sábado, 1 de janeiro de 2011

A Mulher Esqueleto*


ELA HAVIA FEITO algo errado e o pai a levou até a beira de um penhasco e a atirou ao mar. Lá, os peixes arrancaram-lhe os olhos, comeram-lhe a carne, limparam-lhe os ossos e seu esqueleto foi arrastado pelas correntes marinhas. 
   Certa vez, um pescador chegou àquela baía. Estava longe de casa e não sabia o que sabiam os pescadores locais: que aquele era um lugar amaldiçoado.
   Em dado momento, o anzol do pescador enganchou-se em uma das costelas da Mulher Esqueleto que jazia no fundo do mar.
   O pescador exultou: “Peguei um grande dessa vez!” E pôs-se a recolher o anzol.
  Subitamente, porém, o mar ficou agitado e seu caiaque começou a balançar em meio às ondas porque ela, que estava no fundo, lutava para se livrar. Quanto mais lutava, porém, mais se enrolava na linha. Não importando o que fizesse, estava sendo puxada para cima, içada pelos ossos de suas costelas.
   O caçador havia se virado para lançar uma rede, de modo que não viu a cabeça descarnada aflorar à superfície, não viu os pequenos caranguejos dourados brilhando nas órbitas vazias, não viu as cracas encrostadas naqueles dentes de marfim. Quando ele se voltou outra vez, todo o esqueleto já estava à tona.
  “Agh!” gritou o pescador, apavorado. “Agh!” gritou novamente. Em seguida, empurrou-a com o pá do remo e começou a remar desesperadamente em direção à margem. Em dado momento, ao se voltar e olhar para trás, ficou ainda mais apavorado porque parecia que a Mulher Esqueleto flutuava sobre as águas, perseguindo-o, embora na verdade estivesse sendo puxada por ele, agarrada à sua linha. Não importava que caminho ele tomasse com seu caiaque, ela estava sempre atrás, e seu hálito se espalhava sobre as águas como uma névoa vaporosa, e seus braços se debatiam como se dispostos a puxá-lo para as profundezas do mar.
   “Agh!” gritou o pescador ao chegar à terra. Segurando o arpão, ele pulou do caiaque e saiu correndo, enquanto o corpo da Mulher Esqueleto, ainda agarrado à linha de pesca, sacolejava no chão à sua retaguarda. 
   O pescador correu sobre as pedras da margem, ganhou a tundra congelada, mas ela continuava a segui-lo. Ele correu sobre os peixes deixados para secar ao relento e a Mulher Esqueleto, que  vinha logo atrás, aproveitou para pegar um pouco daquele peixe congelado, que comeu com muito regalo, pois não se alimentava havia muito, muito tempo.
   O homem finalmente chegou em casa e atravessou o estreito túnel que levava ao interior de seu iglu. Ofegante, deixou-se ficar no escuro, coração disparado, batendo forte como um tambor, finalmente a salvo.
   Quando acendeu a lâmpada de óleo de baleia, porém, lá estava ela, deitada no chão, um calcanhar sobre o ombro direito, um joelho enfiado dentro da caixa torácica, um pé cruzado sobre o fêmur da mesma perna. Ele não se lembrava de ter levado um susto tão grande em toda a vida.
   Entretanto, talvez pela luz da fogueira ter amenizado os traços daquele crânio descarnado, ou talvez pelo fato dele ser um homem muito solitário, o pescador começou a sentir alguma simpatia pela mulher. Então, ele se aproximou e, falando como uma mãe para um filho pequeno, começou a desembaraçá-la da linha.
   Primeiro livrou os dedos dos pés, então os calcanhares. Trabalhou a noite inteira e, afinal, acabou por agasalhá-la com suas peles. Ela não disse uma palavra. Não ousava fazê-lo com medo que o pescador se assustasse e a jogasse do despenhadeiro, devolvendo-a às profundezas do mar.
   O pescador ficou com sono, deitou-se sobre suas peles e logo estava sonhando. Às vezes, quando as pessoas dormem, uma lágrima escorre de seus olhos. E foi isso o que aconteceu daquela vez.
   A Mulher Esqueleto viu a lágrima rebrilhar à luz da fogueira e ficou com muita sede. Então, enchendo-se de coragem, se arrastou até o homem adormecido. Para ela, aquela única lágrima era caudalosa como um rio e ela bebeu e bebeu, até saciar a sua sede.
   Deitada ao lado dele, a mulher abriu o tórax do homem adormecido e tirou-lhe o coração, seu poderoso tambor. Ela se sentou e bateu nos dois lados: Bum! Bum! Bum! Bum!
   Enquanto batia, cantava: “Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!” E quanto mais cantava, mais seu esqueleto se recobria de carne. Também cantou por cabelos longos e bastos, por olhos amendoados e brilhantes, por mãos fortes e rechonchudas. Cantou pela divisão entre as suas pernas,  por seios grandes o bastante para amamentarem muitos filhos, e por todas essas coisas que as mulheres precisam para continuarem a ser mulheres.
   Ao terminar, tirou a roupa do homem adormecido e deitou-se na cama ao seu lado, corpo contra corpo, pele contra pele. Então, ela devolveu o grande tambor — o coração — ao tórax do pescador, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro.
   Dizem que ela e o pescador foram embora da aldeia e que vivem em paz no deserto de gelo, alimentados pelas criaturas que ela conheceu em sua longa existência submarina. E isso é tudo o que sabem a esse respeito.
-----------------------------------------------
* antiga lenda inuit.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...