quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Lucy's

Os amigos mais próximos sabem que sempre fui fascinado por um certo seriado norte-americano da década de 60, o Twilight Zone, chamado de Além da imaginação aqui no Brasil. Aquele programa foi um fato marcante em minha infância e certamente influenciou o tipo de literatura que passei a produzir algumas décadas mais tarde. Não sou o único. O próprio Spielberg, para usarmos um exemplo de peso, era tão fã do programa quando menino que, depois de adulto, fez um longa metragem — aqui chamado de No Limiar da Realidade —  com refilmagens de quatro episódios da antiga série. De minha parte, modestamente, produzi a coletânea de contos fantásticos, Éden 4, minha resposta a uma infância embalada por invasões extraterrestres, almas de outro mundo e paradoxos de espaço-tempo. De certa forma, foi um tipo de catarse profilática.  
   O garoto dentro de mim, porém, pedia mais. Queria um episódio de verdade, nos moldes e no formato da antiga série, com direito, inclusive, a uma apresentação do próprio Rod Serling, o autor e diretor do programa, já há muito falecido. A brincadeira rendeu e pode ser apreciada no roteiro que segue:

EXT. PISTA. ENTARDECER.

Uma pequena pista de terra batida em meio a uma planície desolada. A câmera move-se para a esquerda, fechando sobre um hangar convencional, coberto de reluzentes folhas de flandres. A música Tail end Charlie, de Finegan, sobrepõe-se ao ruído do vento. Na fachada do hangar, um antigo letreiro de neon ganha vida, iluminando-se em meio a fagulhas e estalidos: LUCY’S. LUCY’S. LUCY’S...

De dentro do hangar, surge uma mulher jovem, loura, usando botas, óculos rayban, e casaco de couro preto com golas felpudas. A mulher se volta para a cabeceira da pista. A câmera fecha sobre o seu rosto. No reflexo de seus óculos vêem-se as luzes do primeiro avião.

O Lafayette La 43 pousa suavemente e estaciona à margem da pista. Ela ergue os óculos e sorri.

LUCY
Antoine!

Os dois se encontram a meio caminho entre o avião e o hangar, beijam-se apaixonadamente e, em seguida, voltam-se abraçados para a cabeceira da pista. No céu crepuscular, aproximam-se outros aviões, que aterrissam e estacionam um a um ao lado do Laffayete: um Messerschmitt Me 109, um Hawker Hurricane, um Supermarine Spitfire, um Norseman monomotor,  um Junker Ju 87, um B-17, um biplano vermelho com o emblema da Luftwaffe, um P-47 com emblema da FAB, etc.

As tripulações confraternizam e caminham para o hangar. Um pouco afastados, Lucy e Antoine acompanham a movimentação dos recém-chegados e são os últimos a entrar. A porta se fecha, a câmera move-se novamente para a pista e, embora o filme seja colorido, vê-se a figura em preto e branco de Rod Serling vestindo terno e gravata, sorriso irônico no canto dos lábios, cigarro aceso em uma das mãos, comme il fault.

ROD SERLING

Durante as próximas horas, diferentes gerações de heróis de guerra irão compartilhar uma merecida licença do front. Sua anfitriã, a encantadora Lucy Bryant. O ponto de encontro, um clube para pilotos veteranos que jamais voltaram para casa. Seu compromisso, um acerto de contas com o destino em uma região fora do espaço e do tempo, em um lugar Além da Imaginação
 INT. HANGAR. NOITE.


O interior do hangar é espaçoso. Comporta uma dúzia de mesas, um bar americano com tamboretes giratórios, um balcão de soda completo, máquinas de fliperama, caça-níqueis, juke-boxes e duas mesas de bilhar profissionais. Pairando sobre as cabeças dos freqüentadores, preso por cabos de aço ao teto altíssimo, um hidroavião Catalina em perfeito estado de conservação. Adiante das mesas, sobre um tablado, músicos uniformizados tocam Peggy, the pin-up girl, de Evans e Loeb. Numa faixa de pano estendida sobre a banda, o nome Major Glenn Miller & The Allied Expeditionary Forces Orchestra.

Lucy está atrás do balcão do bar. Antoine está sentado em um tamborete em frente a ela. Lucy prepara um martini. Um grupo de pilotos recém-chegados cumprimenta Antoine à distância. Este responde com um aceno.

ANTOINE
Boa clientela a de hoje.

LUCY
Céu de brigadeiro...

Lucy entrega o martini ao piloto sentado ao lado de Antoine.

LUCY
O tempo nessa época do ano é imprevisível.

ANTOINE
Tive dificuldades sobre Rabat. Muita turbulência...

LUCY
Ainda às voltas com as malas postais?

ANTOINE
Sempre as malditas malas postais. Vez por outra um trabalhinho extra de reconhecimento, ao sul da França. Mas o Laffayete não ajuda...

Um piloto da Luftwaffe aproxima-se.

MANFRED
Antoine!

ANTOINE
Manfred, seu diabo velho!

Ambos se abraçam. Em seguida, Manfred retira um pequeno volume do bolso do sobretudo e o entrega a Antoine.

MANFRED
O seu autógrafo, por favor.

Close sobre o livro, uma primeira edição de Terre des Hommes, de Antoine de Saint-Exupery.

