sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Receita Básica

VOCÊ TEM UM SÍTIO, uma casa com quintal ou, mesmo, um apartamento avarandado? Ah, não tem varanda? Não importa. Quer reunir amigos, amores e outras afinidades? Nada mais agradável. E dispõe de tempo e paciência para superproduções culinárias? Bem oportuno. A tarde ensolarada de sábado é propícia para uma boa comemoração. Mas, conforme me dizia, quer mais que um almoço? Uma festa mágica, inesquecível? Disse mágica? Então vá buscar o caldeirão. Faremos uma grande bruxaria.
   E preciso esclarecer que este é um feitiço que não se prepara em poucas horas. Pede atenções de antevéspera. Os mais caprichados são engendrados com antecedência de semanas. Tudo nesta arte é questão de detalhes aparentemente desprezíveis mas que podem representar a diferença entre a delícia e o desastre. Um grau a mais ou a menos e timoneiro e navio vão para o beleléu.
   Antes de começar, é preciso compor uma lista de convidados “idôneos”. Há quem sofra de dispepsia? Outro acolá é vítima de flatos? E aquele velho amigo tem problemas com a úlcera estomacal? Então, nada feito. Talvez um cozido geriátrico esteja mais de acordo. Esta mágica requer organismos fortes, disciplinados, sem problemas de digestão.
   Convidada a turma — de preferência com semana de antecedência — é guardar a preguiça para a sobremesa e pôr mãos à obra.
   Em seu livro História da Alimentação no Brasil, Luís da Câmara Cascudo afirma que “a feijoada não constitui um acepipe mas um cardápio inteiro”. A verdade se aplica também ao trabalho que exige de quem quiser preparar. E trabalhosa, mas não é difícil, complexa por ser tão simples, mas passível de sair a contento caso haja boa vontade.
   Como todo prato popular, admite milhares de variações. Cada família tem uma receita diferente e cada região do país lhe empresta cores locais. No Nordeste, por exemplo, é feita com feijão-mulato, legumes, e lembra a feijoada do Benin, país da África Ocidental. No Rio, São Paulo e Minas, é preparada à base de feijão-preto e carnes salgadas de porco e a introdução de qualquer legume incorre em louca heresia. No Pará, além da feijoada convencional, há também a maniçoba, onde o feijão é substituído pelas folhas da mandioca brava, cozidas por mais de 24 horas para curar suas letalidades.
   Que me perdoem os ufanistas, mas o prato não é exclusividade nacional. Os franceses têm o cassoulet, originário da cidade de Toulouse, que mistura feijão branco, lingüiça, paio, toucinho, carne de cordeiro e pato. Os judeus — que não comem porco — se maravilham com o tcholent, feito com feijão-branco, carne bovina e frango. Já os angolanos fazem a sua gingumbada com feijão-preto, amendoim e salgados de porco. Enfim, misturar feijões com carnes fortes e bem refogadas é um costume universal. Entretanto, a despeito de toda concorrência, é difícil imaginar prato mais brasileiro: a farofa aborígine, o parentesco com o cozido português, a substância das comidas africanas...
   Em se falando de africanidades, cabe aqui um desmentido. Diz-se, — geralmente para impressionar os gringos — que o prato foi invenção de escravos. Conta a lenda que os cativos recebiam dos amos apenas feijão e as partes menos nobres do porco para preparar as suas refeições. Daí o aparecimento da primeira feijoada, fruto da habilidade culinária do negro e da mesquinhez do homem branco. Infelizmente não é verdade, apesar de bem apanhado.
   Mestre Antônio Houaiss garante que o prato veio das ilhas do Cabo Verde, e Câmara Cascudo, com autoridade de historiador, afirma: “Essa feijoada completa terá pouco mais de meio século. Até finais do século 19 e primeira década imediata não havia nascido para a extensão nacional com tais roupagens de vegetais e carnes... Nenhum informante fala-me dessa feijoada à volta de 1900.” E acrescenta: “O feijão com farinha é indígena e com carne guisada, refogada, é português, cozido conjuntamente quando da feijoada mais vulgar, carne-e-feijão. O escravo negro, recebendo os elementos separadamente, adotou o modelo ameraba... Por isso, o que chamamos ‘feijoada é uma solução européia elaborada no Brasil.”
   Em meio a tanta variedade e disputas de filiação, vamos nos ater à clássica feijoada completa tal e qual é preparada na Região Sudeste: feijão-preto, carnes salgadas de porco, arroz, farofa e couve, tudo isso regado com muita caipirinha, cerveja e, para os abstêmios, sucos de frutas.
   Acertado o estilo, vejamos os ingredientes, que somam mais de vinte como todo bom feitiço que se preze. O inesquecível Sérgio Porto costumava dizer que uma feijoada só estava completa quando havia uma ambulância de plantão estacionada à porta. 
