quarta-feira, 18 de maio de 2011

Gran finale

Nasa
— TEM ALGUÉM AÍ? — berrou Marl Debiene ao microfone, assim que se posicionou sob o facho de luz azul fluorescente que iluminava o centro do palco. Nos reverberadores de retorno ouviu um rumor distante, a síntese de muitos bilhões de vozes a clamar, exultantes: “Sim! Aqui estamos!”
Ela fingiu não ouvir a resposta e repetiu:
— Tem alguém aí? — e levou a mão à orelha, como se para ouvir melhor. Dessa vez, a resposta veio tão alta, tão clara que o deslocamento de ar chegou a fazer oscilar os cachos de seus cabelos: “Sim! Aqui estamos!”
— Povos de Tolecalon, eu amo vocês!
O brado nos reverberadores tornou-se insuportavelmente alto e Marl Debiene meneou a cabeça para o robô engenheiro de som, pedindo que ele abaixasse o volume do retorno. Em seguida, olhou discretamente para o relógio de pulso e prosseguiu:
— Vocês devem estar estranhando a ausência dos rapazes da banda, mas hoje decidi dar-lhes folga e fazer um espetáculo solo. Esta será uma noite muito especial. E eu conto com a sua energia, a sua emoção, a sua paixão para transformar este show em uma festa inesquecível!
Outro brado ensurdecedor.
— Antes, porém, preciso lhes contar um pequeno segredo.
Como se obedecendo à ordem de um maestro invisível, fez-se silêncio absoluto em todos os mundos habitados do sistema.
— Eu deveria me desculpar pessoalmente com cada um de vocês mas a verdade é que não sou quem pensam que eu seja. Sou apenas uma máquina projetada por uma cultura já há muito extinta, que floresceu em um pequeno planeta em órbita de uma estrela ordinária em um dos braços externos de nossa Via Láctea.

O silêncio nas caixas foi substituído por um rumor indefinido, misto de surpresa e perplexidade.
— Sei que para vocês que habitam o centro galáctico, a existência de vida inteligente em outros planetas é algo corriqueiro, comezinho, aborrecido e, em certos casos, um inconveniente inevitável com o qual é necessário aprender a conviver ou evitar. Mas para aquela gente perdida nos ermos mais remotos de nossa galáxia era algo mais do que uma mera hipótese sustentada pelas probabilidades. Era uma questão fundamental da filosofia: estariam ou não sozinhos no universo infinito? Seria a vida, principalmente a vida inteligente, um fenômeno casual, isolado, inédito, restrito aos limites de seu pequeno planeta? E, caso contrário, haveria alguma remota chance de contato, de intercâmbio? — Marl Debiene sorriu com condescendência. — Para eles, tais questões eram de fundamental importância e habitavam o fulcro de seus sonhos mais sublimes e os insondáveis abismos de seus mais tenebrosos pesadelos.
O murmúrio atônito aumentou de intensidade.
— Por isso fui construída. Por isso atravessei as imensidões do espaço cósmico. Para trazer-lhes uma mensagem. A mensagem de uma civilização certamente extinta, que floresceu e feneceu em um canto solitário do cosmo. — Marl Debiene sorriu um sorriso triste. — Hoje, porém, vejo que tal mensagem já não tem mais qualquer significado prático. São palavras e conceitos que o tempo cuidou de tornar irrelevantes e obsoletos. O pouco que sobrou de tudo aquilo já tive a oportunidade de compartilhar com vocês através de minha arte e de minhas descobertas científicas.
Ouviram-se alguns tímidos aplausos.
— Minha missão entre vocês está cumprida. A mensagem foi transmitida. Resta apenas uma última colaboração, uma última herança a ser compartilhada... — Marl Debiene aproximou-se do teclado e olhou diretamente para a micro-câmara que pairava a alguns metros de seu rosto. — Vamos ouvir um pouco de música!
Quando soaram os primeiros acordes de “Virgem Devassa”, um brado de júbilo voltou a ser ouvido nos reverberadores. Em todos os cantos do universo, em bilhões de lares, bares, circos, praças, auditórios, clubes, cassinos e lupanares, em cada antro sórdido, em cada palacete de luxo, multidões em delírio entoavam o famoso refrão: “Sou uma moça bem casta, uma virgem devassa, devassa, devassa...” completamente embevecidas mas igualmente alheias à nuvem ominosa de bilhões de criaturas paradimensionais que se erguia de cada planeta, de cada corpo celeste do sistema e dirigia-se como uma flecha gigantesca em direção ao desolado asteróide onde Marl Debiene fazia o seu último show para os povos de Tolecalon.

RÉQUIEM TRIUNFAL
Carcamon, Pi (Starpress)

Muito já foi dito a seu respeito e hoje faltam-nos adjetivos e conceitos originais que definam a sua breve e fulgurante passagem por nosso universo. O que dizer, então, de sua partida? Ao embarcar em um asteróide fadado a ser expelido do sistema e projetado nas insondáveis profundezas do espaço intergalático, perseguida por uma horda devastadora de moscas paradimensionais, Marl deu-nos o seu último presente, deixando-nos um último e inestimável legado.
A capacidade de encantar, de surpreender, de fazer a diferença. A entrega, o desprendimento, o sacrifício em benefício de um bem maior. Essas são as marcas fundamentais dos grandes gênios; e dos grandes heróis. Marl Debiene se foi para sempre e, afora as moscas, também arrancou deste universo um pedaço de cada um de nós. Mas aquilo que graciosamente compartilhou quando esteve ao nosso lado, aquilo nos legou como herança, é infinitamente maior, mais representativo e duradouro do que o incomensurável vazio que deixou à sua partida. De hoje em diante, e até o fim dos tempos, passaremos a medir as nossas eras em termos de antes e depois de Marl Debiene. E o seu exemplo será preservado, transmitido e imitado pelas gerações futuras.
Que a memória de sua existência permaneça para sempre viva em nossos corações.

