos de um único autor. Ledo engano, para responder no mesmo estilo.
A verdade é que, uma vez que a seção se ampliou e se tornou a única desse tipo na grande imprensa brasileira, o Forum criou, por si mesmo, uma linguagem própria, democrática, pública, um estilo geral, gradualmente aperfeiçoado por seus muitos leitores-colaboradores.
Na edição n. 114, a seção Forum finalmente chegou à maturidade, ostentando em sua epígrafe os dizeres: “Esta seção destina-se à publicação de cartas dos leitores sobre suas experiências sexuais e fantasias eróticas.” A essa altura, o Forum já era assunto de salão, mesa e alcova, e mais de uma faculdade de comunicação e psicologia já premiara teses baseadas em seus relatos.
De fato, era uma experiência curiosa manusear tais cartas. Confirmando sua inteira confiança em nossa discrição, os leitores não só enviavam nome e endereço completos, como também cópias xerografadas de suas carteiras de identidade, embora isso fosse absolutamente desnecessário. Já os relatos eram entregas totais, e acreditamos que muitos de nossos correspondente não fossem tão sinceros nem mesmo com o amigo (ou amiga) mais íntimo.
Muitas das cartas recebidas continham algum recado implícito para alguém. E isso ficava evidente quando, uma vez recusada, a mesma carta insistia em chegar, mês a mês, até a nossa capitulação (ou a desistência do leitor). Forum também serviu para aproximar tendências afins (a fim de tudo) e mais de uma vez leitores, encantados com algum relato, escreviam pedindo o endereço deste ou daquele autor anônimo. Nossa atitude foi sempre a mesma: publicávamos a carta, tal qual era enviada, em nossa seção Cartas, na base do “se colar, colou”. O resultado disso foi que as cartas de Forum duplicaram em volume, pois, não bastando o relato original, nossos leitores não se privavam do prazer de contar as experiências sexuais resultantes de encontros travados por nosso intermédio. E Forum partiu para a metalinguagem — o que não tem nada a ver com sexo oral.
A partir da linguagem, podemos traçar toda a trajetória de Forum através dos tempos. A princípio, os relatos apenas sugeriam o ato sexual, fixando-se mais na situação ou na descrição de ambiente e personagens. Termos como “partes pudendas” eram comuns nessa época. Gradativamente, no entanto, a linguagem foi se sofisticando, tornando-se mais ousada e começando a procurar soluções mais originais. E chegou a época das “inhas”. Tudo era “inha”: era grutinha, xoxotinha, bundinha... os leitores caprichavam nos diminutivos, certamente procurando amenizar a crueza de seus relatos. Por isso, muita gente começou a achar que o Forum era escrito pela mesma pessoa.
É bom lembrar que escrever a respeito de experiências íntimas é tarefa complicada. Descrever sensações, tatos, cheiros... enfim, narrar o sexo de forma literária é um desafio instigante. Por isso, toda vez que algum leitor conseguia uma fórmula nova, imediatamente esta fórmula era adotada pelos outros correspondentes. Daí a "linguagem pasteurizada" de que se queixavam nossos críticos incrédulos.
Em certa época, fomos bombardeados por dezenas de cartas escritas pela mesma mulher, narrando as suas aventuras na África, e que invariavelmente citavam as dimensões avantajadas dos membros dos homens daquele continente. Publicamos uma, duas, três cartas mas a empolgada leitora parecia ter um repertório inesgotável de trepadas africanas. Black is beautiful, sim, mas chegou um momento em que começou a encher o saco. Após a sétima carta publicada e a duodécima recebida, encerramos o safári. Continuou mandando suas aventuras africanas e tornou-se      colaboradora exclusiva; mas nunca mais foi publicada. Mesmo porque, lá pela décima aventura ela começou a se repetir, misturando aventuras já narradas com um ou outro elemento original, mas que não justificava a reprise.
Aliás, falando de missivas femininas, convém dizer que a grande maioria delas continham relatos muito parecidos, ao menos em um ponto: seja como e onde for, seja quando for, é inevitável a presença do corno. E começamos a perceber que o adultério é um dos elementos mais freqüentes das fantasias femininas.
Já os homens primavam pela ingenuidade e muitos deles pecavam pelo que convencionamos chamar de sexo estatístico. Enquanto as mulheres procuravam puxar para o lado do romance, do drama psicológico, os marmanjos insistiam em falar de pesos e medidas. Por exemplo: em vez de dizer que a noite foi ótima e que transou com uma mulher maravilhosa, eles diziam:  “Tenho um pênis de 25cm e dei três sem tirar de dentro logo na primeira transa.”
Ao longo desses anos recebemos de tudo. Desde pêlos pubianos caprichosamente aparados e enviados junto com as cartas (“para provar que não estou mentindo”), até relatos eróticos que se poderiam chamar de ótima literatura. E, quando não insistiam em falar no tamanho descomunal de seu membros, nossos leitores conseguiam criar peças cheias de humor e picardia, como a premiada Adão, o Bananeiro, uma das cartas mais sacanas e engraçadas que recebemos.
Ao longo dos tempos, Forum serviu como tribuna livre de nossos leitores, único espaço para a publicação de suas fantasias sexuais. Serviu também como intermediário para aventuras e afrodisíaco para casais entediados. Na pior das hipóteses, Forum serviu, ao menos, para iniciar ótimas cantadas.
Como disse, todas as cartas publicadas eram verdadeiras, escritas pelos leitores, e nunca precisamos inventar nada. Nunca precisamos, o que não impediu que, uma vez na vida e outra na morte, alguns de nós se sentassem à máquina para contar (por mero capricho) algumas de suas aventuras. Era justo, era honesto. Afinal, também somos humanos e alimentamos nossas próprias fantasias...

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Boêmia carioca

Bar Luís
A matéria a seguir foi escrita em meados dos anos 80. De lá para cá, diversos restaurantes citados foram extintos. Mas alguns ainda resistem bravamente à invasão dos por quilos e rodízios. Vale conferir!


