sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mundo gato


HÁ MUITO E MUITOS ANOS, QUANDO os bichos ainda falavam, estabeleceu-se o seguinte diálogo entre um homem e um gato:
– Você sabe o que fez hoje? –  perguntou o homem.
– Vomitei – respondeu o gato.
– E diz isso com tal naturalidade?
– Gatos vomitam, você sabe.
– Não me refiro ao vomitar propriamente dito – disse o homem, visivelmente irritado. – Sabe aonde você vomitou?
– Em cima dos equipamentos eletrônicos da sala – respondeu o gato sem hesitar.
– E da capa do meu livro predileto... – acrescentou o homem.
– Que estava fora de lugar, em cima do aparelho de blu ray, que também foi atingido – concluiu o gato.
– Exato – disse o homem, contendo-se para não explodir.
– E agora deseja saber por que fiz isso.
– Obviamente.
O gato ajeitou-se sobre a prateleira de DVDs, rabo oscilando caprichosamente sobre a tela do monitor LED.
– Tenho bons motivos – disse ele. – Veja você: nós, gatos, somos animais muito limpos. Ninguém precisa nos ensinar aonde fica a caixa de areia. Não fedemos como os cachorros, mas também não precisamos tomar banho. Desde muito pequenos recebemos de nossas mães aulas intensivas de higiene e assepsia. Além disso, e ao contrário do que dizem as más línguas, somos muito leais e realmente amamos e respeitamos os nossos donos. Por isso, no dia em que um gato fizer sujeira no tapete da sala, pode estar certo de que ele esta à morte. Ou, então, que está muito, muito, mas muito aborrecido com você.
– E você está à morte ou muito aborrecido comigo? –interrompeu o homem com impaciência.
– Calma, não terminei o raciocínio – disse o gato enquanto coçava o pescoço com a pata traseira espalhando pêlos sobre os aparelhos da prateleira de baixo.
– Ora, seu saco de pulgas! Com quem pensa que esta falando?
– Contudo, a higiene cuidadosa de nossos corpos não passa de uma entre milhões de outras regras de sobrevivência que seguimos ao pé da letra desde tempos imemoriais. Graças a essas regras nós, gatos, frágeis que somos, conseguimos atravessar as eras e estamos tão disseminados pelo mundo. Somos sobreviventes. E, ao contrário de vocês, não estamos à beira da extinção.
– Fascinante – murmurou o homem enquanto tentava limpar os botões do equipamento de som.
– Não pretendo aborrecê-lo enumerando tais regras. Além do que, muito do que dissesse seria absolutamente incompreensível para um ser humano. Basta dizer que uma das regras mais sagradas que nós gatos preservamos desde o princípio dos tempos prega que “um gato deve sempre vomitar sobre as coisas mais preciosas de seus donos.”
– C-como? – exclamou o homem, atônito.
– Os gatos de Cleópatra vomitavam sobre as jóias dela – continuou o gato. – Os gatos de Liz Taylor também. Os gatos de Lady Gaga vomitam sobre as suas roupas de couro; e ela gosta.
– M-mas por que fazem isso?
– Muito simples. É claro que poderíamos vomitar em lugares mais convenientes, senão na caixa de areia, o que seria repugnante, ao menos no banheiro dos fundos, perto do ralo para facilitar a limpeza. Mas, se o fizéssemos,  estaríamos cometendo um erro terrível, que poderia nos custar a boa vida de que desfrutamos ao lado dos seres humanos.
– Não compreendo.
– Se eu vomitasse comportadamente, digamos, no tanque da área de  serviço.
– Ótima idéia! – animou-se o homem.
– Nada disso, péssima idéia. Tenho certeza de que logo você estaria brigando comigo da mesma forma. No fundo, o que os seres humanos realmente querem é que os gatos não vomitem nunca. Mas isso é impossível. Vomitar é uma de nossas regras de sobrevivência. Se não vomitamos, morremos entupidos por nossos próprios pêlos. Já ouviu falar em fecaloma?
– Porque se lambem compulsivamente!
– O que também é vital para nós.
– Mas se você podia vomitar em outros lugares, por que foi fazê-lo justamente sobre o equipamento eletrônico que eu acabei de comprar?
– Simples – respondeu o gato. – Quando eu vomito na sala de estar, sobre as suas coisas queridas, você briga comigo e me põe de castigo na área de serviço, certo?
– Certo.
– Mas se eu vomitasse na área de serviço, onde você me poria de castigo? Certamente me colocaria porta afora ou me atiraria pela janela da sala, não e mesmo?
O homem ficou sem resposta.
– Por isso – disse o gato em meio a um bocejo. – fique tranqüilo. Vou continuar vomitando nas suas coisas queridas, você vai continuar me prendendo na área de serviço e viveremos felizes assim, até que a morte nos separe...
E como quem sela um acordo de cavalheiros, saltou da prateleira, ganhou o chão  e correu para a área de serviço a trote de retirada.

Um comentário:

ana maria santeiro disse...

folgado, esse gato!

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