sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Piadas ilustradas I


“Mas Manoel... e o cheiro?”
“Acho que o gambá aguenta Maria.”
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Quadro O Fado, de José Malhoa

 

sábado, 22 de janeiro de 2011

Casa no campo II


COMO JÁ DISSE NO PRIMEIRO POST  desta série, viver no campo é tudo aquilo que a gente imagina... e uma infinidade de outros coisas que a gente não faz a menor idéia. Tanto para bem quanto para mal.  Em segundo lugar no ranking dos principais perrengues enfrentados por quem decide dar uma de Zé Rodrix e se enfiar em uma casa no meio do mato, estão as pragas e peçonhas com quem temos de compartilhar a paisagem. Enumerá-las uma a uma tornaria este post muito extenso, de modo que me aterei àquelas mais incômodas, destrutivas e perigosas:

MOSQUITO PÓLVORA
Praga microscópica de uma periodicidade irritante, que ataca às 15h em ponto.  Quem não é alérgico sente apenas um comichão na pele, um ligeiro ardor, nas quem é sensível à sua baba fica todo embolotado. Curiosidade: o mosquito-pólvora obedece rigorosamente ao horário de verão e, ao contrário de nós, humanos, que precisamos de alguns dias para nos adaptarmos à novidade, ele imediatamente corrige o horário de seus ataques. Por ser tão chato, tão pontual e tão metódico, há estudiosos que acreditam que a praga deva ser originária da Inglaterra. Mas há controvérsias.

CARRAPATO
Todo mundo conhece carrapato e, alguma vez na vida, já teve de lidar com a criatura, seja ela o carrapato comum ou aquele, menorzinho, pervertido, que aparentemente tem graves desvios psicológicos de natureza sexual. Na roça, porém, com tanto cavalo e boi dando sopa, o negócio de carrapato é mais profissa. Já falei aqui de carrapatos quase do tamanho de sapos, o que não é fábula. Os bichinhos ficam bem grandotes nessa época do ano embora sejam muito mais incômodos no inverno, quando ainda são bem pequeninos, e os chamamos de micuins. Afora o sangue que nos suga, o carrapato ainda é transmissor de uma doença terrível, que pode ser mortal para animais de estimação: a erlichiose.

BERNE
Suplício de cães e gatos, nojento e monstruoso, o berne é uma criatura carnívora invasora de corpos. Obviamente veio do espaço, muito provavelmente do mesmo planeta de onde veio o Alien da famosa série cinematográfica. Não é comum em seres humanos, mas é bom não facilitar.
 
PRAGAS DE FRUTAS CÍTRICAS
Tenho três laranjeiras adultas e um pé de tangerina adolescente e, nos últimos dois anos, lutei contra nada menos do que seis pragas diferentes que atacavam ciclicamente as minhas cítricas: formigas carregadeiras, formigas-pecuaristas, pulgões brancos e pretos, vespas e lagartas. Dessas, as mais interessante são aquela que chamo de formigas-pecuaristas, que instalam pulgões nas folhas mais jovens. Os pulgões sugam a seiva das folhas, que tornam-se atrofiadas e enrugadas. Em compensação, segregam uma seiva doce que é considerado um verdadeiro manjar pelas formigas, que cuidam de seus pulgões como fazendeiros tratam de seu gado leiteiro. Chega a ser comovente o cuidado que têm com suas reses, conduzindo-as a lugar seguro durante as chuvas, evitando que se extraviem, protegendo-as de predadores, etc. E isso também não é fábula.

ARANHA ARMADEIRA
Não é mortal e, em doses moderadas — ou seja: caso você leve poucas picadas — não produz necrose de tecido. Dói um bocado, mas passa logo depois. Costumam entrar em casa em dias muito quentes. Ainda assim, não tenho coragem de matá-las. Prefiro enxotá-las porta afora com um banquinho e um chicote.

JARARACAS
São muito discretas, muito silenciosas, muito low profile, preferindo sair à noite e evitar a companhia de seres humanos. Pero que las hay las hay. Sempre que mando capinar o terreno lá embaixo, perto da porteira, os capiaus matam umas duas ou três bem grandinhas. Muito perigosas para animais domésticos. Neste exato momento, minha gata, a Pipoca, está no veterinário, recebendo soro antiofídico depois de ter sido mordida no focinho. Segundo o veterinário, tem boas chances de sobrevivência, embora o risco de morte não esteja descartado.

E durma-se com um barulho desses! 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Dar nome aos gatos

Recentemente publiquei aqui um post sobre o novo gato de nossa trupe, e uma explicação meio capenga de por que o chamamos de Bruce — que, de resto, é um nome horroroso. Realmente, como quer o poeta, dar nome aos gatos é tarefa cabeluda. Nesse pouco tempo de convívio, nosso novo gato deixou muito claro que detestara o apelido, recusando-se a atender a qualquer outro nome que não seja o de Pississiu. Daí, por força, das circunstâncias, fica aqui a retificação. Aproveitando a oportunidade, publico abaixo uma tradução livre de um poema de T.S. Elliot que trata amiúde desse tema, tão importante e transcendental:

Dar nome aos gatos é assunto complicado
Não se trata de uma diversão de fim de semana;
Você pode pensar que estou louco de pedra
Se eu lhe disser que um gato deve ter três nomes diferentes.
Primeiro, há o nome que a família usa diariamente,
Como Pedro, Augusto, Alonso ou Jaime,
Como Vitor ou Jonatas, Jorge ou Beto Carreiro,
Todos nomes francamente comezinhos.
Há nomes mais elaborados
se você achar que soam mais agradáveis,
Alguns para cavalheiros, outros para damas:
Como Platão, Admeto, Eletra, Demétrio...
Mas todos nomes francamento comezinhos.
Mas eu lhes digo,
um gato precisa de um nome que lhe seja particular,
Um nome peculiar e mais digno,
De outro modo, como manterá a cauda ereta,
Como esticará os seus bigodes ou exaltará o seu orgulho?
De nomes assim posso lhes dar uma lista,
Como Munkustrap, Quaxo, ou Coricopat,
Como Bombalurina, ou Jellylorum...
Nomes que nunca pertenceram a mais de um gato.
Mas acima e além desses resta ainda um nome,
E esse nome você jamais ira adivinhar;
Um nome que nenhum pesquisador humano jamais descobrirá.
Mas o gato sabe, e jamais abrirá mão desse segredo.
Quando você notar um gato em meditação profunda,
A razão, eu lhes digo, é sempre a mesma:
Sua mente esta ocupada em absorta contemplação
Pensando, pensando, e pensando em seu nome:
Seu inefável efável
Efainefável,
Profundo e inescrutável nome singular. 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Por que deixei o Rio-Match


