terça-feira, 10 de maio de 2011

Vôo noturno


ELE ESTAVA EM UM AVIÃO porque, naquele sonho, viajava muito. Desde que se entendia por gente sonhava que era aquele homem velhusco, alquebrado, cuja vida de vendedor autônomo se resumia a atravessar o país vendendo implementos agrícolas para comércios provincianos. Era, de longe, o seu sonho mais aborrecido.
    Não tinha, porém, controle sobre os próprios sonhos e, portanto, via-se agora ali, outra vez a bordo de um avião de carreira, em uma longa e enfadonha viagem através do país. Uma hora após o tumulto da distribuição do jantar, o vôo transcorria tranqüilo e ouvia-se apenas o rumor abafado das turbinas lá fora e, vez por outra, o ruído do trinco da porta do banheiro já que a maioria dos passageiros estava profundamente adormecida. Pairava no ar um fedor que misturava aromatizador de ambientes, desinfetante de privada, comida azeda, café requentado, suor e peido de gente há muito confinada. 
   Desanimado, desligou a luz de leitura, fechou a mesinha de apoio e esticou um olhar através do corredor. Algumas fileiras mais adiante, uma senhora lia uma revista de moda e, a cada página virada, erguia no ar uma lufada de perfume barato que, misturada ao tradicional buquê aromático servido graciosamente pelas empresas aéreas em longos vôos sem escala espalhava-se por toda a cabina em um fedor nauseabundo de lixo hospitalar sabor lavanda.
   O sujeito ao lado começou a roncar alto e a se esparramar sobre o assento. Aborrecido, ele se encolheu para evitar contato físico e voltou a vasculhar a cabina, na esperança de encontrar alguma poltrona vaga. Sem chance. O vôo estava completamente lotado. 
   Ele emitiu um suspiro frustrado, levou a mão ao maço de cigarros e pensou em ignorar o aviso de NÃO FUME. Mas se conteve. Em vez disso, procurou o pente no bolso da calça, penteou o topete, voltou a guardar o pente, dessa vez no bolso interno do colete, e estava a ponto de voltar a ligar a luz de leitura e procurar a revista de bordo quando, inesperadamente, o avião pareceu perder toda a sustentação aerodinâmica — ou seja lá como se chama essa coisa que faz os aviões continuarem voando — e passou a cair a prumo, em uma queda vertiginosa e inexorável rumo ao solo.
   Ele se agarrou nos braços da poltrona, deu graças por estar com o cinto atado, e observou, atônito, a comissária ser arremessada em altíssima velocidade em direção à traseira da aeronave, seguida por um certamente mortal carrinho de bebidas e uma infinidade de bolsas e outros objetos que se soltaram dos bagageiros. Nesse momento, as máscaras de oxigênio foram liberadas, o que aumentou ainda mais o caos dentro do aparelho.
   Com dificuldade, ele afastou a cabeça para o lado para voltar a olhar para o corredor e viu, lá embaixo, bem lá embaixo, a porta da cabina dos pilotos escancarada e a silhueta de braços movendo-se sobre um painel repleto de luzes vermelhas que piscavam, desesperadas.
  Uma fração de segundo depois, sentiu-se leve, quase imponderável e observou diversos objetos — lápis, bolsas, pedaços de papel e sacos de vômito — flutuando pela cabina, momentaneamente desprovidos de gravidade. Algumas pessoas berravam, mas a maioria estava apavorada demais para conseguir emitir algum som.
   “Então é assim”, pensou. “É assim que se morre em um desastre de avião. A gente sempre acha que essas coisas só acontecem com os outros mas, no entanto...”
   A seguir, ouviu um ruído pavoroso de metal rasgado e sentiu um violento impacto de ar frio, sólido como granito, seguido do silêncio gelado que antecede a morte em queda livre a trinta e cinco mil pés de altitude.

O menino despertou com um grito abafado na garganta. Estava muito suado e a roupa de cama se acumulava no chão do quarto, como se ele tivesse esperneado durante o sono. Ele se recostou à cabeceira, tirou a camisa do pijama e esfregou os olhos, como se para afastar os últimos vestígios do pesadelo.
  Ao se levantar, pisou inadvertidamente sobre o carrinho de Autorama, tropeçou na perna da mesa de futebol de botão, e acabou caindo sobre o Forte Apache que ganhara no Natal anterior. Emitiu um palavrão em surdina, levantou-se com alguma dificuldade e correu até a sala. Mas decepcionou-se ao perceber que os pais ainda não estavam acordados.
   O relógio de parede marcava 6h25, era sábado, de modo que teria de esperar cerca de quatro horas até poder contar o sufoco que passara naquele avião condenado. Sem ter o que fazer, caminhou a esmo pela casa, folheou uma revista Realidade deixada sobre o sofá da sala e bebeu o restinho de bebida que encontrou no fundo de um copo que os pais haviam esquecido sobre a cômoda na noite anterior. O gosto era horrível e a náusea que sentiu o fez voltar a se lembrar do pesadelo.
   Na cozinha, pegou um prato fundo no escorredor da pia, serviu-se de uma generosa porção de sucrilhos que regou com uma xícara de leite criteriosamente medida. Depois, pegou o prato, uma colher, e foi se sentar diante da televisão, que ligara em volume mínimo para não acordar os pais. Já não tinha mais vontade de contar o sonho para ninguém, não só porque já havia se esquecido de muitos dos detalhes mais emocionantes como também porque, afinal de contas, ele tinha certeza de que jamais voltaria a se encontrar com aquele pobre caixeiro viajante cuja vida medíocre e aborrecida o vinha atormentando havia já alguns anos.

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