Hoje eu o convido a uma visita à boêmia do passado. Caminhemos lado a lado por becos estreitos, travessas e praças iluminadas por bicos de gás e lamparinas de óleo de baleia, ouvindo atrás das portas as gargalhadas, o ruído das taças, o murmurar da primeva farra carioca.
Não será preciso, no entanto, o expediente wellsiano da máquina do tempo. De fato, com um pouco de imaginação e um bom roteiro, somos capazes de resgatar —  ao menos em parte — o esplendor da lendária noite carioca, que assoma, ora travestido em antigas construções, ora personificado em bares e restaurantes que ainda preservam todas as glórias de um Rio há muito perdido no tempo, no espaço e na memória.
É preciso lembrar que em fins do século XIX, tempo em que  começamos a nossa viagem gastronômica pelo Rio antigo, não primávamos nem pela higiene nem pelo civismo. A cidade era um formidável viveiro de doenças infecto-contagiosas. E bastava a um turista desavisado saltar do navio e fazer um passeio pelo cais do porto para ser infectado por alguma ziquizira das brabas. Não seria por outro motivo   que o estabelecimento comercial tipicamente carioca desses tempos imundos era o sórdido quiosque.
Para quem não sabe, quiosque era uma barraquinha de rua onde nossos bisavôs costumavam fazer as suas boquinhas. Tipo de precursores dos atuais trailers de praia, os quiosques serviam, entre muita miudeza, lascas de bacalhau salgado regadas com cachaça-de-matar-o-guarda. Não sobreviveram, porém, à gestão civilizadora de Pereira Passos e hoje só os encontramos em fotografias antigas. A perspectiva de café frio e cachaça aguada, manteiga rançosa sobre pão dormido, troco a menos ao fechar a conta e disenteria nos sete dias seguintes,  indica que os quiosques merecem ser observados à distância, apenas a título de referência. Então, voltemos à máquina para um pequeno salto no futuro.
Também não é propriamente nobre o tipo de estabelecimento que nos espera algumas décadas mais adiante. Mas a comida é saborosíssima. Geridas por portugueses e espanhóis, as petisqueiras faziam a delícia de nossos antepassados. Não eram limpas. Em verdade, eram consideradas verdadeiros antros de imundície. Mas a comida boa e farta ganhou fama e gerou uma tradição que chegou aos nossos dias.
Luiz Edmundo, célebre cronista da cidade, autor de O Rio de Janeiro do Meu Tempo, diz que, nessas casas, sendo iletrada a freguesia, não se podia usar o expediente do menu, novidade que só chegaria muito tempo mais tarde. “Canta, por isso, o caixeiro o que há como cardápio, arrancando à memória (porque também ele é analfabeto) o nome das iguarias que viu fazer ou sabe que se preparam na cozinha.”
Descendentes diretas das antigas petisqueiras ibéricas são as muitas adegas e tabernas que hoje se espalham pelo Rio e aonde ainda se come o bom bacalhau, o cozido, a dobradinha, e aonde bebe-se o verde com a mesma deselegância do passado. Das petisqueiras remanescentes, podemos visitar a Adega Flor de Coimbra, perto da Sala Cecília Meirelles, a Taberna da Glória (agora de cara nova), a Adega Pérola, na Siqueira Campos, em Copacabana, a Adega D’El Rey, no Posto 6, O Petisco da Vila, em Vila Isabel, e dezenas de outras tantas casas “portuguesas com certeza” espalhadas pela cidade.
Durante muito tempo bebeu-se vinho — e apenas vinho — no Rio de Janeiro. Afora a cachaça da terra, o trust ibérico parecia disposto a impedir a intrusão de qualquer outra bebida em seu mercado exclusivo. Cerveja, em certa época, só a importada ou aquela fabricada por uma ou outra companhia pioneira, corajosa o bastante para enfrentar a sabotagem galega. Não seria por outro motivo que, lá pelo começo do século XX, chegávamos a importar a enorme quantidade de 43 milhões de litros de vinho português por ano!
Foi quando chegaram os alemães.
A chegada dos alemães alterou completamente a vida boêmia e os hábitos alimentares do carioca. Justamente por não poderem negociar suas cervejas com as petisqueiras, os cervejeiros alemães foram obrigados a criar os seus próprios bares, estabelecimentos, esses sim, limpos, “muito bem postos”, bem diferentes das “sórdidas tendinhas e baiucas onde o labrego continuava a vender a vinhaça malsã”, como nos dá notícia Luiz Edmundo.
Nessa época, surgiram as marcas Brahma, Franciscana, Book-Ale e Guarany, servidas em canecas nas hoje lendárias Stadt Munchen, Maison Desiré e no Zum Nachte, três das melhores cervejarias cariocas do princípio do século.
A supremacia dos restaurantes alemães resistiu até a Segunda Guerra Mundial, época em que os estabelecimentos germânicos foram barbaramente depredados e obrigados a mudar de nome. Assim, o antigo Bar Berlim virou o atual Bar Lagoa, o célebre bar do Adolf virou o Bar Luís, ainda hoje à Rua da Carioca, 39. Apenas uma grande casa, o Zeppelin, manteve o nome antigo, apesar das muitas represálias.
Se existe um bar tradicional no Rio de Janeiro, este é o Bar Luís, cujas origens remontam ao século XIX. Estabelecido na época à Rua da Assembléia, chamava-se Zum Shlauch e era de propriedade de Jacob Wendling. Em 1901, o bar transferiu-se para uma casa defronte, onde ficou até 1927, quando foi transferido para seu endereço definitivo, à Rua da Carioca.
Pouco após a primeira transferência, o Zum Schlauch (assim apelidado porque seu salão era comprido e estreito como uma salsicha) passou a se chamar Braço de Ferro, graças a seu jovem gerente, Adolf Ruyaneck, imbatível na queda-de-braços. O braço de ferro de Adolf também lhe valeu nos negócios. Em pouco tempo, o rapaz tornou-se sócio do velho Jacob e, em 1907, acabou como único proprietário do estabelecimento. Seu sucessor, Ludwik Woit, emprestou o nome definitivo à casa.
Hoje o Bar Luís entra na quarta geração de proprietários e seu chope continua admirável graças à sua impressionante serpentina de prata, com 70 metros de comprimento. A inigualável salada de batata, as saborosíssimas linguiças, salsichas, kasslers e demais iguarias germânicas ainda regalam o carioca, habituado, desde 1887, à qualidade dos produtos da casa.
Tão famoso quanto o Luís, o Bar Brasil também impressiona pelo chope bem tirado. O cardápio, que inclui os mesmos pratos servidos no Luís, embora o Bar Brasil também seja famoso pelas suas costeletas de porco à mineira, servidas às terças-feiras. 
Não poderíamos encerrar o capítulo da contribuição alemã ao paladar carioca sem citar o Bar Ficha, comandado pela lituana Maria Schaade, à Rua Teófilo Otoni, 126. A especialidade da casa é o labskaus (pasta de peito de boi defumado com salada de batata, ovo e pepino) servido às quartas-feiras. Outra boa pedida no Ficha é o haddock com batata e molho de manteiga. Bom e barato.
Mas carioca mesmo, e mais que tradicional, foi (e ainda é) o Café Lamas. No começo do século XX, o Lamas era o lugar mais badalado da noite carioca. Suas portas nunca fechavam e a casa era freqüentada por estudantes, escritores, músicos, atores, dramaturgos, enfim, por toda a elite cultural de uma cidade que, então, sob a batuta de Pereira Passos, se arvorava ao título de pequena Paris dos Trópicos. 
Na década de 70, por conta das obras do metrô, o Lamas do Largo do Machado foi posto abaixo e transferido para a rua Marquês. de Abrantes, no Flamengo. Apesar da mudança, o filé continua o mesmo, um dos melhores do Rio. Uma vez lá, frente ao vistoso prato de fritas à francesa, antes de dar a primeira garfada, lembre-se — ó, turista incauto! — que na esteira deixada pelo aroma deste filé uma infinidade de gerações boêmias o contempla. Coma com extrema reverência.
Outra grande contribuição ao paladar carioca foi a da culinária francesa. Vivemos uma época de cafés fervilhantes, de estudantes “duros”, insolúveis penduras e muito romantismo. Deste tempo de cafés requintados, de decoração à belle époque e cortesias, resta hoje, em todo o seu esplendor, a Confeitaria Colombo, inspiradora, inclusive, de velhos sambas e marchas, como esta: “Sa-sa-saricando, todo mundo leva a vida no arame! Sa-sa-saricando, a viúva, o brotinho e a madame! O velho, na porta da Colombo, é um assombro, sassaricando...” As cadeiras continuam as mesmas. Os espelhos, também. Os mesmos mandados vir da Bélgica. E ainda ornamentam os quadros molduras de jacarandá do século passado.
Entre muita gente ilustre, foram freqüentadores da Colombo Olavo Bilac, Washington Luís, Dutra, Arthur Bernardes, Getúlio Vargas, Nilo Peçanha e Epitácio Pessoa. Quem conhece a Colombo hoje jamais poderia imaginar sua origem humilde em 1894, à Rua dos Latoeiros, como mero restaurante colonial. Quem a conheceu em seu apogeu ainda morre de saudades.
É impossível enumerar todas as casas cariocas que guardam — ao menos na concepção — algo de tradicional, algo que lembre os bons e antigos restaurantes do Rio. Seria injusto não citar, por exemplo, o Cervantes, à Rua Prado Júnior, que oferece os mais saborosos sanduíches da cidade aos noctívagos famintos. Ou o Shirley, que tem 20 anos de inalterada qualidade em seus pratos de frutos do mar, e que fica à Rua Gustavo Sampaio, no Leme.
Boa pedida para quem anda pelo Centro atrás de uma refeição substancial, é o Penafiel, à Rua Senhor dos Passos, a dez passos da Avenida Passos, cuja cerveja gelada é servida com as garrafas metidas em cumbucas de isopor e onde o freguês pode escolher o filé (a posta) ainda cru, na vitrine frigorífica.
Igualmente saborosa é a comida da Casa Urich, que fica ao pé do Terminal Menezes Cortes e é um dos mais tradicionais restaurantes do Castelo. Além do chope bem tirado, sempre gelado, o cardápio é saborosíssimo, com toque de comida caseira. Boa pedida é a rabada, ou o bacalhau (à portuguesa, desfiado ou à espanhola). As carnes são vistosas, em filés generosos. Casa de pé-direito altíssimo, a Urich tem as paredes em simples azulejos, sem frescura. Aliás, esta é uma das características mais marcantes dos restaurantes do Centro e adjacências: lá o papo é matar a sede e a fome, deixando as firulas para os bistrozinhos da moda da Zona Sul.
Seria igualmente injusto não darmos um pulinho ao Amarelinho do Centro, ao Aurora, em Botafogo, ao Jangadeiros, em Ipanema, ao Bismark, em Botafogo. Seria uma pena se em nossa tournée boêmia não passássemos pelo Villarino, pela boa e amiga Casa do Pará, no Castelo, pela Fiorentina, no Leme, pelo Lucas, na Avenida Atlântica, pelo Alpino, pelo Alvarus, pelo Albamar, por aquele excelente restaurante, a Casa da Suíça, da Glória, por aquele outro que tem fondue de carne espetacular e por um que não me lembro a rua mas cujo alho-e-óleo faz a delícia de meus sonhos...
Se os restaurantes paulistas são famosos pela variedade, diria que aqui, entre nós, lendária é a qualidade dos poucos restaurantes tradicionais que nos restam. De fato, bastando saber aonde ir, qualquer pessoa poderá fazer no Rio um excelente tour gastronômico.
Terminamos por aqui nosso passeio pela boêmia carioca de ontem e de hoje. Visitamos os melhores e mais antigos restaurantes da cidade, onde a comida é farta, o chope honesto e a conta justa. Andamos por casas modestas e suntuosas, lugares onde cada azulejo, cada letreiro, cada retrato tem mil e uma noites de farras a contar. Enfim, conhecemos os últimos redutos gastronômicos de um Rio de Janeiro que pouco a pouco, inexoravelmente, acabará para sempre relegado ao campo da saudade e da memória. 

