segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Palha braba

MEU AVIÃO VINHA pisando na bola. Muita conversa, pouco serviço, mutucas cada vez mais malhadas. Daí, um amigo me falou de uma índia velha que transava um bagulho ruim pacarai mas que dava para quebrar o galho na bosta daquela seca fora de época que a gente andava amargando. Me interessei na hora.
   — Qual a nota?
   E o amigo:
   — Três, no máximo. E isso com muito boa vontade.
   Sei.
   — Mas ao menos vem bem servido?
   E o amigo, aliviado por dar uma dentro:
  — Cara, acho que é a única coisa que salva nessa parada.
   Pensei que talvez fosse melhor voltar ao vapor antigo, baixar a crista, segurar a onda. Mas o orgulho falou mais alto:
   — A quanto?
   E ele, do outro lado da linha:
   — Três por um.
   Topo, topo.
  A bugra fazia ponto no Largo do Machado. Como já tinha ameaçado ao telefone, veio vestindo uma bata cor-de-abóbora com uma echarpe de crochê roxo-mertiolate enrolada no pescoço. Não precisava tanto, pensei. Bastava dizer que era grande, gorda e feia como um rinoceronte. Já ela não me sacou de primeira porque eu disse que era oriental e que estaria usando um chapéu de caubói rosa-choque e botas de couro verde-purê-de-abacate. Com esporas. É sempre bom ter uma carta na manga com essas pessoas.
   Quando me apresentei ela sorriu e mandou, na lata:
   — Não precisava tanto. Bastava ter dito que era caolho. 
   Fingi que não ouvi e notei a tatuagem que ela tinha no braço direito, que parecia uma mortadela de padaria de tão gordo. Era tanta banha que não deu para ler direito o que estava escrito, mas acho que era: Deus é fiel — que é uma frase que eu acho muito babaca. Afinal, Ele só é fiel por que não é casado. Só sei que, vendo a tatuagem de crente, saquei tudo: aquela mulher já tinha puxado cana.
   Fui direto ao assunto:
   — Trouxe o bagulho? 
   — Trouxe a grana?
   — Os 300?
   Ela sorriu de novo, debochada.
   — Que isso, plêi! É só 250!
   Fiquei pilhado. Ali tinha. Mesmo assim, a seca era braba e passei a grana para a pilantra antes mesmo de ver a cor do bagulho. Ao segurar a parada, fiquei ainda mais cabreiro. Muito bem servido. Certamente passava das cem gramas combinadas. Pensei em cheirar o pacote, mas seria dar muita bandeira. Era dia de feira, a praça estava lotada. Não tinha escolha a não ser malocar o flagrante na cueca, entrar no metrô e sumir da área. Mas, antes que eu desse as costas, ela disse:
   — Bagulho é do bom. Chegou ainda hoje.
    Em casa, descobri que aquilo até poderia ter chegado mesmo naquele dia .... depois de ter sido desenterrado de algum esconderijo onde ficou esquecido durante muitos, muitos anos. Foi difícil reconhecer aquele pedaço de rapadura mofada como algo parecido com um peso de maconha.
   Tentei o olfato.
   Eca!
   Cheirava a madeira podre, amônia, merda de gente — ou de rato — com um toque de toucinho rançoso e flores mortas de cemitério. Cheiro de bagulho que é bom, nada.
   Tentei o tato.
   Por fora, estava úmido, pegajoso até. Sabe-se lá o que a índia gorda tinha passado ali. Mas, por dentro, era seco e oco como um tronco varado de cupim. O tijolo quebrou facinho na minha mão e eu encontrei lá dentro, dobrada no meio da maçaroca, uma figurinha, número 47, daquele craque das antigas, o tal Ademir da Guia. Ou seja: o bagulho, além de muito velho, também era palmeirense. Com certeza deve ter vindo de São Paulo lá pelo fim dos anos 60. Na época, devia bater um bolão. Mas agora... 
   As berlotas se esfarelavam na minha mão como se fossem de areia. Ralei para apertar uma morra com aquela poeirada e, por força do hábito, traguei apagado para testar a encrenca. Vacilo. A poeira nojenta entrou na minha boca, grudou nos lábios, na língua, no palato. Senti o mesmo gosto de mato podre, urina e etc. que já havia cheirado havia pouco. Quase vomitei, mas segurei a onda.
