Relíquia! O texto que segue pode ser considerado o marco zero de minha carreira como escritor de ficção. Com ele, concorri a um concurso de contos da revista Ele Ela que prometia uma passagem com estadia, tudo pago, para assistir à Copa de 82 na Espanha... com a Xuxa! Assim como o time da historinha, quase ganhei a partida. Perdemos a Copa, eu perdi a Xuxa, o conto nunca foi publicado mas, em compensação, acabei chamado para trabalhar na revista. Comecei como estagiário e dali saí sete anos depois, como diretor executivo, para escrever meu primeiro romance e finalmente começar minha carreira literária.
VIRA E MEXE E É HORA do vamos ver como é que fica, qualé a que vai ser. A bola na marca penal, o juiz venal, a torcida contra, e aquele goleiro sem-vergonha fazendo caretas para enervar. Faltando dois minutos para acabar o jogo, esse sendo o gol que decide tudo: o campeonato, sua vida e a de muitos. Você joga tudo nessa bola e a danada bate na trave, rola rente à linha do gol para cair, dócil, nas mãos do goleiro que, de repente, se tornou imenso (ou foi você quem diminuiu?). A torcida invade o campo, o juiz encerra a partida e, com aquele apito, liquida também a sua vida. Coisas do futebol.
Este é um mundo de acasos. Tudo pode ser ou não, dependendo, às vezes, de humílimas circunstâncias. Você pode dar certo ou errado independentemente de suas capacidades. A vida vive de conspirações e é sempre bom acender uma vela para cada. O segredo é não confiar nunca em nada.
Formamos um time de cegos, aleijões, desengonçados, mas todos muito bons de bola. Somos o Time da Ladeira. Jogamos contra, sempre. Geralmente contra o Time do Alto. Jogamos contra eles, contra os paralelepípedos, contra a lei da gravidade... Somos um time contra. Perdemos muito, mas ganhamos também. Somos um time contra, mesmo quando jogamos em casa. Aí, nesse caso, jogamos contra a bola, que rola ladeira abaixo.
A beleza do futebol esta em resumir-se ali, no campo, todas as variantes da vida, teatralmente. Representamos, sempre. Debaixo de chuva, o campo que é um pântano, ou com o sol de rachar na nuca. Quase sempre perdemos na cara ou coroa. Vantagem está saída de bola — aquela velha tática de pegar o goleiro desprevenido com um chute traiçoeiro, sopetão, à queima-roupa, nem bem ele ajeitou as luvas. Às vezes dá certo, outras não. Nunca ganhamos um campeonato de verdade, mas já fomos inúmeros segundos lugares. O importante é competir, diz o técnico. Pra mim é ganhar. Mas não entro em conflitos. Sou jogador regular, respeitador das hierarquias esportivas. Técnico falou, tá falado, endossado. Já juiz é outro papo. Juiz foi mesmo feito pra cuspir, xingar. Juiz foi feito pra apanhar. E são todos ladrões.
Somos um timeco pentelho. Gostamos, mesmo, e de botar água no chope dos outros. Numa partida somos um fiasco, noutra quebramos a banca, pegamos os grandes desprevenidos: tática de guerrilhas. Há certos campos em que jogamos de facão à cinta. Nas várzeas abandonadas a grama vira capim oleoso: só à faca. Difícil, às vezes, é encontrar a bola. Nos divertimos demais.
Formamos com Chupeta, Claudinho, Ademar. Eu, Capeta e Coração. Francelino, José Pires e Tremoço. Almanaque e Negão. Turma de sonsos, bons na pancada dissimulada e o escambau. Às vezes também jogamos o fino do futebol.