Very dry, Martines!



É MUITO POUCO PROVÁVEL QUE Martines, o barman mexicano do Hotel Knickerbocker, em Manhattan, soubesse exatamente o que estava fazendo naquele fim de tarde do verão de 1910 quando, atendendo a um pedido de ninguém menos que John Delano Rockefeller, preparou um drinque “jamais experimentado por alguém”.
Rockefeller chegara ao bar pouco antes das 18 horas, gravata frouxa, rosto cansado, gestos bruscos e frases lacônicas. “Mas que hombre seco" pensou Martines, encastelado em seu balcão, meio que se escondendo por trás das garrafas de scotch. Não que tivesse medo daquele executivo mal ajambrado que, segundo lhe contara o maitre, era “o homem mais rico do mundo”. Afinal, Martines não era apenas um barman. Era o melhor barman de toda a ilha e, ainda por cima, tinha um remoto co-parentesco com o lendário Emiliano Zapata. Pelo lado da mãe, de origem venezuelana, era bisneto de uma criada de Simon Bolívar, o que lhe garantia uma altivez soberana, uma certa superioridade condescendente sobre a barbárie saxônica dos filhos do Mayflower. “Pai perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem!”
O que incomodava Martines era começar a noite de quinta-feira servindo aquele homem sisudo, arrogante e aparentemente bronco que, com os pés apoiados no encosto da poltrona ao lado, lia o Wall Street Journal letra por letra, numa cadência truncada, guiada pela ponta do dedo indicador da mão direita. 
Mas Martines era um profissional. Conhecia o seu métier. Além disso, “coño!” ele era descendente de Emiliano Zapata e não tinha por que temer o baixo astral do chefe dos gringos executivos. Saiu de trás de seu esconderijo e esperou que o velho magnata terminasse de ler a cotação da bolsa, extinguisse o charuto para, num tom de voz seguro e até um pouco impertinente, perguntar: “O que gostaria de beber, senhor?”
Rockefeller estava em um transe hipnótico, perdido no cálculo de cifras astronômicas. A frase de Martines interrompeu bruscamente a viagem do magnata, que voltou à realidade de uma mesa de bar de hotel justamente quando estava prestes a descobrir um meio de ganhar mais de dois milhões de dólares em menos de um ano (o que, naquela época, era dinheiro pra burro).
Quase estarrecido, visivelmente irritado, Rockefeller se voltou para Martines como o anjo exterminador, espada flamejante em punho. Entretanto, ao se dar conta da fragilidade de seu oponente, do subdesenvolvimento atávico que entrevia nos olhos ligeiramente amendoados de Martines, resolveu trocar a espada laser por um jogo de gato e rato. Mediu o barman de cima a baixo, farejou sua origem espúria e, crudelíssimo, lançou o desafio:
 “Desejo tomar um drinque jamais experimentado por alguém.”
A essa altura, o sensível Martines já se havia dado conta de que estava em meio a um Armagedon etílico, o confronto final entre as hostes bárbaras da Saxônia — representadas por Rockefeller —, e o último bastião da cultura romana — no caso ele, o altivo barman do Hotel Knickerbocker, em Manhattan.
Os movimentos que fez daí para frente foram inteiramente inspirados pelo acaso, o destino... e o talento. De posse de uma coqueteleira de prata trabalhada com finos entalhes art déco, um mixer igualmente de prata com o cabo cravejado de brilhantes e um cálice de cristal, foi a vez de Martines medir Rockefeller de alto abaixo e se inspirar na personalidade do antagonista: “Hay que ser seco”, intuiu. “Y, para los secos, nada como el gin. “ Voltando-se para a prateleira, escolheu um Thanckeray, após algumas frações de segundo de hesitação entre o Gordon e o Beefeater. “Pero también es helado...  , prosseguiu, enquanto imaginava como conseguir um gelo enxuto que não conspurcasse a secura do gim. Por um instante, pensou em usar gelo seco. Mas seria uma combinação mortal. Optou pelo gelo mais seco de sua geladeira, aquele gelo opaco, fumegante, do tipo que gruda na mão e na bandeja. Despejou quatro pedras deste gelo dentro da coqueteleira e, por pura intuição, deixou pingar sobre as pedras uma gota de um excelente vermute branco francês, o Noilly-Pratt, que encontrou sobre a bancada. Logo acrescentou uma dose do gim escolhido e, delicadamente, revolveu com o mixer. Evitou a agitação de modo a impedir que o gelo minasse água em demasia.
Rockefeller acompanhava a performance do barman com atenção crescente. Gostou de tudo: da coqueteleira, do mixer, do gelo, não percebeu o truque do vermute, mas estava adorando o modo cuidadoso com que Martines despejava o resultado de sua mágica na delicada taça de cristal, retendo o gelo na coqueteleira.
O magnata era, afinal de contas, um bom sujeito. Não tinha culpa de ser bilionário. Quando criança, sem nenhum tostão no bolso, ganhou certa vez uma maçã de um desconhecido na rua. O primeiro impulso foi o de comer a maçã, mas se conteve. Ao invés disso, vendeu a maçã e comprou mais duas maçãs. Ficou fascinado com o truque e o repetiu tantas vezes que, ao fim do dia, já tinha conseguido duas caixas de maçãs. No dia seguinte, seu avô morreu e ele herdou uma fortuna. Por isso, não tinha culpa de ser milionário. Da mesma forma que Martines, sua soberba (e tino comercial) era herança dos precursores.
Martines, em seu transe de feiticeiro asteca, arrematou o encanto cortando um pedaço de casca de limão que torceu sobre o cálice. Ao cortar, teve o cuidado de evitar a parte branca do bagaço da fruta, o que certamente amargaria a bebida. Respirou fundo, inalou a distância o resultado de sua genialidade e, em seguida, com a coragem dos loucos, ofereceu-o ao homem mais rico do mundo.
Very dry, Martines! Very dry”, exclamou o magnata ao provar o primeiro dry martini já preparado na face da Terra. Rockefeller já tinha o rosto descontraído, corpo menos tenso, e estampava um sorriso franco de orelha a orelha. Estava deliciado com o sabor realmente incomparável daquele drinque fabuloso. Inclinando-se sobre o balcão, deu dois tapinhas nas costas de Martines e sussurrou-lhe ao ouvido:
You tough, guy”, o que mais ou menos quer dizer: “Tu és porreta, rapaz!”
Foi assim que John Delano Rockefeller — que, afinal de contas, como denuncia o Delano, também era latino, pombas! — e o brilhante barman mexicano do Hotel Knickerbocker (em Manhattan, bem lembrado), começaram uma sólida amizade. E foi também assim, fruto do acaso, que, do capricho de um capitalista selvagem e da engenhosidade de um cucaracho romântico, nasceu um dos drinques mais populares do mundo, bebida símbolo do american way