O texto a seguir foi uma sátira que escrevi para compartilhar com meus colegas da falecida revista Manchete, onde trabalhei como redator em diversas ocasiões entre 1983 e 1990. Deve ter algum valor documental, já que fala de um tempo em que os jornalistas ainda trabalhavam com máquinas de escrever, os layouts eram de papel — tiras de texto coladas com cola de sapateiro — e as fotos das matérias vinham em forma de diapositivos, dentro de saquinhos de papel manteiga, que tínhamos de olhar com conta-fios sobre as mesas de luz.

DIZER QUE O CLIMA ERA INSALUBRE dá vaga idéia do lugar. Se bem que, ao menos quanto ao panorama, era magnífico: vista espetacular da entrada da barra, a Guanabara toda ali, em seus dias e humores. Já os inconvenientes, eram inúmeros. O cheiro de formol, por exemplo. Também a sensação de se estar tentando mover um dinossauro mecânico emperrado — e emperrando junto com ele. Pássaros dôdos empalhados também compunham o quadro pré-histórico. De resto, era trabalho pra caralho à beça. Até aí tudo bem. Sacrifícios de início de carreira. Afinal de contas, apesar do salário irrisório, aquela revista ao menos ainda tinha nome. Mamãe costumava encher a boca e dizer: Meu filho é redator do Rio-Match!” Eu ficava mesmo era feliz em poder dar uma alegria à velha.
   O que me danou foram os macacos. Excesso de macacos.
   O primeiro saltou logo no primeiro mês. Veio e ficou por um bom tempo. Não me recodo de quantas extensas matérias redigi sobre o babuíno que doou o coração a uma menina recém-nascida, coisa terrível de filme de terror.
   Outros símios surgiram no caminho deste escriba. Os da nova versão de Tarzan — e que chamamos de suínos por erro de revisão — o que morreu na festa do 60º aniversário, o macaco piloto de provas de skate,  o macaco que falava com as mãos e era amigo de uma menina surda-muda, macacos albinos, macacos cobaias, macacos me mordam e outros mais.
   É claro que não agüentei muito tempo. Ao fim de sete meses, a pretexto de que estava horrorizado com o posicionamento político da revista — mentira, eu estava me lixando para aquilo! — pedi demissão: “Onde é a saída do inferno?” Não me deram. Em vez disso, me mandaram de volta para a revista erótica de onde eu nunca deveria ter saído. Também achei melhor. E a vista era a mesma.
   Mas me pediram um tempo: “Olha, estamos no aperto, revista fechando... fica mais um dia.” Cara legal, o chefe. Topei.
   Dia seguinte, último entre a macacada, cheguei exultante. Me dessem um romance e resumia em quinze linhas, fácil. E o chefe de redação: “Olha, tem uma matéria mole aqui para você. É  sobre a Chita do Tarzan.” Quase tive um troço, mas me contive. Aquele sujeito estava pisando no rabo da morte: “...que está fazendo 50 anos.” Me segurei, mandei um “tá legal” entredentes, raspei o layout de cima da mesa  e já estava começando quando ele gritou lá de longe: “Ah, sim tem mais um negocinho. A Chita não é a Chita... quero dizer, a Chita do Weissmuller é um macaco macho!” Aí eu explodi. Joguei tudo longe e avancei para ele, dedo em riste: “Chega! não faço porra de matéria de macaco nenhum! Você faz isso de propósito! Me arruma logo uma notícia dessa para estragar o meu último dia. Eu vou embora para minha revista que eu gosto mesmo é de sacanagem, morou?”
   Eu agüentei quase tudo. Mas sentia que se aceitasse aquela de macaco travesti, nunca mais sairia dali. Foi por isso que eu me mandei.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Lucy's

Os amigos mais próximos sabem que sempre fui fascinado por um certo seriado norte-americano da década de 60, o Twilight Zone, chamado de Além da imaginação aqui no Brasil. Aquele programa foi um fato marcante em minha infância e certamente influenciou o tipo de literatura que passei a produzir algumas décadas mais tarde. Não sou o único. O próprio Spielberg, para usarmos um exemplo de peso, era tão fã do programa quando menino que, depois de adulto, fez um longa metragem — aqui chamado de No Limiar da Realidade —  com refilmagens de quatro episódios da antiga série. De minha parte, modestamente, produzi a coletânea de contos fantásticos, Éden 4, minha resposta a uma infância embalada por invasões extraterrestres, almas de outro mundo e paradoxos de espaço-tempo. De certa forma, foi um tipo de catarse profilática.  
   O garoto dentro de mim, porém, pedia mais. Queria um episódio de verdade, nos moldes e no formato da antiga série, com direito, inclusive, a uma apresentação do próprio Rod Serling, o autor e diretor do programa, já há muito falecido. A brincadeira rendeu e pode ser apreciada no roteiro que segue:

EXT. PISTA. ENTARDECER.

Uma pequena pista de terra batida em meio a uma planície desolada. A câmera move-se para a esquerda, fechando sobre um hangar convencional, coberto de reluzentes folhas de flandres. A música Tail end Charlie, de Finegan, sobrepõe-se ao ruído do vento. Na fachada do hangar, um antigo letreiro de neon ganha vida, iluminando-se em meio a fagulhas e estalidos: LUCY’S. LUCY’S. LUCY’S...

De dentro do hangar, surge uma mulher jovem, loura, usando botas, óculos rayban, e casaco de couro preto com golas felpudas. A mulher se volta para a cabeceira da pista. A câmera fecha sobre o seu rosto. No reflexo de seus óculos vêem-se as luzes do primeiro avião.

O Lafayette La 43 pousa suavemente e estaciona à margem da pista. Ela ergue os óculos e sorri.

LUCY
Antoine!