   Quando estava a ponto de acender, minha mãe chegou do trabalho pagando geral porque eu não tinha arrumado o quarto e nem lavado a louça do jantar da véspera. Peguei o baseado, a mutuca, o iPod, tirei o skate de trás do armário e resolvi sair para ver se me livrava daquilo, mesmo que fosse com algum prejuízo. A seca tava feia e com certeza eu encontraria algum fissurado sem senso crítico que nem eu para quem passar aquela porcaria.
   Dito e feito. Não demorou muito e encontrei o Carlos Eduardo no calçadão em frente à Djalma. Nem bem me viu, foi logo perguntando, ansioso:
   — E aí, descolou algum?
   — Ãhn... mais ou menos.
   — Como assim?
   Eu não sabia por onde começar.
   — Tenho um aqui apertado. Vamos fumar lá na areia. Depois a gente conversa.
   — Só um?
   — Não. Tou com uma muca de cem dentro da calça.
   — Beleza! Vamos rachunchar?
   Tive vontade de dizer que, por mim, ele podia levar a merda toda mas fiquei na minha. Se eu realmente queria me livrar daquele troço teria de mentir um bocado. É nessas horas que a gente se dá conta de que vida de traficante deve ser mesmo um saco. Todo mundo ligando para a sua casa, não importando a hora do dia ou da noite, e você lá, com um quilo de bosta de vaca no armário tendo que fingir que está com um bagulho da lata. Pior que isso, só mesmo trabalhar como professor secundário na rede pública, tendo de aturar alunos como eu e o Carlos Eduardo.
   Não demorou muito até percebermos que ia ser foda acender aquele palito. Nem tanto pelo vento, já que não ventava tanto assim, e sim porque o bagulho estava tão empoeirado que não pegava de jeito nenhum. Ou melhor, pegava um pouquinho, incandescia e caía da ponta do baseado como estrelinha de São João. O otário do Carlos Eduardo queimou a camiseta novinha e, mais tarde, ao chegar em casa, percebi que tinha feito um buraco de tamanho de uma moeda de um real no náilon da minha bermuda. Já fumaça mesmo, que é bom, nem um fio. 
   É claro que não demorou muito até chegarem os homi. Eram dois, à paisana, caminhando pela areia com quem não quer nada, como um casal de baitolas liberadas passeando na praia depois de darem umazinha.
   Eu até podia ter engolido o baseado mas tive nojo. Sabe lá que doença eu podia pegar com aquilo. Em vez disso, joguei-o na areia, no meio da roda. A situação era clara e não havia o que discutir: flagrante.
   Em pânico, Carlos Eduardo fez menção de fugir mas levou um telefone ao pé do ouvido que o fez cair de bunda na areia. Já eu, que não tenho jeito para herói, estendi as mãos para frente, esperando as algemas. O cana mandou eu deixar de palhaçada, me virou de costas e começou a geral.
   É claro que logo achou a mutuca malocada na cueca. Daí para os dois começarem a sondar para ver quanto podiam tirar da gente foi um pulo. Quando se deram conta que realmente éramos uns fodidos e que nem mesmo o tênis Nike do Carlos Eduardo era legítimo, resolveram nos levar para a delegacia.
   Foi quando, para a nossa sorte, um deles abriu e cheirou a mutuca.
   A careta que fez não deve ter sido muito diferente da minha quando cheirei o troço pela primeira vez. Realmente, aquele bagulho tinha um chulé inigualável. 
   — Ô Freitas — disse ele, chamando o companheiro. — Melou a parada.
   — Como assim — perguntou o outro, que já estava recolhendo os nossos documentos para uma eventual futura chantagem. — É flagrante. Eles não têm grana. Vão em cana. Sem arrego.
   — Neste caso vai ter sim. Olha só para isso.
   E mostrou a mutuca para o companheiro.
   O sujeito olhou para o bagulho, olhou para mim espantado, voltou a olhar para o bagulho, e balançou a cabeça com incredulidade.
   — Melou mesmo — concordou. — Não tenho cara de chegar na DP com um flagrante desses. Há muito tempo não vejo palha tão braba. Nem mesmo tenho certeza se isso é mesmo maconha. Vamos ser a piada do batalhão, com certeza.
   E, para a nossa suprema humilhação, devolveu o bagulho e nos mandou ir embora vegetar em outra parte.

2 comentários:

Armando Caruzo Plaster disse...

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKK... muito boa essa... total ausência de THC...
Vlw...

Unknown disse...

E otimo. E o outro, cade o resto? Bjo da prima.

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