E um dia aconteceu. Nem bem sei como e que foi. Ganhamos um jogo no Quebra-Braço, fomos decidir o campeonato na praia de Copacabana. Aquele jogo era mole, campeonato vagabundo. Vantagem, ali, era perder. Ganhamos também. Ai veio uma enfiada de jogos, a gente suando a camisa, jogando sem nem saber por que, lavando a roupa com sangue. Quando vimos, estávamos lá, decisão séria, definitiva: o Maracanã! Íamos enfrentar um time de embaixada, país que recentemente adotou o futebol. Time multinacional.
O dia, aquele dia, nasceu feito um urubu: feio, escuro, frio e úmido. Chegamos esbaforidos, tontos. Entramos por um portão lateral, pequeno, pois o porteiro não acreditou que fôssemos os futebolistas. Fomos direto para o vestiário: outra luta. O Negão esquecera os crachás no barraco. Voltar não podia. Apelamos para a ignorância. Aquele guarda, até hoje, deve ver o mundo roxo.
Enquanto nos preparávamos, chegou um sujeito do outro time. Vinha oferecer propina, articular as mamatas lá dele. Botamos o gringo pra correr: jogamos pela camisa, ô fedapê! Devíamos esperar tudo daquele time. Gringo jogando decisão quer ganhar de qualquer jeito.
Foi quando nos demos conta de que a coisa era séria. Vínhamos com o espírito de quem joga para perder, honradamente, de menos de três. No entanto, aquele cara brancarrão, de fala enrolada, despertou em nós certo sentimento acoitado em grande esquecimento. As camisas do nosso time, que eram vermelhas, viraram amarelo-canário. Valtencir, nosso técnico, desandou a falar, lágrimas rolando pelo rosto escalavrado de bexiga. Falou do amor à pátria, de certas nobrezas do espírito que não andavam muito em voga na época, mas que, nem por isso, deixavam de ser bonitas. Sonhamos com a Copa, Copa outra, cá nossa, Copa de acertar as contas com a gringaiada.
Íamos vencer!
Todos meio comovidos, nem reparamos quando o gandula veio avisar que já estava tudo pronto, time no campo, juiz e bandeirinhas, só faltando a gente. Ele berrou novamente. Entramos.
Há certas coisas na vida que um homem não esquece. Momentos pequenos que valem todas as horas de tristeza. O Maior do Mundo eu só conhecia lá de cima, perdido entre a multidão, ponto de vista espectatrício, o comum. Eu não estava preparado para o que viria a seguir. Ninguém estava. Ninguém poderia estar.
O túnel é uma boca escancarada para o céu. Ouve-se ao longe o resfolegar da multidão. O túnel se abre ao raso da grama, tão linda, tão verde, salpintada de riscas de cal. O colosso daquele estádio nos engole como um útero gigantesco e temos vontade de nos enrodilhar em um canto, fechar os olhos, começar a chupar o dedo e nunca mais sair dali de dentro. Mas o que impressiona mesmo são os fogos e as bandeiras, aquele estouro de boiada que é a multidão. De onde diabos tiramos tantas torcidas?
Estávamos ainda entrando quando o Almanaque se retorceu todo, fazendo uma cara esquisita. Pensei que tivesse sido baleado de morteiro, levado garrafada, mas de quem? A torcida era nossa daquela vez! Agarrei o bicho antes dele cair, perguntei qual foi, e ele, lindamente, sorriso nos lábios: “Sei não... a emoção... a beleza... foi tanta... que gozei!”
O jogo atrasou mais um tanto, tempo do Almanaque trocar de calção. Era hora de encarar os outros, na menina dos olhos deles, verdes todos! Cada galalau parrudo de meter medo. Mais essa agora... mas tudo bem.
Jogo é assim. Começa e você não vê. De repente acontece de se estar com a bola no pé e já não é mais aquecimento. Os cinco primeiros minutos joguei dopado de emoções. Nem me lembro do que aconteceu, trecho em branco da minha vida. Só repetia assim “que eu vou ganhar... que eu vou ganhar...” Depois acalmei, embora um pouco tarde demais.