Os dois se encontram a meio caminho entre o avião e o hangar, beijam-se apaixonadamente e, em seguida, voltam-se abraçados para a cabeceira da pista. No céu crepuscular, aproximam-se outros aviões, que aterrissam e estacionam um a um ao lado do Laffayete: um Messerschmitt Me 109, um Hawker Hurricane, um Supermarine Spitfire, um Norseman monomotor,  um Junker Ju 87, um B-17, um biplano vermelho com o emblema da Luftwaffe, um P-47 com emblema da FAB, etc.

As tripulações confraternizam e caminham para o hangar. Um pouco afastados, Lucy e Antoine acompanham a movimentação dos recém-chegados e são os últimos a entrar. A porta se fecha, a câmera move-se novamente para a pista e, embora o filme seja colorido, vê-se a figura em preto e branco de Rod Serling vestindo terno e gravata, sorriso irônico no canto dos lábios, cigarro aceso em uma das mãos, comme il fault.

ROD SERLING

Durante as próximas horas, diferentes gerações de heróis de guerra irão compartilhar uma merecida licença do front. Sua anfitriã, a encantadora Lucy Bryant. O ponto de encontro, um clube para pilotos veteranos que jamais voltaram para casa. Seu compromisso, um acerto de contas com o destino em uma região fora do espaço e do tempo, em um lugar Além da Imaginação

Carrapato de sapo

 
Vocês não vão acreditar, mas sapo tem carrapato. E dos grandes. Tão grandes que, às vezes, não sei se é o sapo que tem carrapato ou se é o carrapato que tem o sapo. Aliás, nunca vi carrapatos tão grandes em um bicho relativamente tão pequeno. Descobri isso assim que me mudei para cá. Durante algum tempo, só me compadecia dos bichinhos. Depois, resolvi ajudá-los. Sempre que passa um sapo com carrapato eu pego o pobre anfíbio, arranco o carrapato de suas costas e ele vai embora, todo serelepe e, certamente, profundamente aliviado. 
   Acho que já sei como preencher as longas noites de senilidade, caso lá chegue. 

sábado, 15 de janeiro de 2011

Jazz 24


GOSTO DE RÁDIO, SEMPRE gostei de rádio, sou um radio-gaga compulsivo. Quando criança, adorava sintonizar rádios de outros países em ondas curtas e curtia desde a programação da BBC londrina até os programas de música caipira que eram transmitidos pelas rádios paulistas logo cedo pela manhã. Durante a adolescência, em uma fase meio gótico-psicodélica, passava madrugadas inteiras ouvindo a Rádio Relógio: "Galeria Silvestre, a galeria da luz... Você sabia? Cachorro não tem lepra... Bip, bip, bip... Quatro horas, vinte e cinco minutos, zero segundo. Biiiiip."
   Com a chegada da Internet senti-me como uma alma fugida do purgatório para o paraíso. E, é claro, tornei-me um ávido ouvinte da miríade de rádios online que povoam o espaço virtual. Ouço de tudo, de salsa a clássicos, de techno a música medieval irlandesa, de programas de notícias a pastores eletrônicos argentinos, que são hilários. Informação, informação, informação... é inacreditável a força de que tem o rádio ainda nos dias de hoje. E, afora o Twitter, esse instrumento de digitadores complusivos para quem o objetivo primordial da vida é a postagem de notícias ou irrelevâncias antes mesmo delas terem acontecido, não há mídia mais instantânea.
   Tenho uma longa lista de boas rádios, virtuais ou não, que poderia passar para os meus leitores. Em vez disso porém, convido-os a conhecer aquela emissora entre todas que merece um ícone em minha área de trabalho: a Jazz 24 uma rádio universitária de Seattle com uma programação deliciosa, que alterna os grandes clássicos do jazz com ótimos músicos contemporâneos e tem espaço até para música instrumental brasileira, com ênfase para Bossa Nova lounge, se é que isso existe. Acessem o link e divirtam-se!

Após a publicação deste post, recebi uma mensagem de meu amigo Roberto Muggiati, um dos maiores estudiosos de música do país, me informando que a melhor rádio de jazz na web é a seguinte: Accujazz.com Fui verificar e, realmente, devo dar a mão à palmatória: a rádio é ótima. Mas o que abunda não prejudica: a Jazz24 também é uma ótima emissora virtual. Fiquemos com ambas.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Um time contra



Relíquia! O texto que segue pode ser considerado o marco zero de minha carreira como escritor de ficção. Com ele, concorri a um concurso de contos da revista Ele Ela que prometia uma passagem com estadia, tudo pago,  para assistir à Copa de 82 na Espanha... com a Xuxa! Assim como o time da historinha, quase ganhei a partida. Perdemos a Copa, eu perdi a Xuxa, o conto nunca foi publicado mas, em compensação, acabei chamado para trabalhar na revista. Comecei como estagiário e dali saí sete anos depois, como diretor executivo, para escrever meu primeiro romance e finalmente começar minha carreira literária.  

