segunda-feira, 16 de maio de 2011

As moscas


NUNCA UM VIAJANTE HAVIA DEITADO os olhos sobre aquilo e, portanto, aquilo continuava ali, intocado, havia tanto tempo que ninguém mais se lembrava quanto. Segundo a palavra dos sábios, ouvida da boca dos sábios que os precederam, aquele antiqüíssimo complexo arquitetônico deveria ser para sempre ignorado, assim como os seus misteriosos construtores. Exatamente por isso, nossos irmãos do Outro Lado, reverentes e supersticiosos, construíram as suas cidades e traçaram as suas estradas ao largo das imensas ruínas e ninguém ousava desafiar a proibição ancestral, que fora mantida e respeitada pelos séculos dos séculos.
   Certo dia, porém, como era inevitável, um visitante extraviado deu com as malditas ruínas. E descobriu que eram muito antigas; e que haviam sido habitadas por uma misteriosa cultura alienígena que ali florescera havia muitos milhões de anos e que se extinguira de uma hora para outra, por motivos jamais esclarecidos.
   De fato, as ruínas impressionavam. Construídas com um mineral duríssimo, desconhecido no planeta, espalhavam-se por milhares de quilômetros quadrados e eram absolutamente indestrutíveis. A maioria dos arcos, portais, colunas, assim como vastas seções das muralhas, eram peças inteiriças, sem juntas ou encaixes de qualquer natureza, e pesavam dezenas de milhões de toneladas cada uma. É difícil crer que tenham sido transportadas de um outro planeta até o lugar onde estavam, embora a ciência ainda não nos tenha contemplado com outra alternativa mais lógica.
   Da mesma forma, os estudiosos nunca chegaram a um acordo de como ou para que haviam sido erguidas. O que se sabia é que a chamada “esplanada”, a parte que aflorava terra acima, fora utilizada como moradia e local de trabalho durante milhares de anos, embora não tenhamos certeza se os moradores foram as mesmas pessoas que construíram aqueles edifícios ou uma outra cultura ali estabelecida posteriormente. Já, a parte subterrânea — que englobava mais de dois terços de todo o conjunto arquitetônico — continuava indevassável, imersa em especulação e mistério. O que haveria ali dentro, afinal de contas? 

   Os belos glifos que decoravam a estrutura poderiam ser uma boa pista mas nunca foram decifrados embora hoje reste pouca dúvida de que queiram dizer algo do tipo: “dê o fora daqui enquanto pode” ou “aconteça o que acontecer, não toque em nada”.
   Até então, nunca fora possível romper o lacre e abrir alguma das eclusas que permitiam acesso ao interior dos edifícios. Da mesma forma, os radares e sensores jamais conseguiram penetrar a espessa blindagem e não detectaram outro som vindo dali de dentro senão um zumbido remoto, algo que, devidamente amplificado, soava como uma máquina muito bem azeitada trabalhando a todo vapor.
   Embora inextricáveis para a ciência, as ruínas eram um fascínio irresistível para o público leigo e não tardaram a atrair milhões de visitantes vindos de todos os planetas do sistema. Foi um período de vacas gordas para os nossos irmãos do Outro Lado, que ainda não haviam sido remanejados para os guetos polares e viviam de alugar abrigo aos visitantes.
   Dada a escassez de recursos e a chegada inesperada de tanta gente nesses tempos pioneiros, um mero bife de gulimar — sem molho ou acompanhamento — chegava a ser posto à venda pela exorbitante soma de cinqüenta créditos, fora impostos. E ainda assim eram disputados a tapa pelos estrangeiros famintos.
   Efeito inevitável, o fluxo contínuo de visitantes chamou a atenção dos empreendedores imobiliários, que desfiguraram para sempre aquele outrora bucólico reduto agro-pastoril, substituindo-o por complexos hoteleiros, cassinos, parques temáticos e um gigantesco espaçoporto para naves de cruzeiro, construído às pressas ao largo das famosas ruínas.
   Os estudiosos reclamaram do tumulto, chamando atenção para os inconvenientes provocados pelo excesso de leigos num sítio arqueológico daquela importância. Também advertiram quanto ao potencial risco de vida para os visitantes, uma vez que ainda não se sabia qual o conteúdo das ruínas. Mas havia muitos interesses em jogo e, infelizmente, os protestos caíram no vazio.