sábado, 14 de janeiro de 2012

Fantasmas de biblioteca



Viver em uma biblioteca como a do Vaticano era viver cercado de grandes ideias; e dos espíritos que as conceberam e as preservaram através dos séculos. E logo descobri que eu e Khosr não éramos os únicos sujeitos esquisitos a frequentar a instituição. Aquelas salas atopetadas de livros também estavam repletas de fantasmas, que ali pairavam como mariposas atraídas pela luz de um lampião.
Os fantasmas dividiam-se em três grandes categorias: os cativos, os de família e os errantes. Os cativos eram espíritos de leitores, colecionadores ou, mais raramente, autores dos livros que assombravam. Não tinham um compromisso com a biblioteca propriamente dita, e sim com as obras através das quais se manifestavam. Eram os mais chatos, os mais lamurientos, os mais pegajosos. Arrastavam-se pelos corredores madrugada afora, murmurando trechos de seus livros preferidos — sempre os mesmos malditos trechos, é bom que se diga, para que eu não passe por um diabo desalmado. Tinham também o mau hábito de se imiscuir na leitura alheia, tentando “vender” o seu livro como uma leitura mais agradável. Daí que lá estava eu a decifrar um parágrafo particularmente espinhoso de um complicado códex bizantino, quando, subitamente, as letras se embaralhavam e começavam a correr pelo papel como num letreiro luminoso: “Há quanto tempo você não relê Os Lusíadas?” Ou: “Contra o tédio das leituras maçantes, Rabelais é a solução!” E outros truques baratos de publicidade.
Já os fantasmas de família eram assim chamados por serem membros da outrora poderosa família Borgia, antiga proprietária do prédio da biblioteca. Eram fantasmas barulhentos, irascíveis, mas que tinham a vantagem de não se intrometerem com os vivos, preferindo focar energias em suas vendetas particulares, sempre muito trágicas, escandalosas e vulgares. Mas era difícil se concentrar na leitura com o barulho que faziam.
Por último, os fantasmas errantes, espíritos em desenvolvimento que vez por outra vinham consultar os alfarrábios. Esses eram discretos, breves e objetivos. Vinham, pegavam o que queriam e partiam. Raramente tornávamos a vê-los.
Khosr parecia não se importar com as manifestações. Eu as detestava. Afinal, diabo que fosse, eu era um ser vivo, de escamas e cartilagens, e não me dava muito bem com a desfaçatez daqueles espectros sobrenaturais. Sim, é verdade, havia espíritos muito ilustres frequentando os corredores, almas que já haviam encarnado grandes gênios da literatura. Mas e daí? Viviam num limbo atemporal, imaterial, parafísico. Era impossível estabelecer um diálogo coerente com qualquer um deles.
Calímaco, por exemplo, costumava aparecer na seção de livros gregos. Ficava quieto num canto, ruminando os seus verbetes, sem se dar conta do que se passava à volta. Às vezes dormia. E roncava. E fazia ventar forte no departamento. Era um fantasma, digamos, pacífico. Contudo, não podia me ver entretido com um livro mais volumoso sem exclamar, angustiado: “Um grande livro, um grande mal!” — e cair em um choro compulsivo. Outros ilustres não pareciam menos insanos.
Aturei os fantasmas durante décadas, até que, certo dia, aturdido com a algazarra que faziam, disse lá qualquer palavrão.
— É comigo que está falando? — perguntou Khosr, interrompendo a leitura.
— Com você? Claro que não. Estou falando com esses malditos fantasmas.
Khosr pareceu intrigado.
— Você se dá ao trabalho de sintonizar fantasmas?— perguntou afinal, num tom de voz irritante que beirava a tolerância paternal.
Em seguida, bocejou, fez um gesto com o indicador e... clique!
— M-mas que diabos! — exclamei assustado, ao perceber que os fantasmas tinham desaparecido.
Khosr sorriu com complacência e disse:
— Você tem o mau hábito de manter todos os seus canais parapsíquicos ligados ao mesmo tempo, e no volume máximo. Isso não é econômico. Tampouco é salutar.
Khosr abanou a cabeça de um lado a outro, dando a entender que eu era um caso perdido.
— Fantasmas, pois não? Era o que nos faltava! Somente um idiota se dá ao trabalho de sintonizar fantasmas.
E ainda zombando de minha inexperiência paranormal, voltou a mergulhar na leitura.