VIRA E MEXE E É HORA do vamos ver como é que fica, qualé a que vai ser. A bola na marca penal, o juiz venal, a torcida con­tra, e aquele goleiro sem-vergonha fazendo caretas para enervar. Faltando dois minutos para acabar o jogo, esse sendo o gol que decide tudo: o campeonato, sua vida e a de muitos. Você joga tudo nessa bola e a danada bate na trave, rola rente à linha do gol para cair, dócil, nas mãos do goleiro que, de repente, se tornou imenso (ou foi você quem diminuiu?). A torcida invade o campo, o juiz encerra a partida e, com aquele apito, liquida tam­bém a sua vida. Coisas do futebol.
   Este é um mundo de acasos. Tudo pode ser ou não, dependen­do, às vezes, de humílimas circunstâncias. Você pode dar certo ou errado independentemente de suas capacidades. A vida vive de conspirações e é sempre bom acender uma vela para cada. O se­gredo é não confiar nunca em nada.
   Formamos um time de cegos, aleijões, desengonçados, mas to­dos muito bons de bola. Somos o Time da Ladeira. Jogamos con­tra, sempre. Geralmente contra o Time do Alto. Jogamos contra eles, contra os paralelepípedos, contra a lei da gravidade... Somos um time contra. Perdemos muito, mas ganhamos também. So­mos um time contra, mesmo quando jogamos em casa. Aí, nesse ca­so, jogamos contra a bola, que rola ladeira abaixo.
   A beleza do futebol esta em resumir-se ali, no campo, todas as variantes da vida, teatralmente. Representamos, sempre. De­baixo de chuva, o campo que é um pântano, ou com o sol de rachar na nuca. Quase sempre perdemos na cara ou coroa. Vantagem es­tá saída de bola — aquela velha tática de pegar o goleiro desprevenido com um chute traiçoeiro, sopetão, à queima-roupa, nem bem ele ajeitou as luvas. Às vezes dá certo, outras não. Nunca ganhamos um campeonato de verdade, mas já fomos inúmeros segundos lugares. O importante é competir, diz o técnico. Pra mim é ganhar. Mas não entro em conflitos. Sou jogador regular, respeitador das hierarquias esportivas. Técnico falou, tá falado, endossa­do. Já juiz é outro papo. Juiz foi mesmo feito pra cuspir, xingar. Juiz foi feito pra apanhar. E são todos ladrões.
   Somos um timeco pentelho. Gostamos, mesmo, e de botar água no chope dos outros. Numa partida somos um fiasco, noutra quebramos a banca, pegamos os grandes desprevenidos: tática de guerrilhas. Há certos campos em que jogamos de facão à cinta. Nas várzeas abandonadas a grama vira capim oleoso: só à faca. Difícil, às vezes, é encontrar a bola. Nos divertimos demais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Entrevista com um alienígena


A psilocina, substância em que a psilocibina se transforma assim que entra em nosso metabolismo, é 4-hidroxe dimetiltriptamina. Trata-se do único indol com quatro substituições em toda a natureza orgânica. Pensem um pouco nisso. É o único indol que se conhece na Terra com quatro substituições. Acontece que a psilocibina é a substância alucinógena que ocorre em cerca de oitenta espécies de cogumelos, a maioria das quais é nativa do Novo Mundo. A psilocibina tem uma característica única que nos diz: ‘Sou artificial; vim do espaço.’ Sugeri que se tratava de um gene – um gene artificial – transmitido talvez por um vírus espacial ou algo que foi trazido artificialmente para este planeta, e que esse vírus insinuou-se na constituição genética desses cogumelos.” – Terence McKenna
 
EM VEZ DA TOTAL ESTRANHEZA, A  curiosa sensação de déjà vu.
   – Não o conheço de algum lugar?
   Ao que me respondeu:
   – É provável. Estou neste planeta já faz um bocado de tempo. Mas você também não me é estranho.
   Olhou-me no fundo dos olhos, por dentro dos ossos, através da alma, e disse:
   – Você era um macaco engraçado...
   Tentei manter o olhar mas não resisti por muito tempo.
   – Quer dizer que você é extraterrestre? – perguntei por fim.
   – E quem não é?
   Foi a minha vez de sorrir.
   – Mas não é a isso que me refiro. Dizem que você de fato veio de fora. E que não faz muito tempo.
   – Em termos geológicos, foi realmente um piscar de olhos.
  Ergui uma sobrancelha como para dizer que não estava satisfeito com a resposta.
   – Tudo bem – disse por fim. – Sou um alienígena em seu planeta. É tudo o que quer saber?
   – Claro que não. Diga-me, como fez para atravessar o espaço cósmico?
   – Da única maneira possível: com tempo. Muito tempo. Para você ter uma idéia, embora eu esteja na Terra já há vários milhões de anos, isto não representa sequer uma ínfima fração do tempo que levei para chegar até aqui.
   – Você não me parece alienígena.
   De fato, à primeira vista, o jovem com quem eu conversava parecia uma criatura extremamente comum. Era moreno, cor de jambo maduro, os olhos amendoados e o nariz adunco característico de todo nativo-americano. Tinha mãos calejadas de camponês, unhas ainda sujas de terra. Trajava um poncho encardido e andava de pés no chão.
   – Compreendo. Você esperava um baixinho verde e enrugado, com dedos enormes com lâmpadas fluorescentes nas extremidades, não é mesmo?
   E, voltando-se para mim com o indicador esticado, gemeu:
   – E.T.  phone home!
   Ri-me da piada mas o dedo de fato brilhou durante alguns segundos – uma luz esverdeada, como a dos vaga-lumes – de modo que logo me lembrei com quem estava falando e recuperei o tom profissional.
   – De onde mesmo você disse que vinha?
   – Eu não disse.
   – E de onde veio, então?
   Ele me olhou com serenidade e respondeu: 
   – A pergunta não está bem formulada. O que é compreensível. Temos aqui um problema semântico incontornável. Um paradoxo. Fosse num livro, o autor certamente seria obrigado a acrescentar uma gigantesca nota de pé de página à essa altura do diálogo. O problema é que a nota teria que ser do tamanho de uma enciclopédia, o que inviabilizaria a obra...
   – Vamos lá. Em resumo, o que diria esse gigantesco pé de página?
   – Que a frase “de onde você veio” é uma pergunta mal formulada, incompleta e limitada por que foi feita numa determinada dimensão, num determinado planeta, por um determinado organismo de base carbono que ainda não sabe muito bem o que está acontecendo à sua volta.
   Mirei-o com desagrado.
  – Mas, apenas para satisfazer esta sua obsessão espaço-temporal, posso lhe dizer que o meu lugar de origem, o planeta onde há muitos e muitos aeons comecei a minha longa viagem, fica numa galáxia muito distante, há muitos milhões de anos luz daqui...
   – Outra galáxia? Meu Deus!
   – ...e que tal informação é tão inútil quanto dizer que brotou uma verruga enorme nas costas de uma égua de Dom Soares hoje cedo pela manhã.
   E acrescentou, zombeteiro:
   – Feia a verruga, precisa só ver.
   Voltei a sorrir. 
   – E o que o fez sair de seu planeta de origem e empreender viagem tão longa?