Alguns dizem que foi um menino de Macbuda quem inadvertidamente descobriu como abrir as eclusas. Outros atribuem o fato a algum dispositivo de tempo programado pelos próprios construtores das ruínas, o que não parece lógico mas é tese de não poucos adeptos entre nossos idiotas mais empedernidos. A maioria, porém, pouco se importa de quem é a culpa. O fato é que as eclusas foram abertas, as moscas foram soltas e a vida nunca mais foi a mesma daquele dia em diante.
   Chamamos estas pragas de “moscas” pela forma alada que assumem em nossos mundos. Há viajantes que reportam terem visto moscas sem asas em planetas inabitados onde a gravidade ou as condições atmosféricas inviabilizavam o vôo de pequenos organismos. Em realidade, seus corpos são carapaças de matéria inorgânica, resultados da reciclagem de sucata, lixo eletrônico, resíduos de minério de ferro, às vezes brita de granito e, raro mas nem por isso menos destrutivo, com cabeças de materiais mistos e extremamente abrasivos, capazes de cortar qualquer coisa, dura que seja.
   A “vontade” da mosca, que é como os cientistas chamam a alma do bicho, é uma micropartícula de matéria paradimensional — que não chega a ser antimatéria mas causa um estrago parecido — criada artificialmente por alguma inteligência pervertida de algum universo paralelo, com o único propósito de infernizar a vida de outras criaturas — algo assim como um vírus de computador, só que muito mais destrutivo e duradouro.
   A “vontade” não pode ser destruída. Para tanto seria necessário anulá-la com uma partícula exatamente oposta, tarefa fácil de ser enunciada no papel, mas impossível de ser realizada na prática. Afora a complicação envolvida na importação de partículas paradimensionais, pequenas que sejam, vá lá você adivinhar qual o exato anti-universo do universo de onde estas pragas vieram! Todas as tentativas neste sentido foram inúteis, isso para não mencionar o grande Fiasco de Ramelli, cientista que não apenas falhou na tentativa de erradicar as moscas como também, acidentalmente, dotou-as do dom da ubiqüidade.
   As moscas sabem quando estão sendo observadas e são programadas para fornecerem falsos padrões de comportamento àqueles que as estudam. Até agora foi impossível erradicá-las, mas é impossível conviver com elas. Certamente por isso foram aprisionadas naquela gigantesca e indevassável fortaleza e lançadas para longe do lugar de onde vieram. Talvez seja essa a única maneira de controlar a praga que já se espalha por diversos planetas, em surtos cada vez mais freqüentes e devastadores. Resta-nos descobrir como os construtores das ruínas fizeram para reunir todas na mesma arapuca. E, uma vez todas lá dentro, como fizeram para selar as eclusas.
   Que mal nos fazem? Vários. Desde os mais clássicos, aqueles que se esperam das grandes pragas das escrituras, até outros mais modernos e específicos, como desatarraxar porcas e parafusos, arrancar pregos, abrir e fechar fechaduras, apertar botões, puxar alavancas, inverter correntes elétricas, provocar incêndios, explosões e desmoronamentos, e uma infinidade de outras tarefas especializadas, tudo isso apenas pelo prazer de atrapalhar os negócios dos outros.
   Leia os jornais:

“Super-transoceânico Lappenranta desmontado em pleno cruzeiro por um enxame de moscas-engenheiras. Perda total. Vinte mil mortos.”

“Vazamentos provocados por moscas cabeça-de-broca ameaçam provocar o rompimento da represa da hidrelétrica de Trullupin, maior reservatório de água potável de Pi. Técnicos trabalham dia e noite mas as moscas são mais rápidas e estão ganhando terreno. Cidades no vale evacuadas às pressas.”

“Piloto de provas da força-aérea de Mug, Ten. Durhumant Treveil, duas mil e quinhentas horas de vôo. Cuspido da aeronave enquanto ainda parqueava na pista, por uma mosca-co-piloto que puxou a alavanca de seu assento ejetor. Coluna partida à altura da sétima vértebra. Optou pela eutanásia auto-assistida.”

“Megashow de Marl Debiene em Frontisterra interrompido por ataque maciço de milhares de moscas paradimensionais de diferentes especialidades. Incêndios, tiroteios, pânico. Mais de dez mil espectadores mortos. Artista fora de perigo.”

“Dois mil iguanodontes abatidos em Savana, Pt. Saúde pública em estado de alerta. Moscas-projéteis são feitas de platina e podem alcançar mais de cinco mil quilômetros por minuto. Cientistas ainda não sabem o motivo das repetidas chacinas. Espécie parece ser alvo de perseguição específica. Risco de extinção.”

“Descoberta variedade de micromosca-agulha capaz de penetrar na corrente sangüínea e se alojar no cérebro do hospedeiro. Três casos diagnosticados em Harpagia, Mg. Vítimas imploram para serem sacrificadas.”


Da série Crônicas do Espaço Profundo

Um comentário:

Glauco disse...

Muito bom Alexandre, viajei com você e essas "moscas paradimensionais", ao mesmo tempo que fui instigado a descobrir o que escondia essas ruínas. Resuno da ópera: cavamos a nossa própria ruína.grande abraço.

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