Trecho do romance Memórias de um diabo de garrafa, Garamond 2012.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Preleção



Nos dez dias que antecederam a partida, os jogadores da floresta foram submetidos a um regime de exercícios moderados, ensaios estratégicos e alimentação rica em proteínas e carboidratos. Também receberam aconselhamento dos sacerdotes que integravam a comitiva, para estarem preparados para enfrentar com bravura a pedra do sacrifício ao fim do jogo.
Polícrates foi convidado a comparecer aos encontros religiosos uma vez que, logo após revelar aos lídimos o segredo de seu planetário portátil, também seguiria o mesmo destino dos jogadores. Mas recusou o convite alegando que, ainda que perdessem a partida, o que achava pouco provável, ele teria de prestar contas aos seus deuses estrangeiros, de acordo com crenças e rituais que os sacerdotes desconheciam e a respeito das quais não poderiam lhe dar qualquer tipo de orientação ou conforto.
Na véspera da partida, Polícrates e Jaguar Macambúzio convocaram os jogadores para uma reunião a portas fechadas no grande salão da vila esportiva.
— Aqui termina nosso treinamento — disse o ex-apóstolo assim que os jogadores se acomodaram em suas esteiras. — Agora, só lhes cabe entrar em campo, jogar o seu melhor pocolpoc e ganhar o jogo de suas vidas. De nossas vidas. Da vida de todos os povos da floresta. Apesar de vocês já terem sido instruídos pelos sacerdotes a como se comportarem diante do altar de sacrifícios, apesar de todos, inclusive vocês mesmos, estarem absolutamente certos de nossa inevitável derrota, a verdade é que, tecnicamente, somos muito superiores aos nossos adversários. E podemos vencer o confronto de amanhã.
Os jogadores se remexeram sobre suas esteiras, evidentemente incrédulos.
— Muitos de vocês me consideram um otimista incurável e alguns certamente devem me achar um louco varrido. E talvez tenham razão. Talvez eu esteja redondamente enganado. Talvez percamos nove de cada dez partidas que disputemos contra eles. Mas o fato é que não perderemos essa partida em particular. Esse será o único jogo em dez que ganharemos desses tiranos arrogantes e pretensiosos.
Polícrates olhou para a pequena plateia. A descrença havia cedido lugar à apreensão.
— Imagino o que devam estar pensando. E se algo der errado? E se, por algum acaso, jogarmos o pior jogo de nossas vidas? E se perdermos? De fato, somos os azarões. Todos preveem a nossa derrota. Vocês mesmos não se creem capazes de vencer o jogo de amanhã. Mas eu lhes peço apenas isso: concentrem-se.
O ex-apóstolo fez uma pausa para a ideia se acomodar na mente dos jogadores mas disse logo a seguir:
— Vocês têm controle sobre sua força física, sua arrancada, seu equilíbrio e velocidade. Vocês têm controle sobre sua atitude, seu espírito, sua paixão e genialidade. Concentrem-se nisso e esqueçam todos os outros aspectos sobre as quais não exercem controle. Não se importem com os juízes, por mais que estejam roubando. Não prestem atenção nas torcidas, por mais hostis que lhes pareçam. Não liguem para as provocações dos adversários. Se fizerem isso, seus esforços individuais serão prejudicados. Mantenham os seus corações e mentes concentrados apenas naqueles aspectos que podem controlar. Se cuidarem de sua perfeição individual, a vitória virá natural e espontaneamente. Venceremos porque cada um cuidou de sua parte.
Houve um breve silêncio durante o qual os jogadores pareceram refletir sobre o que acabavam de ouvir.
— Senhores, amigos, compatriotas — exclamou Jaguar Macambúzio, tomando a palavra. — É chegado o momento de nos confrontarmos com o nosso destino. Amanhã, a esta mesma hora, não importando o que aconteça, independentemente do resultado do jogo, já não mais seremos as mesmas pessoas que somos agora. Nossas vidas, assim como as de todos aqueles que nos cercam, sofrerão uma mudança radical e irreversível. Mas é importante que compreendam que, ao entrarmos naquela arena, estaremos defendendo algo muito mais precioso e permanente do que nossas vidas efêmeras. Amanhã, estaremos lutando pelo direito de finalmente podermos ser vistos e respeitados como seres humanos de verdade. Pela oportunidade de garantirmos um futuro próspero e digno para os nossos filhos, e para os filhos de nossos filhos, até o fim dos tempos.
Ele fez uma pausa, engoliu um soluço emocionado.
— Amanhã, senhores, estaremos lutando pela sobrevivência, pelo bem estar e pela grandeza de nossa própria civilização!

Trecho do romance São Tomé na América, Garamond, 2012. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Humor de gigante



Enquanto Tomé pregava, o gigante trabalhava. E embora Pedra Angular já estivesse pronta — as favelas em torno obstruindo qualquer possibilidade de ampliação racional do parque arquitetônico — ainda assim a criatura continuava a talhar monólitos e a enterrá-los cuidadosamente nas cercanias da cidade.
Em uma de suas raras saídas do templo, em uma visita ao canteiro de obras, Tomé percebeu a novidade e perguntou o porque de tanto trabalho inútil. A criatura deixou de lado a peça que trabalhava — um monólito de pórfiro com mais de dez metros de comprimento — e disse calmamente:
— Eu poderia lhe dar ótimas respostas para esta pergunta. A mais óbvia e verossímil seria a de que estou formando um estoque de boa cantaria para o caso de precisarmos dela no futuro. Outra boa resposta seria a de que faço isso por vício ou compulsão, uma vez que nada mais me diverte neste mundo. E enterrar monólitos, convenhamos, me parece uma atividade tão interessante e produtiva quanto o xadrez ou a literatura.
O gigante enxugou o suor da testa e prosseguiu:
— A verdade, porém, é que faço o que faço para dar o que pensar aos outros. Daqui a muitos milhares de anos, quando ninguém mais se lembrar de que outrora havia gigantes vagando sobre a face da Terra, quando ninguém mais souber o segredo de conversar com as pedras, o que pensarão aqueles que aqui escavarem e derem com tais colossos? Imagine o seu assombro ao tentarem imaginar como e porque estes monólitos foram cortados, movidos e trabalhados. Imagine quantas teorias, quanta discussão, quanto palavrório inútil diante do enigma indecifrável!
Tomé, que não conseguia entender a graça de um trote que levaria milhares de anos para surtir efeito, insistiu em saber o verdadeiro motivo de tudo aquilo.
— Já disse. É um enigma para a posteridade. Um enigma insolúvel simplesmente porque não tem solução lógica. Estou enterrando essas estátuas e monólitos na ordem mais caótica possível, em diferentes profundidades, fazendo uma bagunça tão grande com a terra que duvido que alguém seja capaz de chegar a alguma conclusão a respeito do que realmente aconteceu aqui em nossa época. Para complicar ainda mais, tive o cuidado de decorar a maior parte dessas peças com desenhos e falsos glifos, o que certamente vai dar muita dor de cabeça aos curiosos do futuro.
Tomé limitou-se a abanar a cabeça de lado a outro, confuso.
— Desista — concluiu a criatura em meio a um muxoxo. — Isso é humor de gigante. Por mais que você se esforce, jamais conseguirá entender a graça da coisa.
Do romance São Tomé na América, editora Garamond, 2012.

