sexta-feira, 24 de junho de 2011

Moray

Google Earth

Moray é um parque arqueológico peruano, 50km a noroeste de Cuzco, situado em um platô a 3500m de altitude, a oeste da aldeia de Maras. O sítio contém ruínas incas incomuns, a maioria conformando imensas depressões circulares escalonadas em terraços de cultivo, a maior delas com cerca de 30m de profundidade. O propósito dessas depressões é incerto, mas sua profundidade e orientação em relação aos ventos e ao sol criam diferenças de temperatura de até 15 °C, entre o topo e o fundo. Possivelmente, essa grande diferença de temperatura foi utilizada pelos incas para estudar os efeitos de diferentes condições climáticas nas plantações. Em outras palavras, Moray provavelmente era um laboratório de experiências agrícolas. Assim como muitos outros sítios incaicos, Moray também tinha um sofisticado sistema de irrigação.” Wikipedia

Se, por um lado, os Incas impunham aos súditos um regime de virtual escravidão, por outro garantiam boa qualidade de vida para todos. É verdade que os senhores de Cuzco não agiam assim por mera e desinteressada boa vontade. Eles sabiam que um povo mal-alimentado não produzia adequadamente e, portanto, não gerava os excedentes necessários à manutenção de elites abastadas. Mas não seria exagero afirmar que não havia fome na América Andina antes da chegada dos espanhóis e que talvez nunca tenha havido império de gente mais bem nutrida em toda a História da humanidade.
Tamanha prodigalidade pode levar o leitor a pensar que o território sobre o qual os incas estenderam os seus domínios era um tipo de paraíso terrestre, o que está longe da verdade. Citando o economista francês Louis Baudin, “ali tudo era inferior, exceto o homem”. Do litoral árido, em permanente estiagem, às estepes geladas do altiplano, não havia um único terreno em todo o Império que pudesse ser chamado de adequado à agricultura em larga escala. Para conseguir o milagre da abastança, os povos andinos foram obrigados a prover, com muito trabalho, aquilo que a natureza lhes negava.
Enganam-se também os que pensam que os incas eram meros produtores e distribuidores de alimentos ao atacado. Tubérculos e grãos não passavam do combustível de sua gigantesca máquina política. Grosso modo, o Tahuantinsuyu era um império movido a batata. Mais que isso, porém, era uma imensa fábrica especializada em transformar trabalho em civilização.
Os extensos contingentes de mão de obra à disposição do Inca não só garantiam a produção de excedentes agrícolas e bens de consumo, como também a realização de obras públicas de grande envergadura como cidades, estradas, aquedutos, silos e templos — além, é claro, de permitirem a expansão do Império, graças à manutenção de exércitos numerosos, praticamente imbatíveis e permanentemente renováveis.
Metodificando e aperfeiçoando a milenar experiência agropecuária andina, os sábios incas conseguiram avanços sem precedentes no campo da agricultura, da bioquímica e da genética, criando um sofisticado modelo físico-matemático-biológico da natureza — natureza que estavam a ponto de compreender e dominar quando o seu imenso jardim de experiências foi subitamente atropelado por uma horda de bárbaros desnutridos com gengivas apodrecidas de escorbuto.

À primeira vista, Moray não era muito diferente de outras pequenas comunidades agrícolas do Vale Sagrado. Espalhava-se por uma fértil planície, a mais de três mil metros de altitude, caprichosamente debruçada sobre o rumoroso Urubamba. As casas eram simples, de adobe e palha, e havia meia dúzia de depósitos públicos, tão modestos quanto era modesto o povoado.
Contudo, em comparação à urbana Cuzco, de montanhas estéreis e acinzentadas, Moray gozava de paisagem privilegiada. Dali, podiam-se observar os nevados da Cordilheira Oriental, ciclópica muralha a separar o corredor andino dos baixios amazônicos. O vilarejo era cercado de colinas de suaves e floridas encostas, cortadas por amplos patamares de cultivo e bem-cuidados canais de irrigação.
Rural, pastoral, singela, engastada em meio a uma paisagem de sonho, Moray de fato não passaria de mais um modesto vilarejo perdido no meio da Cordilheira dos Andes, não fosse engendrada ali a grande mágica do Tahuantinsuyu.

Google Earth/Panoramio
A vila era habitada por uma elite de sábios-agrônomos, os eminentes pachamamata ruruchinampacs, um número reduzido de discípulos cuidadosamente selecionados nas escolas de Cuzco e uma população heterogênea de camponeses yanas de diversas origens, que habitavam uma comunidade-modelo no interior do grande complexo.
Em Moray, trabalhava-se em tempo integral e não se falava de outra coisa senão de sementes, brotos, espigas, raízes, adubos, podas, irrigação, aquedutos, meteorologia, instrumentos agrícolas, combate a pragas e outros assuntos relacionados ao “fazer germinar a terra”. A discussão teórica era inevitavelmente complementada pela experiência prática, e não havia engenheiro agrônomo que saísse dali sem ter as mãos calejadas pelo arado, conhecendo todas as benesses e agruras da vida camponesa.
Moray era também uma fantástica usina de engenharia genética. E, apesar da modéstia do casario de adobe, o centro era caracterizado por um prodígio arquitetônico digno de figurar entre as Sete Maravilhas do Mundo.
O complexo situava-se a meia hora de caminhada do povoado e compreendia quatro curiosos conjuntos de patamares de cultivo que, em vez de seguirem as encostas das montanhas como os patamares tradicionais, ornavam o interior de profundas crateras artificiais, em círculos concêntricos regularmente espacejados que, em vista aérea, lembram arquibancadas de um anfiteatro de gigantes.
  Cada um desses conjuntos de patamares circulares era irrigado por uma complexa rede de aquedutos e dispunha de sistemas de drenagem que não permitiam a formação de poças ao fundo das crateras. Dada a diferença de altura e o seu formato, cada patamar simulava um microclima particular, o que permitia a criação e a aclimatação de novas cepas de vegetais, perfeitamente adequadas às regiões do continente a que eram destinadas. Ali foram engendradas centenas das seiscentas e tantas variedades de batata que existiam no Tahuantinsuyu e sabe-se lá quantas variedades de milho, além, é claro, de novos protótipos de coca, originalmente amazônica, então já devidamente aclimatados às altitudes andinas. (...)
  Mas não nos detenhamos na descrição pormenorizada dos longos anos de estudo que transformaram o jovem Lloque em um experiente administrador estatal. Digamos apenas que foi instruído em procedimentos agrícolas sofisticados, como o uso de fertilizantes e técnicas para acelerar a germinação das sementes; que aprendeu a prognosticar mudanças climáticas com enorme antecedência e com uma precisão de fazer inveja aos nossos mais sofisticados serviços meteorológicos; que se especializou na construção de aquedutos, canais, represas e poços artesianos; que se familiarizou com métodos de conservação, armazenamento e transporte de alimentos, construção de silos, terraplenos e terraços de cultivo.
  Digamos que, por fim, acabou compreendendo a grande dança da redistribuição de excedentes, as complexas leis de reciprocidade em vigor no Império e o modo de usar a produção para manter o grande sonho do Tahuantinsuyu — sistema do qual acabaria se tornando um dos principais e mais ativos colaboradores.
Inca, Alexandre Raposo, Record, 1997

Um comentário:

Anônimo disse...

Super interessante. Vou pesquisar mais a respeito para mostrar para minha filha de 9 anos, que está estudando sobre o efeito do clima nas plantações. Acho que será inspirador para ela, assim como tudo que vocêe screve, é para mim.

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