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A volta da Nova Ordem Mundial

COMO EU IMAGINAVA, O PRIMO FICOU magoado com minha resposta ao seu urgente alerta a respeito da Nova Ordem Mundial,  publicada no post anterior. Em outra mensagem, igualmente berrada em letras maiúsculas, afirmou: Espero que você não tenha tomado a vacina. Não sou influenciável e nem procuro chifre em cabeça de burro. Simplesmente investiguei e liguei os fatos. Para quem você acha que são todos aqueles caixões? E os campos de concentração com direito a incenerador e tudo? Observe também os aviões que soltam fumaça sobre as nossas cabeças. Se você acha impossível acontecer, basta lembrar do nazismo. Se alguém dissesse que estavam planejando aquilo, você também acharia impossível. A maior arma deles é justamente essa descrença. Não sei o que vai acontecer, mas boa coisa não é.”
   Eu sabia que ele teria essa reação, de modo que me apressei em explicar:
  “Espero que você não tenha ficado chateado. Aquilo era literatura de ficção.  Se quiser ponho uma tarja avisando que quaisquer personagens, vivos ou mortos, etc... Quanto aos caixões, fique tranqüilo. Genocidas não usam caixões. Fica muito mais barato jogar os corpos diretamente no forno crematório, como fizeram os nazista. Também não se preocupe com os aviões: eles são movidos a querosene e costumam soltar uma fumacinha branca quando passam lá em cima no céu. Isso é absolutamente normal e nada tem a ver com os planos dos illuminati para dominarem o mundo.     
   E, apenas para você ficar completamente relaxado, eu juro de pés juntos: não tomo vacinas já há muito, muito tempo.” 
   Achei que bastava. Mas não bastou.
   “Não é a esse tipo de fumaça que me refiro” respondeu em seguida. A fumaça normal não faz rastro, some rápido e é intermitente.  Essa que estou observando é bem densa e não é contínua como a dos aviões de carreira. Cuidado. Você vai ser marcado como amarelo.
   Em vista disso, fui obrigado a apelar:
   “Você não entendeu nada. Estou eu aqui publicando a sua teoria, divulgando-a no meu blog, fingindo ridicularizá-la para poder continuar a  fazê-lo sem censura e você fica aí, todo amuado. É por isso que os illuminati vão dominar o mundo. Os homens de bem, aqueles poucos dispostos a lutar contra o mal e a opressão das grandes corporações, infelizmente não são muito espertos e acabam entregando uns aos outros. Mas, vem cá: esse negócio de amarelo tem a ver com aquela conversa de 'alguém peidaram, não sei quem fui?'
   Dessa vez, ao que parece, os emails do primo cessaram para sempre.

O fantasma da Nova Ordem Mundial


TENHO UM PRIMO MUITO QUERIDO que é figura ímpar no seio de uma família de céticos-materialistas-egocêntricos-empedernidos como a nossa. Desde muito pequeno, o garoto já demonstrava pendores para a metafísica e uma cabeçinha leve demais, fácil de ser levada por qualquer brisa de charlatanismo esotérico, por qualquer pé de vento sensacionalista disfarçado sob um falso véu de cientificismo fajuto. 
   Certo dia, ainda muito jovem, voltou-se para mim e disse: “Tenho certeza que nunca vou morrer.” Achei bacaninha a frase e observei que todas as religiões confirmavam aquela sua certeza. O espiritismo, inclusive, defendia a tese que...  Não pude terminar o raciocínio. “Não, você não entendeu. Eu, eu mesmo, esse corpo físico” disse ele, muito compenetrado. “Tenho certeza, jamais vou morrer.”
   Na hora, achei que era bobagem de menino encantado com a própria juventude mas depois acabei me culpando por não ter detectado ali o alvorecer de um espírito predisposto a beber de qualquer fonte e cair em todas as esparrelas que lhe fossem armadas pelos pilantras de plantão.
   Por volta dos anos 80, meu primo era caçador de discos voadores, acreditava piamente em reptilianos, zorks e na ameaça que tais raças alinígenas representavam para a humanidade. Esteve em Varginha, conheceu uma hiponga velha ali encalhada desde os anos 60, encheu a cara de cogumelos mágicos e até hoje jura ter  sido abduzido por ETs com quem foi obrigado a jogar truco e fazer sexo durante dias e noites intermináveis.
   Nos anos 90, ao ser informado sobre a iminente chegada do planeta X, que a qualquer momento poderia destruir a Terra em um impacto catastrófico,  nunca mais voltou a sair à rua sem a proteção de um guarda-chuva e um chapéu. 
   Agora, em pleno alvorecer do Terceiro Milênio, ele ainda tem certeza de que os deuses eram astronautas embora duvide que o homem tenha ido à lua em 1969. Para ele, o 11 de setembro foi provocado pelos mesmos sujeitos responsáveis pelo tsunami na Indonésia e pelas convulsões de Ronaldo Fenômeno na véspera da partida contra a França na Copa do Mundo de 1998. Ele acredita que a Terra é oca e que, no interior, existe um outro mundo e uma outra humanidade, muito provavelmente descendente dos antigos atlântidas, que já dominavam o raio laser em tempos pré-históricos e foram os responsáveis pela construção dos moais da Ilha de Páscoa, das pirâmides do Egito e do misterioso rosto fotografado na superfície de Marte.   

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Ítaca

tradução da versão inglesa por Alexandre Raposo

Quando partir rumo a Ítaca,
peça que a viagem seja longa,
repleta de peripécias e descobertas.
Não tema os lestrigões, os cíclopes,
e nem o irado Poseidón.
Você não encontrará tais seres em seu caminho
enquanto mantiver o pensamento elevado
e uma rara emoção
dominar seu corpo e espírito.
Não encontrará lestrigões, cíclopes
e nem o feroz Poseidón,
se não os levar em sua alma,
se a sua alma não os puser em seu caminho.

Peça que a estrada seja longa.
Que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, que alegria,
você chegará em portos onde nunca esteve.
Detenha-se nos mercados fenícios
e adquira belas mercadorias,
madrepérola, coral, âmbar e ébano,
voluptuosos perfumes;
tantos perfumes voluptuosos quanto puder;
visite muitas cidades egípcias
e aprenda avidamente com os sábios.

Traga Ítaca sempre em mente.
Chegar lá é a sua meta.
Mas não apresse a viagem.
Melhor que se estenda durante anos
e que você chegue já velho à ilha
rico de tudo o que ganhou no caminho,
sem esperar que Ítaca o enriqueça.