Lançamento!

A Editora Garamond e a Livraria da Travessa
têm o prazer de convidar para o lançamento do livro
'São Tomé na América' de Alexandre Raposo


Quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
Livraria da Travessa do Leblon
Av. Afrânio de Melo Franco, 290 - loja 205 A


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A revanche

INT. RESTAURANTE. DIA

JOSÉ GERALDO MONTEIRO, escritor baiano, 50/55 anos de idade, roliço, parcialmente calvo, vestindo uma bermuda de brim, sandálias de couro e óculos fundo de garrafa chega a uma luxuosa churrascaria carioca. Há um reboliço nas mesas quando os freqüentadores identificam o recém-chegado. José Geraldo é recebido pelo maitre e por dois garçons, que o conduzem a uma mesa reservada. O maitre posiciona-se diante da mesa com um sorriso idiota nos lábios. Um garçom puxa a cadeira enquanto o outro ajeita os talheres sobre a mesa.

GARÇOM
Para beber?

JOSÉ GERALDO
Dois chopes e um steihegger, por favor.

O garçom hesita por um instante mas recebe um olhar fulminante do maitre e desaparece de cena.

MAITRE
Então, como vão as coisas? E o novo livro?

JOSÉ GERALDO
Assando no forno, em fogo brando. Por falar nisso...

MAITRE
A picanha hoje está soberba!

JOSÉ GERALDO
Picanha não. Tem muita gordura e o médico proibiu.

Um garçom aproxima-se com um espeto de linguiças e costelinhas de porco assadas na brasa. José Geraldo finge não ver o garçom servi-lo.

JOSÉ GERALDO
Fico com uma maminha, ao ponto pra mal.

MAITRE
Acompanhamento?

JOSÉ GERALDO
Uma porção de farofa à brasileira bem puxada na manteiga e um punhado de batatas noisettes.

O maitre já vai longe quanto José Geraldo lembra-se de algo.

JOSÉ GERALDO
Ah, sim, ia me esquecendo. E uma saladinha verde, suave, pra acompanhar. Sabe como é... ordens médicas...

O maitre se vai com um sorriso irônico no canto dos lábios enquanto o garçom retorna com as bebidas. Antes que o garçom ponha o segundo chope e o steinhegger sobre a mesa, José Geraldo já secou a primeira tulipa, que deposita sobre a bandeja vazia. O garçom se vai, impressionado. O escritor sorri, divertido com o espanto do novato. José Geraldo sorve o steihegger de um só gole e está a ponto de fazer o mesmo com o outro chope quando uma menina de seus quinze anos de idade se aproxima portanto um livro e uma caneta tinteiro.

MENINA
Você é o famoso escritor José Geraldo Monteiro?

JOSÉ GERALDO
O "famoso" é por sua conta.

José Geraldo toma o livro e a caneta das mãos da menina. Insert de capa de livro: "O choro da borboleta".

JOSÉ GERALDO
Como é o seu nome?

MENINA
Não é pra mim não, é pra minha mãe...

E faz um sinal discreto com a cabeça para uma mesa onde há uma mulher de seus 35/40 anos, acompanhada de outras pessoas da mesma idade. A mulher sorri encabulada. José Geraldo acena.

MENINA
Mas não dá bandeira que meu pai está olhando...

José Geraldo olha para a menina com uma expressão mista de deboche, surpresa e indignação.

JOSÉ GERALDO
E como é o nome de sua mãe?

MENINA
Isadora. E ela pediu pra você escrever assim: "Para minha querida Isadora, pelos bons momentos que..."

JOSÉ GERALDO
Peraí, mocinha. Quem vai dar o autógrafo não sou eu?

MENINA
É.

JOSÉ GERALDO
Pois então deixa que eu sei como se faz esse negócio, tá legal?
José Geraldo rabisca qualquer coisa e devolve o livro à garota, que lhe dá as costas sem agradecer.

JOSÉ GERALDO
Tem gente esquisita nesse mundo...

Nem bem termina a frase, um cangaceiro entra no salão do restaurante. Carrega um arcabuz colonial à tiracolo, o tradicional chapéu de couro em meia-lua, óculos de aro de casco de tartaruga e, por baixo dos óculos, um tapa-olho grosseiro cobrindo a vista esquerda. Tem pentes de bala cruzados no peito, peixeira e garrucha à cintura. Calça alpercatas surradas e está suado, barbado, oleoso. O cangaceiro aproxima-se da mesa de José Geraldo. José Geraldo olha para o recém-chegado, estupefacto. Em seguida, olha em torno, para os outros freqüentadores. Mas ninguém parece impressionado com a aparição absurda.

CANGACEIRO
Por que o susto? Voismicê não me conhece?

O cangaceiro arrasta uma cadeira e senta-se diante de José Geraldo.

CANGACEIRO
Por essa voismicê não esperava, né? Estava aí tão entretido, brincando de faz de conta que nem...

JOSÉ GERALDO
Puxa vida! Você é igualzinho a...

José Geraldo abre um largo sorriso.

JOSÉ GERALDO
Genial! A sua caracterização está magnífica! Exatamente como eu imaginei o Coronel Otacílio de Viva Antônio Conselheiro!

José Geraldo volta a olhar em torno, como se procurasse alguma coisa.

JOSÉ GERALDO
Onde está a câmara? Isso é uma pegadinha né?

CANGACEIRO
Olhe seu moço, que vou contar uma história que talvez seja de sua serventia. Portanto atente bem porque só vou contar uma vez: um dia, em minha mocidade, no sertão do Pajeú, lugar onde eu estava acoitado, procurado pela justiça por conta da morte bem matada do intendente do Crato, estando eu lá, no matão, uma cascavel me deu um bote. Eu mais que depressa peguei a bicha no ar e fiz a maldita morder o próprio rabo. Morreu na minha mão, agonizando a pior e mais peçonhenta das mortes. É assim que trato. É assim que fecho. É assim que eu faço o meu juízo.

José Geraldo se ri da fala barroca e do acentuado sotaque nordestino do cangaceiro.

JOSÉ GERALDO
A idéia é boa. Aliás, é a cara do Coronel Otacílio. Mas não é verdadeira. A cascavel é imune ao próprio veneno.

CANGACEIRO
Isso é o que veremos.

Inesperadamente, o cangaceiro saca a peixeira. José Geraldo se assusta. O cangaceiro sorri e põe-se calmamente a limpar as unhas com a ponta da arma.

CANGACEIRO
Tome tento, seu moço. Tome tento. E considere-se avisado.

JOSÉ GERALDO
Não estou compreendendo...

O cangaceiro encara José Geraldo durante um longo tempo enquanto limpa as unhas. Em seguida levanta-se, volta a embainhar a arma, encara o escritor uma última vez e sai de cena. O garçom se aproxima.

