terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Very dry, Martines!



É MUITO POUCO PROVÁVEL QUE Martines, o barman mexicano do Hotel Knickerbocker, em Manhattan, soubesse exatamente o que estava fazendo naquele fim de tarde do verão de 1910 quando, atendendo a um pedido de ninguém menos que John Delano Rockefeller, preparou um drinque “jamais experimentado por alguém”.
Rockefeller chegara ao bar pouco antes das 18 horas, gravata frouxa, rosto cansado, gestos bruscos e frases lacônicas. “Mas que hombre seco" pensou Martines, encastelado em seu balcão, meio que se escondendo por trás das garrafas de scotch. Não que tivesse medo daquele executivo mal ajambrado que, segundo lhe contara o maitre, era “o homem mais rico do mundo”. Afinal, Martines não era apenas um barman. Era o melhor barman de toda a ilha e, ainda por cima, tinha um remoto co-parentesco com o lendário Emiliano Zapata. Pelo lado da mãe, de origem venezuelana, era bisneto de uma criada de Simon Bolívar, o que lhe garantia uma altivez soberana, uma certa superioridade condescendente sobre a barbárie saxônica dos filhos do Mayflower. “Pai perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem!”
O que incomodava Martines era começar a noite de quinta-feira servindo aquele homem sisudo, arrogante e aparentemente bronco que, com os pés apoiados no encosto da poltrona ao lado, lia o Wall Street Journal letra por letra, numa cadência truncada, guiada pela ponta do dedo indicador da mão direita. 
Mas Martines era um profissional. Conhecia o seu métier. Além disso, “coño!” ele era descendente de Emiliano Zapata e não tinha por que temer o baixo astral do chefe dos gringos executivos. Saiu de trás de seu esconderijo e esperou que o velho magnata terminasse de ler a cotação da bolsa, extinguisse o charuto para, num tom de voz seguro e até um pouco impertinente, perguntar: “O que gostaria de beber, senhor?”
Rockefeller estava em um transe hipnótico, perdido no cálculo de cifras astronômicas. A frase de Martines interrompeu bruscamente a viagem do magnata, que voltou à realidade de uma mesa de bar de hotel justamente quando estava prestes a descobrir um meio de ganhar mais de dois milhões de dólares em menos de um ano (o que, naquela época, era dinheiro pra burro).
Quase estarrecido, visivelmente irritado, Rockefeller se voltou para Martines como o anjo exterminador, espada flamejante em punho. Entretanto, ao se dar conta da fragilidade de seu oponente, do subdesenvolvimento atávico que entrevia nos olhos ligeiramente amendoados de Martines, resolveu trocar a espada laser por um jogo de gato e rato. Mediu o barman de cima a baixo, farejou sua origem espúria e, crudelíssimo, lançou o desafio:
 “Desejo tomar um drinque jamais experimentado por alguém.”
A essa altura, o sensível Martines já se havia dado conta de que estava em meio a um Armagedon etílico, o confronto final entre as hostes bárbaras da Saxônia — representadas por Rockefeller —, e o último bastião da cultura romana — no caso ele, o altivo barman do Hotel Knickerbocker, em Manhattan.
Os movimentos que fez daí para frente foram inteiramente inspirados pelo acaso, o destino... e o talento. De posse de uma coqueteleira de prata trabalhada com finos entalhes art déco, um mixer igualmente de prata com o cabo cravejado de brilhantes e um cálice de cristal, foi a vez de Martines medir Rockefeller de alto abaixo e se inspirar na personalidade do antagonista: “Hay que ser seco”, intuiu. “Y, para los secos, nada como el gin. “ Voltando-se para a prateleira, escolheu um Thanckeray, após algumas frações de segundo de hesitação entre o Gordon e o Beefeater. “Pero también es helado...  , prosseguiu, enquanto imaginava como conseguir um gelo enxuto que não conspurcasse a secura do gim. Por um instante, pensou em usar gelo seco. Mas seria uma combinação mortal. Optou pelo gelo mais seco de sua geladeira, aquele gelo opaco, fumegante, do tipo que gruda na mão e na bandeja. Despejou quatro pedras deste gelo dentro da coqueteleira e, por pura intuição, deixou pingar sobre as pedras uma gota de um excelente vermute branco francês, o Noilly-Pratt, que encontrou sobre a bancada. Logo acrescentou uma dose do gim escolhido e, delicadamente, revolveu com o mixer. Evitou a agitação de modo a impedir que o gelo minasse água em demasia.
Rockefeller acompanhava a performance do barman com atenção crescente. Gostou de tudo: da coqueteleira, do mixer, do gelo, não percebeu o truque do vermute, mas estava adorando o modo cuidadoso com que Martines despejava o resultado de sua mágica na delicada taça de cristal, retendo o gelo na coqueteleira.
O magnata era, afinal de contas, um bom sujeito. Não tinha culpa de ser bilionário. Quando criança, sem nenhum tostão no bolso, ganhou certa vez uma maçã de um desconhecido na rua. O primeiro impulso foi o de comer a maçã, mas se conteve. Ao invés disso, vendeu a maçã e comprou mais duas maçãs. Ficou fascinado com o truque e o repetiu tantas vezes que, ao fim do dia, já tinha conseguido duas caixas de maçãs. No dia seguinte, seu avô morreu e ele herdou uma fortuna. Por isso, não tinha culpa de ser milionário. Da mesma forma que Martines, sua soberba (e tino comercial) era herança dos precursores.
Martines, em seu transe de feiticeiro asteca, arrematou o encanto cortando um pedaço de casca de limão que torceu sobre o cálice. Ao cortar, teve o cuidado de evitar a parte branca do bagaço da fruta, o que certamente amargaria a bebida. Respirou fundo, inalou a distância o resultado de sua genialidade e, em seguida, com a coragem dos loucos, ofereceu-o ao homem mais rico do mundo.
Very dry, Martines! Very dry”, exclamou o magnata ao provar o primeiro dry martini já preparado na face da Terra. Rockefeller já tinha o rosto descontraído, corpo menos tenso, e estampava um sorriso franco de orelha a orelha. Estava deliciado com o sabor realmente incomparável daquele drinque fabuloso. Inclinando-se sobre o balcão, deu dois tapinhas nas costas de Martines e sussurrou-lhe ao ouvido:
You tough, guy”, o que mais ou menos quer dizer: “Tu és porreta, rapaz!”
Foi assim que John Delano Rockefeller — que, afinal de contas, como denuncia o Delano, também era latino, pombas! — e o brilhante barman mexicano do Hotel Knickerbocker (em Manhattan, bem lembrado), começaram uma sólida amizade. E foi também assim, fruto do acaso, que, do capricho de um capitalista selvagem e da engenhosidade de um cucaracho romântico, nasceu um dos drinques mais populares do mundo, bebida símbolo do american way

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