   Portanto, a lista de compras de uma verdadeira feijoada completa não pode deixar de ter os seguintes ingredientes: carne-seca, orelha salgada, costela salgada, chispe, lombo salgado, toucinho defumado, língua defumada, toucinho salgado, paio, lingüiça portuguesa, lingüiça calabresa rabo salgado, torresmos, feijão preto, arroz, farinha de mandioca, alho, cebola, ovos, laranjas, bananas, molhes de couve, pimenta-malagueta fresca ou em conserva, uma ambulância.
   De véspera, é preciso catar os feijões, lavá-los bem e, em seguida, deixá-los de molho em muita água fria. É nesta imersão que os feijões estufam, quase brotam, ganhando uma consistência amanteigada. Feito isso, cabe tratar das carnes. Separe os defumados em um canto seco e arejado — estes não dão muito trabalho — e atenha-se aos salgados: retire os excessos de gordura, corte as costelas uma a uma, e as demais carnes em pedaços não muito grandes nem muito pequenos, de modo que não sejam incômodos de manejar no prato nem se dissolvam no cozimento. Lave estas carnes muito bem, em água corrente, e deixe-as de molho em uma vasilha grande, cuidando de trocar a água pelo menos três vezes durante a noite. Há quem costume ferver as carnes, com a desculpa de assim apressar o processo de dessalinização. O método não é aconselhável porque, com a água da fervura perde-se boa parte da gordura e do sabor das carnes. A feijoada sai raquítica, lavada, sem graça. Outros justificam a fervura como medida de assepsia. Ora, queiramos ou não, a feijoada não passa de uma grande e adorável “porcaria” e como tal deve ser comida. Tirar o porco da feijoada é como tirar do pão o grão: tarefa ingrata, senão impossível.
   Dia seguinte, é bom acordar cedo. A boa feijoada é feita em caldeirão aberto, rejeitando os recursos da panela de pressão; o que demanda tempo. O máximo que se admite é, em caso de feijões duros, amolecê-los na pressão por cerca de quinze minutos. Se for um feijão de boa safra, nem isso é necessário: poucas horas de fervura junto às carnes e pronto.
   Despeje os feijões no caldeirão com a água em que dormiram. Não jogue fora esta água. Caso contrário, o feijão sairá esbranquiçado, cor de chocolate ao leite. A boa feijoada tem cor de asfalto, e deve inspirar pavor a quem nunca a tenha visto. A boa feijoada deve ter uma aparência tal que espante os gringos.
   Enquanto o feijão cozinha, escorra a água das carnes, corte os defumados em pedaços e coloque tudo em uma grande frigideira. As carnes, que ficaram de molho de véspera, soltarão um pouco de água. Tire a panela do fogo e dispense esta água. Volte a panela ao fogo, acrescente uma colherada de gordura, acrescente a cebola e o alho e mexa bem, refogando. Quando a carne e a cebola começarem a dourar, derrame tudo no caldeirão. Atingida a ebulição, é abaixar o fogo e esperar a liga. O bom feijão não necessita de maceração para engrossar. Caso a água se esgote antes do tempo, acrescente mais água quente — nunca fria — à fervura.
   Não há por que se alongar na descrição do preparo dos complementos. O arroz deve ser branco, comum, com pouco sal. A farofa — que pode ser pura, com banana ou com ovo — deve ser frita na gordura dos torresmos. A couve pode esperar um pouco mais. Preparada com muita antecedência, murcha. Feita em cima da hora, atrapalha o andamento da cozinha. As folhas devem ser enroladas em maços, como rolos de tabaco,  e cortadas em tiras finas. Assim como a farofa, também deve ser refogada com gordura suína.
   Pouco antes de servir — não antes das quinze horas, como de praxe — distribua copinhos com o caldo do feijão. É um teaser irresistível que vai preparar corações e mentes para o que virá a seguir.
   Alguns separam as carnes do feijão antes de servir. Complexo de bufê. Coisa de gente que vai ao banheiro de pernas cruzadas. Feijão é no caldeirão, poucas formalidades. Que cada um pesque o seu quinhão como puder. O Hugo, da turma de Ipanema, ganhou o apelido de Bidet porque servia a sua feijoada nesta peça sanitária. Portanto, nada de frescuras. Traga o caldeirão borbulhante direto para a mesa, onde já devem estar o arroz, a couve, os torresmos, as laranjas descascadas, a banana em rodelas e a pimenta — macerada com caldo de feijão algumas horas antes.
   E é só. Agora depende de você e de seus convidados o bom andamento da comemoração. Se comerem pausadamente, decifrando sabores, escapam de uma futura indisposição. A feijoada bem saboreada provoca uma pasmaceira gostosa que se arrasta tarde afora até o princípio da noite. E nada além. Sede, peso no estômago, dor de cabeça, azia etc. são atestados inquestionáveis de feijoada malfeita. Fuja delas. Feita como descrito acima, não há o que temer. 
   O druida garante.

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