GARÇOM
Outro chope, senhor?

JOSÉ GERALDO
Não, não... de repente perdi a sede e o apetite. Por favor, peça para cancelar o pedido e ponha a despesa na minha conta. José Geraldo levanta-se, mete a mão no bolso, dá uma nota de dez reais ao garçom e se vai.

EXT. ENTRADA DO RESTAURANTE. DIA
Ao sair ao ar livre José Geraldo tem outra surpresa. Em vez da confortável roupa esporte que vestia segundos antes, traja um blazer cinza, camisa social, calças tweed e sofisticados sapatos de couro de crocodilo. José Geraldo atira longe os óculos escuros que subitamente apareceram diante de seus olhos e larga no chão a maleta executiva que subitamente materializou-se em sua mão. José Geraldo procura e encontra os óculos verdadeiros no bolso do blazer. Ele põe os óculos e olha para si mesmo.

JOSÉ GERALDO
Mas que diabos!... Que roupa mais ridícula!

No outro lado da rua, há um automóvel estacionado. No interior do automóvel há duas pessoas: um motorista e um passageiro, acomodado no banco de trás.

MOTORISTA
É ele?

PASSAGEIRO
Sim, é.

O passageiro e o motorista sacam as submetralhadoras e começam a disparar em direção a José Geraldo. Pânico na calçada defronte ao restaurante. As balas destroçam vasos, vidraças e arrancam pedaços do reboco das paredes. Um transeunte é baleado e cai sobre José Geraldo, o que salva o escritor de ser atingido pela última rajada. O carro no outro lado da rua parte cantando os pneus.

Um taxi surge na outra esquina, também cantando os pneus, e pára diante do restaurante. A porta se abre.

MOTORISTA
Venha, rápido!
José Geraldo levanta-se, apavorado, e entra no taxi.

INT. TAXI. DIA
O taxi percorre a Lagoa Rodrigo de Freitas. José Geraldo está no banco traseiro, ofegante, suando em bicas, mão no coração, aparentemente a ponto de ter um infarto.

MOTORISTA
Seguinte: atualmente, você é o grande escritor José Geraldo Monteiro. Mas em outros tempos você também já foi um ativo militante de esquerda, codinome Paulo Maverick, envolvido em seqüestros de embaixadores e grandes empresários, bem como no assassinato de líderes da repressão militar...

José Geraldo olha para o motorista, aparvalhado.

JOSÉ GERALDO
Como é que é?

MOTORISTA
...em 1975, numa fuga espetacular, você deixou o Brasil, asilando-se primeiro no Chile e, depois, na Suécia, onde viveu até ser anistiado, em 1982...

JOSÉ GERALDO
Você deve estar maluco! Eu nunca fui militante de esquerda! Nunca fui exilado político! E só estive no Chile uma vez, como turista, numa estação de esqui! E Paulo Maverick é o nome de um personagem meu!

MOTORISTA
Olha, não tenho nada com isso. Só estou passando o briefing. Quem escolhe é o homem lá em cima...

José Geraldo olha para o rosto do motorista através do espelho retrovisor.

JOSÉ GERALDO
Espere aí... Eu estou reconhecendo você... Você não é aquele motorista de taxi que levou a protagonista até o aeroporto do Galeão no epílogo de meu último livro?

O motorista sorri.

MOTORISTA
Sim. Mas também já fui o camareiro de Um trem para Munique, o cocheiro de O Espelho de prata, o copeiro de madame Freitas, em Brilhantes... toda vez que você precisa de um serviçal inexpressivo, lá estou eu.

José Geraldo sorri, divertido com o absurdo de tudo aquilo.

MOTORISTA
Por exemplo: se eu o deixar naquele hotel mais adiante, quem vai recebê-lo na portaria serei eu mesmo, só que vestido de porteiro.

O motorista vira o espelho retrovisor de modo a poder ver melhor o escritor.

MOTORISTA
Seus personagens secundários não tem profundidade. São planos, unidimensionais, sem vida, cor ou expressão. Isso torna a narrativa maçante...

José Geraldo fica indignado.

JOSÉ GERALDO
E o que sugere que eu faça, meu prezado co-coadjuvante de passagens curtas?

MOTORISTA
Dê mais falas para a gente. Detenha-se um pouco mais na nossa descrição. Nos torne mais humanos. Evite certas aberrações. Veja só: olhe bem para mim. O que está faltando?
José Geraldo debruça-se sobre o banco da frente e descobre que a metade inferior do corpo do motorista não existe.

JOSÉ GERALDO
Cara, deve ser muito difícil dirigir com um problema desses...

MOTORISTA
Isso não é nada perto do que a gente atura todo o dia... a propósito: para onde quer ir?

JOSÉ GERALDO
Me leva para casa. Acho que chega de maluquice por hoje.

MOTORISTA
O senhor é quem manda.

José Geraldo emite um profundo suspiro de alívio.

JOSÉ GERALDO
Ainda bem...

EXT. FRENTE DA CASA DE JOSÉ GERALDO. DIA

Uma multidão aglomera-se diante da casa. Há uma ambulância, um carro do corpo de bombeiro e diversas viaturas policiais. O taxi deixa José Geraldo na calçada oposta e se vai.

JOSÉ GERALDO
Mas o que está acontecendo por aqui...

Neste momento, duas macas deixam a casa. Sobre cada uma delas há um cadáver embrulhado em saco plástico. Um policial traz em mãos um terceiro saco plástico, menor que os outros dois, dentro do qual também se percebe um pequeno volume. Uma equipe de tevê grava um informe ao vivo não muito longe de onde está José Geraldo.

REPÓRTER
...diante da casa do escritor José Geraldo Monteiro. Neste momento os funcionários do IML estão deixando o local do crime trazendo os corpos de Marli Monteiro, de sua filha Arlene Monteiro e do cão da família, Milu, brutalmente assassinados a tiros de escopeta...

JOSÉ GERALDO
Pô.. até o cachorro!...

José Geraldo é identificado pela multidão, que forma um círculo ao seu redor. Flashes e refletores o iluminam. Todos o olham com ódio e reprovação. Policiais rompem o cerco.

DETETIVE
Senhor José Geraldo Monteiro?

JOSÉ GERALDO
Sim?...

DETETIVE
O senhor está preso pelo assassinato de sua mulher, de sua filha e de seu cão de estimação.

JOSÉ GERALDO
Mas...

José Geraldo é algemado e levado com brutalidade a um carro de polícia. A imprensa cerca o veículo.

DIVERSOS REPÓRTERES
É verdade que sua mulher o traía?
Por que matou também a menina?
Ela não era sua filha?
Por que não se suicidou em seguida?
O crime foi premeditado?
Onde escondeu a arma do crime?

A viatura parte com a sirene ligada.

INT. CADEIA. NOITE
José Geraldo é trancado numa cela ás escuras.

JOSÉ GERALDO
Agora mais essa...

José Geraldo ensaia  alguns passos em seu novo hábitat. Alguém tosse ao fundo. José Geraldo volta-se bruscamente na direção donde veio o som.

JOSÉ GERALDO
Quem esta aí?