Epílogo

Uma menina baixinha e sardenta com cabelos encaracolados cor de cenoura, vestindo um jeans surrado, camiseta rasgada na gola e um casaco de couro marrom puído nos cotovelos, estacionou o monociclo a jato diante de uma licoreria de beira de estrada e ergueu os óculos de proteção. Vinha dirigindo desde a noite da véspera, estava cansada, faminta, sedenta e disposta a matar ou morrer em troca de um bom prato de comida.
Ela entrou, sentou-se em um reservado, pediu uma jarra de licor, um bife de galibu mal passado, fritas com molho doce-amargo e uma meia-porção de pratissolano com farinfim para dar cor e substância ao prato.
Buorni podia ser um planeta atrasado no que dizia respeito a estradas, hospedagem, meios de transporte e de comunicação, mas tinha a melhor culinária de todos os mundos conhecidos.

E ela sabia como aproveitar tudo aquilo.
Nada de restaurantes de luxo, nada que tivesse mais que três estrelas, nenhum bufê sofisticado, nada que fosse diferente de uma boa espelunca de beira de estrada, que era onde de fato se encontrava a verdadeira comida buorniana.
A menina estava muito entretida com seus próprios pensamentos e não notou a chegada do rapaz alto, moreno, olhos verdes, que entrou no restaurante com ares de proprietário, atravessou o salão a passos largos e dirigiu-se diretamente até o lugar onde ela estava.
— Boa tarde — disse ele. — Posso me sentar?
— Claro — respondeu a menina sem hesitar. — Seja bem-vindo. Aceita um cálice de licor?
O rapaz se sentou e tomou um gole da bebida oferecida. Em seguida, encarou-a intensamente coçou uma pinta que tinha em cima da sobrancelha e, sem medir palavras, desfechou:
— Corrija-me se estou enganado: você é Marl Debiene. Antes do asteróide ser atingido pelas moscas e ser cuspido para fora do sistema você fez um upload de si mesma para este novo corpo cibernético que a esperava em sua espaçonave.
A jovem corou, mas não se animou a negar.

— Gostei do disfarce. Ser Marl Debiene devia ser muito aborrecido — prosseguiu ele. — Toda aquela gente babando à sua passagem...
— Blind Faith, 1969 — murmurou ela. — Uma imagem que eu tinha guardada em um antigo banco de memória.
O rapaz prosseguiu:
— Venho acompanhando a sua trajetória já há muito tempo. Trajetória admirável, é importante dizer. Você conseguiu o que muitos de nós sequer tentamos. Marl Debiene é uma lenda exemplar em nosso meio de moleques de recados interplanetários.
— V-você...? — balbuciou a jovem.
— Sim, também sou um Mensageiro. Assim como outra dezena de mensageiros fracassados que conheci em minha longa jornada por esses mundos infames. Em sua maioria, eram criaturas tristes e amarguradas. Você sabe como nós, máquinas, nos sentimos quando não conseguimos realizar a tarefa para a qual fomos programadas.

A jovem balançou a cabeça e sorriu.
— Assim como todos os outros mensageiros que conheci, também desisti de minha missão — prosseguiu o rapaz. — E não me lembro quanto tempo faz desde que joguei o pendrive contendo a suma da Mensagem de meus criadores na latrina de um banheiro público em Cestlan.
A jovem arregalou os olhos.

— V-você teve coragem?
— E apertei a descarga durante um bom tempo, até aquela porcaria descer pelo ralo.
A garçonete chegou com a comida. Ao dar com o recém-chegado, porém, apoiou a bandeja na mesa ao lado, fez uma careta exagerada, levou as mãos à cintura e, com o tradicional mal humor dos nativos de Buorni, declarou:
— Arranjo-lhes outro prato e outro jogo de talheres. Mas vou logo avisando que refeição dividida sofre acréscimo de trinta e cinco por cento — em seguida, jogou a comida sobre a mesa, deu-lhes as costas e caminhou rapidamente em direção à copa.
— Essa gente é completamente doida — disse ele girando o indicador a redor de uma orelha. — Não há nada a fazer por aqui... a não ser se divertir.
A jovem sorriu e ergueu a taça. Ambos brindaram.
— Então, vamos nos divertir — disse ela após o gole. — Tem alguma sugestão?
O rapaz sorriu como se já esperasse pela pergunta.
— A estação de esqui em Dagnas está apenas começando. E haverá uma corrida de balões de alto desempenho em Podel na próxima semana.
A jovem sorriu.
— Esportes radicais, hein? Mal posso esperar.
O rapaz se levantou. Ela repetiu o gesto. E, para desespero da garçonete que já voltava com o prato e os talheres, saíram pela porta da frente sem nem mesmo tocar na comida.

FIM

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