Ítaca já o presenteou com a bela viagem.
Sem ela, você não teria partido.
Nada mais, porém, pode lhe oferecer.
E mesmo que a encontre pobre,
Ítaca não o terá enganado.
Sábio e experiente com se tornou,
à essa altura você já terá compreendido
o que significam as Ítacas.
__________________________
Clique aqui para ouvir o texto em grego, recitado pelo autor. 

Deus 1.0 Beta*


VOCÊ SENTE QUE SEU sistema operacional não vem acompanhando as urgentes necessidades de um universo em permanente expansão? Percebe que a plataforma é limitada a uma série de causas e efeitos aleatórios, sem significado lógico do ponto de vista existencial? Sente falta de um pouco de ordem, motivação e sentido prático na interminável balbúrdia cósmica que o cerca por todos os lados e em todas as dimensões?

Então experimente Deus 1.0 Beta!

Baseado em um conceito absolutamente revolucionário, Deus 1.0 Beta veio para resolver definitivamente todos os seus questionamentos de ordem filosófica ou metafísica. As perguntas mais fundamentais e até então inexplicáveis como “quem sou?”, “de onde vim?”, “o que estou fazendo aqui?”, “para onde vou?”  serão facilmente respondidas com apenas um clique do mouse. Nada de telas azuis, loops, crashes e bugs. Deus 1.0 Beta resolve qualquer conflito e dá motivo para qualquer evento, por mais absurdo que pareça!
   Como extensão gráfica do sistema operacional Caos 8.5, Deus 1.0 Beta fornece ao usuário um modo altamente visual de conceber o universo e organizar os seus trabalhos neste mundo.
   Em resumo, Deus 1.0 Beta garante a integração e a maior eficiência entre todos aqueles processos vitais e/ou intelectuais que até então pareciam-lhe desprovidos de qualquer significado.
   Com o advento de Deus 1.0 Beta, você poderá funcionar simultaneamente em diferentes planos de consciência. Comece uma tarefa mundana, então dê início a algum questionamento filosófico, depois outro. E mais outro. Vá e volte entre os diferentes aplicativos de acordo com as necessidades de sua rotina de trabalho e sua ânsia de compreender essa bagunça que o rodeia.
    A habilidade de Deus 1.0 Beta para mudar de programa para programa e resolver qualquer dilema moral, ético ou metafísico, cascudo que seja, é uma demonstração de que aqueles que cuidam da administração do universo estão realizando um bom trabalho. E sempre pensando em você!
   É claro, tudo isso vai lhe custar apenas a bagatela do dízimo, um preço que torna Deus 1.0 Beta o software mais barato do universo em uma relação custo-benefício. Uma coleção de programas igual a essa — que incluísse uma interface gráfica à sua imagem e semelhança, um processador de conceitos abstratos, um solucionador de paradoxos, e vários módulos independentes de penitência, perdão e conforto — poderia custar cem vezes mais!
   Se você é alguém que usa a mente e o espírito como parte natural de sua rotina de trabalho, que ganha com o poder de produção de aplicativos sofisticados, experimente Deus 1.0 Beta.
    Ele oferece uma nova visão do que sua alma pode fazer.
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 * Deus 1.0 Beta é um software em desenvolvimento. Em breve, em uma igreja perto de você.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Casa no campo I


Uma boa notícia para aquela rapaziada que já passou da meia idade e continua sofrendo episódios da Síndrome de Zé Rodrix: morar no campo realmente é tudo aquilo que as pessoas na cidade idealizam. É saudável. É tranqüilo. É idílico. Vivemos cercados de ar puro, silêncio e paisagens deslumbrantes. E desfrutamos de um espaço, de uma privacidade e de uma liberdade que seriam luxos impossíveis em um ambiente urbano mesmo se fôssemos multimilionários. Sem dúvida, não há melhor lugar para se compor muitos rocks rurais e plantar amigos, livros e discos. E nada mais.
   O problema é tudo aquilo que as pessoas que sonham com uma casa no campo não idealizam, não desejam, sequer imaginam que exista, embora seja o preço a pagar em troca de tanta beatitude.
   Depois de dois anos morando literalmente onde o vento faz a curva, conheci a fundo esse lado oculto da vida na roça e aprendi qual é o preço dessa overdose de verde e clorofila que atualmente me cerca por todos os lados. Nesta série de posts, tentarei descrever para meus caros amigos da cidade como é a vida no campo. E porque apenas os fortes sobrevivem a ela.
   De todos os inconvenientes, o pior é aquele que chamo de Buraco Negro das Telecomunicações. No lugar onde moro não há cabos telefônicos. Havia, sim, mas foram roubados tantas vezes pelos gentis camponeses meus vizinhos — essa gente tão pura e inocente que não vê maldade nas coisas e para quem roubar não passa de uma singela, embora arraigada, prática de interação social — que as empresas de telefonia decidiram deixar de substituí-los.

sábado, 8 de janeiro de 2011

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Se a canoa não virar


Os momentos de desespero por que passaram os passageiros desse transatlântico durante uma tempestade em alto mar ganham um toque tragicômico com esta trilha sonora pra lá de debochada.

Vida selvagem III

 
Apareceu ontem, no jardim. Minha mulher diz que não sabe de onde veio e jura que não tem nada a ver com isso.

A arca


O texto a seguir é um capítulo que acabou removido da versão final de meu romance Memórias de um diabo de garrafa por questões de ritmo de narrativa. É, entretanto, uma historinha muito bem apanhada, repleta de capa, espada e galanteria, dando conta da rocambolesca juventude do personagem Nuno da Silva, motivo pelo qual a incluo como pertence dessa nossa Feijoada Completa.