Uma sombra emerge do fundo da cela e posiciona-se sob a luz do luar que atravessa as grades. É um jovem, pinta de anti-herói de filme noir, casaco de couro preto, camiseta branca, jeans e barba por fazer.

JOSÉ GERALDO
Paulo Maverick!

PAULO MAVERICK
Em carne e osso.

JOSÉ GERALDO
Você, que é meu personagem favorito, poderia me explicar o que diabos está acontecendo afinal de contas?

PAULO MAVERICK
Como lhe disse o coronel Otacílio, hoje de manhã no restaurante, estamos lhe dando uma prova de seu próprio veneno.

JOSÉ GERALDO
Mas eu não compreendo... e logo você, Paulo, um personagem a quem eu tanto admiro! O que fiz de tão terrível? Desde a hora do almoço até agora, já fui ameaçado com uma peixeira, sofri um atentado a bala, fui preso injustamente pelo assassinato de minha mulher e filha. Até o cachorro, coitado, o pobre Milu, um poodle inofensivo, entrou de gaiato na história...

PAULO MAVERICK
Não lhe parece familiar? Tirando a peixeira, não é exatamente isso o que acontece comigo no primeiro capítulo de Os fantasmas da alvorada?

JOSÉ GERALDO
Sim, mas...

PAULO MAVERICK
Toda vez que um personagem está se aprumando na vida ou conseguindo atingir os seus objetivos o que você faz? Taca-lhe uma desgraça em cima. Toda vez que a trama está ficando xoxa, lá vem você com um tremenda tragédia. Quem se dana? Nós! E tudo isso para que?

JOSÉ GERALDO
Para manter o interesse na trama, ora essa!

PAULO MAVERICK
Exato! Para manter o interesse na trama, de modo a continuar vendendo os seus livros, para poder continuar comendo e bebendo em churrascarias de luxo e atraindo olhares furtivos de senhoras de meia idade... Tudo isso em troca de nossa miséria, de nosso sofrimento, de nossa dor!

Paulo Maverick aproxima-se de José Geraldo.

PAULO MAVERICK
Suas mãos, José Geraldo, estão manchadas pelo sangue de personagens inocentes!

José Geraldo senta-se sobre o catre, atônito.

PAULO MAVERICK
Agora, me responda: no que você é diferente do Coronel Otacílio, do Pedro Sepúlveda, do Zé Tomé e de tantos outros vilões criados em seus livros?

JOSÉ GERALDO
Tudo bem, tudo bem. Você tem um bom argumento. E o que acontece em seguida?

PAULO MAVERICK
Amanhã, você será julgado pelos homicídios que não cometeu e será condenado à morte. Antes de ser levado ao cadafalso, porém, será assassinado na cadeia por um colega de cela.

JOSÉ GERALDO
Essa é boa! Aqui no Brasil não tem pena de morte!

PAULO MAVERICK
Agora tem. Nesta história tem. Tudo é possível no reino da ficção, lembra-se?

JOSÉ GERALDO
Tudo não. Há que se manter a verossimilhança... Aliás, esse negócio de eu ser preso hoje e julgado amanhã, convenhamos, é ridículo.

PAULO MAVERICK
Não seja por isso. Durante a nossa convivência aprendi alguns truques de narrativa, veja você...

Paulo Maverick estala os dedos. A cena escurece. Quando volta a clarear, vemos um José Geraldo barbado, cheio de olheiras, vestindo as mesmas roupas com que fora preso, só que agora sujas e esfarrapadas.

LEGENDA 
Dois anos depois...

PAULO MAVERICK
Pronto. Em nome da tal verossimilhança, fizemos um salto no tempo. Estamos, agora, às vésperas de sua execução...

JOSÉ GERALDO
Mas isso não é justo! Eu nem assisti ao meu julgamento!

PAULO MAVERICK
Não perdeu grande coisa. Foi um julgamento muito chato. Você esteve patético tentando provar que não era o perigoso terrorista Paulo Maverick, que Maverick era um personagem seu, etc, etc, etc. Agora, vamos ao grand finale!

Paulo Maverick saca um estoque debaixo da camisa e avança para José Geraldo.

PAULO MAVERICK
Eles pensam que você é Paulo Maverick. Se você morrer, estarei livre da perseguição destes malditos...

JOSÉ GERALDO
Espere um pouco!... e quem são ‘eles’, afinal de contas? Ao que me conste, deixei você numa boa, casado com aquela ninfetinha cucaracha, a Daniela...

PAULO MAVERICK
...que morreu poucos dias depois de terminado o livro porque você não lhe deu argumento para que continuasse viva.

JOSÉ GERALDO
Como é que é?

PAULO MAVERICK
É isso mesmo. Para você, bastava me deixar numa boa com uma garotinha bonitinha, e pronto. Você nada deu a ela além de uma voz suave em um corpo escultural. Daí que, dias depois do fim do livro, ela desapareceu como, aliás, desaparecem a maioria dos seus personagens. Eu mesmo não sei como consegui sobreviver tanto tempo...

JOSÉ GERALDO
Tudo bem, mas responda a minha pergunta: quem são esses caras que o perseguem? Eu o deixei bem, com todos os inimigos mortos e enterrados...

PAULO MAVERICK
Esses são novos desafetos, gente da extrema direita que quer vingar os seus mortos. Você me fez matar dois tenentes-coronéis da OBAN, lembra-se? Agora, os asseclas, filhos e netos deles estão atrás de mim. Mas quem se importa? O livro já acabou mesmo...

JOSÉ GERALDO
Mas se eu vou ser executado daqui a pouco, por que você vai ter o trabalho de me matar na cela, arriscando até mesmo a ser desmascarado como o Paulo Maverick verdadeiro?

PAULO MAVERICK
Não posso facilitar. Afinal, você é autor e pode retomar o pulso da história a qualquer momento. Tenho que ser rápido.

Paulo Maverick aproxima-se de José Geraldo com o estoque em riste.

PAULO MAVERICK
Esteja certo: isto vai doer mais em mim do que em você... papai.

Paulo Maverick golpeia José Geraldo. José Geraldo grita. O sangue jorra.

INT. RESTAURANTE. DIA
José Geraldo desperta gritando, sentado diante da mesa. Em seguida, cai em si e olha em torno, envergonhado. Todos os freqüentadores olham para ele, surpresos. O garçom aparece correndo com um chope.

GARÇOM
Desculpe a demora, senhor! Desculpe a demora! Não precisa ficar nervoso!

José Geraldo respira fundo e aceita o chope.

JOSÉ GERALDO
Obrigado. E pode encerrar o serviço. Ponha na minha conta, por favor...

José Geraldo se levanta, e dá dez reais ao garçom.

GARÇOM
Teve uma boa idéia para um próximo livro, senhor?

JOSÉ GERALDO
Não, nada espetacular.

José Geraldo dá as costas e está para ir embora quando pára e se volta novamente para o garçom.

JOSÉ GERALDO
Em verdade, eu duvido que seja capaz de escrever um livro interessante daqui pra frente. Pensando bem, acho que amanhã mesmo vou me matricular numa escola de música.
José Geraldo se vai.

O garçom balança a cabeça de lado a lado.

GARÇOM
É... tem gente estranha nesse mundo.

O garçom guarda a nota de dez reais no bolso e se encaminha para a cozinha.

FIM
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