domingo, 29 de maio de 2011

O Predador


VIVER NO MATO É O MAIOR BARATO. Mas, às vezes, sentimos falta de um bom restaurante. É claro, sempre podemos recorrer às malditas espeluncas da aldeia, mas o que dizer de um lugar onde o restaurante mais bem apanhado tem o sugestivo nome de McGato? Então, resta-nos apenas trazer os restaurantes para dentro de casa.
   O cardápio varia de acordo com a estação ou com a disponibilidade de mantimentos que encontramos no barracão do povoado. Ontem, por exemplo, resolvemos nos presentear com um banquete árabe: hommus tahine, babaganuge, salada de grão de bico, tabule, quibe cru, arroz com lentilha, charutos de repolho e  kafta. Não é o banquete completo porque nos faltavam a coalhada seca, o carneiro e também porque decidimos não fazer o tradicional frango na brasa com molho de limão e alho. Ainda assim, foi uma comilança das boas, que nos custou duas laboriosas horas de preparo e uma boa meia hora de inenarráveis prazeres sensoriais.
   Pança cheia, lombeira gostosa pós-banquete, começamos a filosofar. Aliás, sou partidário da teoria de que a filosofia é resultado de estômagos bem fornidos. Quando se tem fome, ninguém se interessa em saber de onde veio, para onde vai ou o que está fazendo neste mundo. Para mim, a filosofia é um mero sub-produto da agricultura, da pecuária, da culinária e da mente ociosa de gente empanturrada.
   Não sei se comi mais do que devia, mas a filosofia de ontem não me caiu muito bem. É que, após o cafezinho e o cigarro, meus olhos bateram casualmente na nota de compras esquecida sobre a bancada da cozinha. Ao passar os olhos sobre a lista de itens necessários para o preparo de nosso pequeno banquete, fiquei estarrecido. Nem tanto pelo preço, que de fato era um absurdo, mas pela quantidade de ingredientes.  Foi quando me dei conta de que, para desfrutarmos dos prazeres daquele repasto das 1001 Noites, tivemos de dispor de nada menos que 21 diferentes espécies de seres vivos. Vinte e uma! Não me ocorre agora nenhum animal capaz de ingerir tamanha variedade de criaturas em uma mesma refeição com exceção, talvez, das baleias comedoras de plâncton. Mas os plânctons são criaturas microscópicas enquanto que as criaturas da minha lista variavam de simples ervas aromáticas a mamíferos que podem pesar mais de uma tonelada.
   Para vocês terem uma idéia de nossa escandalosa onivoracidade, enumero a seguir as espécies consumidas na comilança da véspera. Fiz questão de usar seus nomes científicos porque muita gente tem dificuldade de compreender que as azeitonas não nascem dentro dos vidros, que um ramo de salsa é um ser vivo, parente remoto das samambaias, das sequóias e dos baobás, e que, apesar das aparências, uma berinjela não é um produto manufaturado em Taiwan.
   Segue a lista: Petroselinum sativum, Allium fistulosum, Allium cepa, Mentha viridis, Cicer arietinum, Triticum vulgare, Olea europaea, Citrus limonum, Solanum melogena, Cuminum cyminum, Pimenta officinalis, Piper nigrum, Sesamnum indicum, Oryza sativa, Allium sativum, Brassica oleracea, Lactuca sativa, Lycopersicum esculentum, Cucumis sativus, Lens esculenta e Bos taurus, somando vinte espécies vegetais e uma espécie animal. E isso porque abrimos mão do carneiro e do frango.
   Muita gente há de pensar: mas e daí? Que mal há em comer bem? De fato, como anunciam Shakespeare e o cartaz do motel Mot d’amour, Avenida Brasil 7893: “A variedade é o tempero da vida”. E saco vazio não pára em pé.  Mas não consigo deixar de pensar na extravagância de tudo isso. Vinte e uma espécies de seres vivos para alimentar um casal de macacos bobalhões que já há muito passaram da idade de procriar. Vinte e uma espécies de seres vivos para satisfazer os caprichos de um par de exemplares idosos de uma espécie em vias de extinção, e cujo paladar extravagante é responsável por um dos maiores colapsos ambientais que já se viu nesse planeta... Pensem nisso.
   Alguma coisa está fora da ordem. Fora da velha ordem natural
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