ERA UMA VEZ UM JOVEM IDIOTA chamado Fernão Perez, cuja missão no mundo era demonstrar da maneira mais convincente possível, o motivo pelo qual o inferno está cheio de gente bem intencionada.
   Nasceu numa choupana à margem do Rio d’Ouro, no vilarejo de Gaia, defronte do Porto, embora tenha passado a maior parte da vida em outras tórridas latitudes. O menino começou a viajar tão cedo, que a lembrança mais remota que tinha da infância não vinha de sua Gaia natal e sim de uma pescaria com crianças pataxós de sua idade, à beira de um riacho em Caravelas, no litoral sul da Bahia.
   Fernão sempre viveu entre gente marítima. O pai fora um daqueles heróis lusitanos que ajudou a consolidar as províncias nas Índias. Nunca chegou a conhecer o filho e morreu de terçã, nas Molucas, em 1529. O tio que o adotou era um piloto formado em Sagres, homem instruído que, durante as muitas viagens que fizeram juntos, iniciou-o nas letras e incutiu-lhe noções de latim, grego e navegação pelas estrelas. Também quase o convenceu a freqüentar a academia.
   Mas Fernão Perez era um gajo que enjoava em terra firme. Sua vocação era o mar, a rotina dos galeões de cruzeiro, o não estar em parte alguma, o eterno descompromisso com a vida. “Quem desembarca vira paisagem,” pensava. “Mas a paisagem é efêmera. Muda a cada dia. Passa. O segredo da eterna juventude é estar sempre em movimento.”
   De navio em navio, de porto em porto, Fernão Perez viveu dos oito aos vinte e três anos de idade. Nesse período, jamais fez questão de saber o itinerário ou a nacionalidade do barco em que se engajava. Desde que fosse um bom barco e não se demorasse demais nas escalas, lá estava ele, pronto a assumir o leme. Como piloto, o rapaz conduziu navios através do Atlântico, levando-os ao Caribe, ao Brasil, à Nova Espanha, à costa da África, e às Índias Orientais. Fernão conhecia o Atlântico como poucos, e seus serviços eram disputadíssimos entre os grandes mercadores ibéricos.

Vida selvagem II


Animal ou vegetal? Na natureza, nem tudo é o que parece. A criatura da foto não é uma folha e, sim, um tipo de mariposa que apareceu aqui em casa outro dia. É ver para crer. 

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Vodca e caviar

TODO MUNDO SABE QUE vodca, em russo, quer dizer "agüinha" e que caviar é o nome que se dá às ovas de um peixe muito mal-encarado, embora dócil, chamado esturjão, que grassa nas águas escuras de um mar fechado — o Cáspio — que banha o Irã, a Bulgária e a Romênia, apesar de também ocorrer nos mares Negro e de Azov e em certos rios da Sibéria. Contudo, pouca gente sabe por que a combinação de um destilado de facílimo preparo com as ovas de um peixe feioso, quase pré-histórico, é capaz de produzir momentos de prazer sensorial tão intensos aos seus afortunados degustadores.
   Para se ter uma idéia da estreita ligação que existe entre a vodca e o caviar, basta lembrar que, em passado não muito remoto, ambos estiveram virtualmente ligados por um dos órgãos vitais do esturjão.  É que, apesar de já saberem produzir álcool potável através da fermentação de sucos de frutas misturados com mel de abelhas, os russos só conheceram a destilação do álcool — inventada na França por volta de 1350 — em meados do século 15. Até então, a vodca era limpa por processos de precipitação, filtragem ou congelamento, no qual os óleos amílicos e as demais substâncias espúrias afloravam à superfície como uma nata de gelo e eram então facilmente separadas do espírito. Em seguida, a vodca era purificada usando-se o karluk, substância viscosa encontrada na bexiga natatória do esturjão.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

New kid on the block

  
O meliante da foto é nosso mais novo refugiado político. Por motivos óbvios, foi apelidado de Bruce já que Batman, ou Homem Morcego, seria um nome um tanto estapafúrdio para um gato tão galante . Com a nova aquisição, a Toca do Raposo conta agora com um plantel de seis felinos e três cães. E aumentando...

Vida selvagem I



O simpático aí da foto é um Erethizon dorsatum,  o popular porco-espinho, que freqüenta as árvores de meu jardim. É dócil, pacato, mas não dá mole para os candidatos a predador que encontra pelo caminho. Outro dia, meus cães resolveram se engraçar com a criatura. Resultado? Veterinário de madrugada, pagando taxa de urgência, para tirar os espetos cravados na boca e no focinho da cachorrada. Bem feito!

Vida de escritor*


AS MENINAS PEDIRAM QUE eu escrevesse um post falando de minha carreira de escritor. Incauto, aceitei a tarefa sem me dar conta de quão difícil é falar de si mesmo sem parecer pretensioso, falsamente humilde, prolixo ou burocrático. Falar de si mesmo na medida certa e ainda assim divertir o leitor não é fácil, mas vá lá. Rapidinho, que é para não enjoar: 
   Em meus quase trinta anos como escritor profissional trabalhei com todo tipo de texto que se possa imaginar. Já fui revisor de bulas de remédio, copidesque de registros de patentes, copilador de cartas eróticas de leitores e redator de entrevistas, reportagens e outras matérias relativamente sérias publicadas na grande imprensa. Quebrei a espinha consertando grandes porcarias literárias e dando jeito em textos irrecuperáveis que, no entanto, acabavam se transformando em retumbantes bestsellers. Tinha especial habilidade para escrever teses de mestrado para gente que deveria estar no primário, ou para redigir discursos de candidatos a cargos públicos que deveriam estar na cadeia.
   Durante a minha carreira, representei todos os papéis e comi em todos os restaurantes da empresa. Ombreei com os gráficos na cantina do subsolo e com os imortais de mentirinha — de lá para cá já morreram vários — no salão de jantar da cobertura, com vista panorâmica da baía.
   Nesses anos de literatices, escrevi vários livros, fossem em meu nome, no de outros, ou sob pseudônimos. Todos esses livros foram muito bem recebidos pela crítica e um sujeito de certo jornal interiorano chegou a farejar flatos de Machado em um de meus romances menos obscuros. Animados por tais augúrios, meus editores insistiram em continuar a publicá-los. No embalo, lançaram-me dois romances históricos, um livro de contos de ficção-científica e um manual de redação para vestibulandos desesperados, afora muita miudeza que agora não vem ao caso.
   Corajosos os editores.
   O público, porém, parece não ter caído na conversa, pelo que não me queixo. Tive as minhas quinze linhas de fama. E, cá entre nós, convenhamos, depois do advento do sistema Cameron, não há quem dê conta de ler tanto livro jogado no mercado.
   Hoje, embora já não escreva tanta coisa de minha autoria, tornei-me um bem sucedido tradutor de deliciosos romances de suspense. Vez por outra, faço umas matérias de turismo para uns malucos na Flórida que adoram os meus textos. E sempre aparece um político analfabeto com o vernáculo estropiado precisando de ajuda. E a gente vai levando.
   Ah, sim. Recentemente, passadas as tempestades, mudei-me para um sítio encravado no meio da mata, no topo do Maciço do Couto, na Serra do Mar, onde, quem sabe, talvez finalmente retome o romance inacabado que espera já há tanto tempo na gaveta. A foto que ilustra a matéria tem sido meu local de trabalho preferido nos últimos dois anos.

