sábado, 28 de maio de 2011

Diário de bordo


“O tempo é o pior lugar onde alguém pode se perder, dava-se conta Arthur Dent, uma vez que estava um bocado perdido, tanto no tempo quanto no espaço. Ao menos, estar perdido no espaço o mantinha ocupado.” — A vida, o universo e tudo mais — Douglas Adams

DE VOLTA AO CYBERCAFÉ da aldeia. Eu deveria ter trazido luvas cirúrgicas para tocar nesse teclado ensebado. As teclas “a” e “e” estão apagadas de tanto uso. A atmosfera cavernosa, o fedor de cassino eletrônico e o blablabla da garotada também não ajudam. Mas vamos lá:
Estas são as viagens da nave interestelar Feijoada Completa, em sua missão de cinco anos para explorar novas vidas, novos mundos, novas civilizações, audaciosamente indo aonde nenhum blog jamais esteve.
Diário de bordo, data estelar 110528. Náufrago em algum lugar na montanha carioca, planeta Terra, Quadrante 17. Século XIX. Relatório de avarias: quadro de energia crítico. Sem conexão com a base. Unidades de teletransporte inoperantes. Comunicadores mudos. Baixa moral entre os tripulantes. Nativos hostis. Carregar fasers.
A caminho da aldeia, desviando dos sapos na estrada. O vento entra pela janela do carro. É um ar leve, rico em oxigênio, amadeirado, com um suave aftertaste de orquídeas, mato queimado e notas tênues de bosta de vaca e cavalo. Aquele que se dispuser a engarrafar esse ar e exportá-lo para o século XXI vai ficar bilionário.
Gado deitado na pista. Uma meia dúzia de vacas prenhes, umas pretas, outras pardas. Um convescote de futuras mamães trocando impressões sobre a maternidade. Paro o carro. Qual a pressa? Abro a porta, saio em meio à manhã gelada de orvalho. O silêncio não é de ouro e nem de prata. É de veludo acetinado. Mas esse, meu chapa, não dá para engarrafar e mandar para o futuro. Ouço o som de cupins roendo um tronco de árvore no acostamento mais adiante.
As vacas vão pastar, eu volto ao carro. Alguns minutos depois, chego à estrada de asfalto. Mais adiante um pouco, a aldeia feiosa cercada de encostas peladas. Povo excitado na manhã plistocênica. Uns a caminho do caixa eletrônico para pagar o dízimo de seu pastor preferido. “Aproveita, querido, e paga também o carnê do Baú da Felicidade”. Outros, a caminho do único supermercado da aldeia, para serem roubados no quilo do frango estragado. Caro e podre. Por aqui é preciso cheirar tudo. E contar os dedos após cumprimentar um nativo. Outro dia, dei bobeira e roubaram a coleira de minha cadela. Já pensaram nisso? A coisa está tão feia que já estão assaltando cachorro.
Chego ao cybercafé. Ou seria "saibercafé" fessora Heloísa? A essa altura dos acontecimentos já não sei de mais nada. Espero vagar um console. O moleque se levanta com dificuldade, juntas estalando. Devia estar sentado ali há um tempão, as olheiras profundas de quem passou a madrugada inteira mandando beijocas pelo MSN.
Digito a crônica “de um jacto” como dizia o Saramago, levanto apressado, pago a fatura e volto ao carro um tanto nauseado. Mas assim que pego o caminho de terra de volta à nave disfarçada de casa pousada no topo da colina, a realidade volta ao prumo: árvores, vacas, pica-paus, ar puro. E esse impagável silêncio de veludo. Às vezes chego a desejar que Scott nunca consiga consertar a nossa nave...

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