Atuo na defesa. Mas posso também estar ponteirando as jogadas, no improviso. Quando eles marcaram o gol deles eu nem vi, estava voltando para cobrir o contra-ataque. A culpa foi toda minha. Silêncio que aquele estádio só viu em 50. Desesperamos? Mas nem... Início de jogo, muita coisa ainda pela frente. Negão estava com a corda toda, incorporando Garrincha pela extrema direita. Nosso meio-campo estava perfeito, ponto forte desse nosso time. Malta de craques enrustidos, gente que conhece bem os esquadros do campo, os compassos da bola. A torcida se entusiasmou. Aplaudiam felizes nosso futebol-arte, futebol que desce dos morros feito avalanche de lama, soterrando o mundo de gols. E era só o que faltava, o gol. E veio.
Capeta roubou a bola na altura da linha média contrária. Eles estavam armando o ataque, e aquela tomada, de tão boba, foi inesperada. Capeta avançou, driblou o último beque e cruzou ela mansa, na medida, para os meus pés. Olhei em frente e havia só o goleiro, correndo em minha direção como um desesperado e aquele mundo de espaço entre as balizas. Estivesse de olhos fechados e fazia. E fiz como quis: encobri o gringo, matei no peito já dentro da pequena área e desfechei.
O estádio veio abaixo. O que me deu foi uma sensação de que o jogo acabava ali, naquela hora, já vendo minha foto na primeira página. Abracei o Capeta, abracei o Tremoço, abracei o fotógrafo e de repente éramos um bolo de gente comemorando o empate.
Festa que fiz.
Do empate em diante, porém, a coisa perigou. Eles vinham que vinham, muitos de uma só vez, tipo carrossel holandês. Batiam demais. O juiz nem... Foi quando percebi que o apito estava comprometido com as multinacionais. O homem não marcava falta nenhuma a nosso favor. Por outro lado, bastava chegar um pouco mais duro, jogo de corpo, carrinho, o que fosse, e era cartão no ato, mais a humilhação de ser repreendido severamente com ameaças de expulsão.
Zé Pires tomou a bola na limpeza, pedindo licença, bem em frente à nossa área. Falta. Reclamamos todos. O juiz nem queria ouvir. Acenou para os policiais na beira do campo. Em vista disso, dispersamos.
Chupeta pedia barreira. Melhor: pedia duas barreiras, cada uma cobrindo um canto. Expliquei que era ilegal, sem precedentes. O garoto suava frio. Vai que quem bateu foi um galalau de dois por dois, alimentado com Aveia Quaker, breakfast com presunto, ovos e suco de laranja, essas coisas de cinema. Chupeta subiu lá na última gaveta, espalmou para escanteio. Cobraram direto, olímpico. Chupeta engavetou nos peitos. Engavetou e caiu, verde. A bola pegou na boca do estômago, de jeito. E nós nem tínhamos massagista...
Tudo perigava para o nosso lado. A torcida se irritava e chegava, às vezes, a aplaudir uma ou outra jogada do adversário. Diabos, também! Sem o apoio das massas, juiz comprado... a coisa descambava para o imponderável. O primeiro tempo terminou assim.
Tremoço sangrava pelo nariz, às torrentes. Zé Pires com um ovo de avestruz no joelho. Todos estropiados. Fomos direto para o vestiário, ninguém queria entrevista.
Valtencir nos esperava, lívido, cara de enterro. Queria saber o motivo da queda de produção do time. Ninguém tinha disposição para explicar. Negrão, desrespeitoso, mandou que ele fosse lá para ver, mostrou uma luxação na coxa esquerda. Perdíamos a calma facilmente. Ninguém se falava sem antes mandar o outro à merda. Intervalo de partida.
Quando voltamos ao campo, depois de um longo sermão cheio de inúteis determinações estratégicas, senti que alguma coisa havia mudado naquele meio-tempo. A torcida já não era a mesma e esforçava-se em enrolar as bandeiras. Quando os outros entraram, foram ovacionados até com alguns morteiros, gritos entusiásticos, etc, e tal. Pois bem.