P.S) De lá para cá, já retomei (e terminei) o tal "romance inacabado".  Chama-se São Tomé na América e, com alguma sorte, será publicado ainda este ano. Cruzem os dedos!
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* publicado originalmente no site Creative Day

A Toca do Raposo


Para o pessoal que ainda não conhece, fica o convite: naquele chalé no meio da mata, o melhor Discovery Channel em 3D das redondezas. Clique para ampliar.

Palha braba

MEU AVIÃO VINHA pisando na bola. Muita conversa, pouco serviço, mutucas cada vez mais malhadas. Daí, um amigo me falou de uma índia velha que transava um bagulho ruim pacarai mas que dava para quebrar o galho na bosta daquela seca fora de época que a gente andava amargando. Me interessei na hora.
   — Qual a nota?
   E o amigo:
   — Três, no máximo. E isso com muito boa vontade.
   Sei.
   — Mas ao menos vem bem servido?
   E o amigo, aliviado por dar uma dentro:
  — Cara, acho que é a única coisa que salva nessa parada.
   Pensei que talvez fosse melhor voltar ao vapor antigo, baixar a crista, segurar a onda. Mas o orgulho falou mais alto:
   — A quanto?
   E ele, do outro lado da linha:
   — Três por um.
   Topo, topo.
  A bugra fazia ponto no Largo do Machado. Como já tinha ameaçado ao telefone, veio vestindo uma bata cor-de-abóbora com uma echarpe de crochê roxo-mertiolate enrolada no pescoço. Não precisava tanto, pensei. Bastava dizer que era grande, gorda e feia como um rinoceronte. Já ela não me sacou de primeira porque eu disse que era oriental e que estaria usando um chapéu de caubói rosa-choque e botas de couro verde-purê-de-abacate. Com esporas. É sempre bom ter uma carta na manga com essas pessoas.
   Quando me apresentei ela sorriu e mandou, na lata:
   — Não precisava tanto. Bastava ter dito que era caolho. 

domingo, 2 de janeiro de 2011

Saudades de Floripa


Mas ainda me pego com saudades daquela terrinha... Na foto, uma panorâmica da Lagoa da Conceição, um dos bairros mais bonitos do Brasil, onde tive o prazer de viver entre 2005 e 2009. Clique para ampliar.

Gerusa

TENHO UMA FAXINEIRA QUE deveria ser tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional. Chama-se Gerusa, é capixaba, 30 e poucos anos de idade, preta como um tiziu, feia como um cruz-credo mas que, em contrapartida, é um verdadeiro manancial de cultura popular. Ontem mesmo, após a faxina, tivemos o seguinte diálogo:
– Quanto lhe devo, Gerusa?
– O de sempre, seu Carlos: quarenta real.
– Reais, né Gerusa, reais.
– Qualé, seu Carlos... Só gasto o meu plural de cem reais pra cima.
– Como assim?
– Isso mesmo – respondeu. E arrematou, muito didática: – veja o senhor:  o conserto da caixa d’água lá de casa foi dez real, a conta do aluguel foi oitenta real, mas o prejuízo do dentista, seu Carlos, esse sim foi uma mordida de cento e vinte e cinco reais.
– Compreendo agora.
– Aliás, seu Carlos, queria lhe perguntar um negócio meio chato...
– Fala Gerusa.
– Como é que pode o senhor, homem-jornalista, estudado, errar tanto quando fala?
– ?
– É. Ontem mesmo eu ouvi o senhor cometer dois erros muito feios quando falava no telefone. O senhor disse: “Quando eu saltei do ônibus vi que tinha  ainda menos chances de chegar a tempo”.
 – E daí, Gerusa? Cadê os erros?
– Me admiro o senhor, seu Carlos... veja só: ninguém “salta” do ônibus.
Gerusa deu  um pulinho de bailarina troncha no meio da sala, para ilustrar o absurdo da frase. E completou:
– A gente solta do ônibus...
E fez um gesto de quem larga um estribo.
– Tá bom, Gerusa. E o outro erro?
– Ora, seu Carlos! Chance não é feminino? Então! O senhor tinha menas chances de chegar a tempo, concorda?
Assenti com um gesto.
– Outra que eu peguei: o senhor disse que tinha um sujeito “mendigando” aqui na rua. Que feio, seu Carlos! Se o sujeito é um mindingo ele só pode mindingar, concorda?
– É, você até que tem a sua razão...
Gerusa sorriu, vitoriosa. E voltou à carga:
– Não fica por aí não! Todo dia o senhor dá um fora desses. Ontem foi o tal do registro de luz.
– Não captei, Gerusa. Qual o problema com o meu “registro de luz”?
– É rezistro, seu Carlos! Re-zis-tro, entendeu agora?
Fiz que ia protestar mas ela me atropelou:
– Pouco depois o senhor me saiu com o tal do “sanduíche de mortadela na baguete.” Putz! Todo mundo sabe que o certo é “sanduíche de mortandela na barguete”, estou errada? 
Sorri, mas não retruquei.
– O senhor também adora dizer que seu irmão é músico e que toca saxofone soprano. Ora, seu Carlos! Só dá pra tocar saxofone é soprano mesmo, né? Queria que ele tocasse como, peidano?
Não me contive e estourei:
– Ora, você... Gerusa, você é muito burra! Muito burra e muito feia!
Ela sorriu, maliciosa. E respondeu:
– Mas é craro, seu Carlos! O senhor acha que se eu fosse bonita e inteligente ia estar aqui trabalhando prum sujeito inguinorante feito o senhor?
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