Bola no chão, tudo igual no marcador, mas um gosto amargo na boca, gosto de mau augúrio, prenuncio de goleada. Quarenta e cinco minutos que iriam rolar, dolentes, sem pressa. Tratamos de nos defender. Dez minutos de jogo e não havíamos chutado a gol nenhuma vez. Eles, por outro lado, desciam fácil, fustigavam os flancos, aperreavam o meio-campo. Não tínhamos mais futebol, qualé? Foi quando percebi que não tínhamos mais era fôlego. A mente planejava as mais belas jogadas, mas as pernas não acompanhavam, traiçoeiras e preguiçosas. Afinal, convenhamos, éramos um time de favelados, rotos, mal alimentados. Quando jogávamos, era por pura inspiração, disposição que tirávamos do fundo do peito, arte que vinha na raça, rolava no nosso sangue ralo, rosado e anêmico. Brigávamos contra o impossível.
Mas ainda éramos altivos. Demos muito trabalho.
Por volta dos vinte minutos, Ademar foi expulso. Revidara uma dedada no cu com um chute despropositado. Saiu vaiado, o outro se retorcendo em sinceras dores.
Com a brecha na defesa, eles penetravam feito comandos, infiltravam-se como agentes secretos em nossos assuntos internos. Premeditavam revoluções. Aquele gol já estava marcado antes da bola tocar as redes. Tirampaço de fora da área, daqueles que arrancam grama, levantam a cal na violência. Chupeta nem ousou interferir nos destinos da bola: saiu da frente.
A camisa grudava nas costas. A chuteira emprestada, muito estreita, esmagava o calo feito uma dívida externa, porejando juros e correção monetária. O corpo pesava, alma em prantos. Faltava pouco, muito pouco, para terminar o jogo, a desgraça iminente. Eu chorava, Capeta chorava, Valtencir roía o cabo do guarda-chuva. Chovia torrencialmente.
Foi quando aconteceu o impossível: Francelino foi aterrado dentro da área deles. Não acreditei: o juiz decretara o pênalti! Não estávamos perdidos, havia uma esperança! Iríamos para a prorrogação! Faltando dois minutos para encerrar a partida! Quem cobra, quem bate? Juro que não quis. Relutei até o último segundo. Estava enjoado, machucado, sem libido nem inspiração. Mas não havia por onde. Demorasse mais um pouco e o juiz mudava de idéia.
Tomei distância. Respirei fundo. A responsabilidade do mundo nas costas. Uma bateria de escola de samba pulsando nos ouvidos. Corri. Uma gota de suor, misturada à água da chuva, escorreu pela testa, entrou no olho, ardeu. Perdi um milésimo de segundo na atrapalhação. Bati enviesado. O que houve já se sabe, hoje é escândalo nacional: errei, chutei raspado, entre a pelota e o chão. A burra bola rolou, sem determinação; bateu na trave. O mundo acabou naquele instante.
Voltamos a ser o Time da Ladeira. Sem pretensões. Não temos torcida, não temos dinheiro, mas jogamos do mesmo jeito. Desenvolvemos nossas jogadas na maciota, capciosos e experientes. De alguma coisa valeu. Aprendi a cobrar pênalti. Hoje não erro nenhum. Voltamos a jogar na ladeira contra o Time do Alto, contra os carros, contra a bola. Um dia o futebol volta a ser esporte nacional e, então, estaremos preparados. Vencer ou morrer. Não amargo remorso. Ainda somos o que sempre fomos: um time contra. Contra tudo e contra todos.
Até.
Rio de Janeiro, 1982
Um comentário:
Esse campo da foto é do Lordose Futebol Clube?!?!
Deve ser Montagem... ;-)
Postar um comentário