LUCY
Cerveja, Barão?

MANFRED
Hoje não. Tenho um longo vôo pela frente e nenhuma escala a meio caminho... você sabe como é a cerveja... Mas fico com um de seus drinques. Qualquer um deles. Você, por favor, escolha o que mereço.

Antoine pisca para Lucy. Esta corresponde ao piscar de olhos, e volta-se para o balcão donde retira uma garrafa de Steinhegar. O Barão sorri.

A câmara deixa os três e inicia uma panorâmica pelo salão, pairando momentaneamente sobre uma mesa onde alguns pilotos conversam. Um deles veste um uniforme de piloto da II Guerra. Os outros dois, porém, trajam uniformes de pilotos de caça modernos.

PILOTO DE JATO 1
...sobre Nang-Thrang. Eram três mísseis ao mesmo tempo e nada funcionava na cabine. Toda a parte elétrica havia pifado.

PILOTO DE JATO 2
Eu teria ejetado bem antes disso.

PILOTO DE JATO 1
Foi o que tentei fazer a seguir, mas...

O piloto faz um gesto com ambas as mãos, simulando uma explosão.

PILOTO DA II GUERRA 1
Eu jamais seria capaz de entrar em um aparelho que dependesse de toda esta parafernália para continuar voando.

Segue-se um silêncio constrangedor. Os pilotos de caça olham-se com uma expressão desiludida.

PILOTO DA II GUERRA 1
Mas, diga-me, esses seus aviões não planam?...

PILOTO DE JATO 1
(em meio a um sorriso amarelo)
Mais ou menos. Planam um pouco, sim... às vezes...

PILOTO DE JATO 2
...até finalmente se espatifarem no chão.

A câmera prossegue a panorâmica e fecha sobre outra mesa onde conversa outro grupo de pilotos. Estão bêbados, fanfarrões, barulhentos.

PILOTO DA I GUERRA
Eddie era louco! Completamente louco!

PILOTO DA II GUERRA
Eddie Rickenbaker? Você voou com Eddie Rickenbaker?

PILOTO DA I GUERRA
Esquadrão 94 de Perseguição Aérea, esquadrilha Laffayete... Eddie abateu 22 aviões alemães naquela temporada. Só para você ter uma idéia, ele....

Seqüência de fades focalizando detalhes do hangar. Amontoadas pelas paredes e prateleiras há medalhas, troféus, maquetes de aviões, cartazes, fotos de pilotos, avisos escritos a mão, cartões postais, artigos de revistas especializadas, etc. Enquanto isso, ouvem-se vozes, trechos da conversa dos pilotos.

(V.O) – ...porque ninguém é capaz de fazer um loop invertido nessas circunstâncias...

(V.O) – ...o trem de pouso bateu nas árvores na cabeceira da pista...

(V.O.) – ...treze missões! Treze missões!

(V.O.) – ...caiu a pique. Nenhuma chance...

(V.O.) – ...e nosso aparelho era o bombardeiro mais limpo e bem conservado de toda aquela base, então por que um maldito capitão da marinha iria...

(V.O. às gargalhadas) – ...daí ele berrou: “alguma explosão secundária? Alguma explosão secundária?”
 
A câmera focaliza um cartaz de um antigo circo-voador da década de 1930 onde se lê: “THE INCREDIBLE BRYANT-McGRAW FLYING-CIRCUS”. O cartaz é muito colorido e glamouroso, repleto de detalhes de façanhas aéreas. Em primeiro plano, a figura de uma mulher vestindo uniforme de piloto. É Lucy.
(V.O.) – ...e ela tinha apenas treze anos quando fez aquilo!...

Fade para o palco onde a orquestra toca Jeep Jockey Jump, de Jerry Gray. Takes dos músicos. Takes das mesas. A noite atinge o seu auge. Fade-off.

INT. HANGAR. NOITE

A orquestra já se recolheu e há menos pilotos no hangar. Alguns dormem sobre as mesas. Outros jogam cartas ou divertem-se nas máquinas de fliperama. Ambiente de fim de festa. Uma juke-box toca uma velha canção alemã da década de 30. A câmera fecha sobre uma mesa ao fundo, junto à cozinha, onde Lucy e Antoine conversam.

ANTOINE
Sempre que venho aqui, não tenho vontade de partir.

LUCY
Então fique. Quem o está mandando embora?

ANTOINE
Você sabe que não posso ficar...

LUCY
(baixando os olhos com tristeza)
Sim, eu sei.

ANTOINE
Certa vez, no deserto, conheci alguém...

LUCY
E?...

ANTOINE
E ele me disse...

LUCY
(brincalhona, simulando grande alívio)
Ele? Ah, sim, ele. Prossiga.

ANTOINE
Ele me disse que o essencial é invisível para os olhos. Disse que o deserto é belo porque esconde um poço em algum lugar.

Lucy sorri e toma um gole de cerveja.

ANTOINE
Para mim, esse bar é esse poço escondido. Sem ele, nada mais faria sentido. Minha vida nos últimos anos, você sabe... tantos vôos para lugar nenhum, tanta solidão...

LUCY
Compreendo. Mas é exatamente por isso que estou aqui. Não haveria outra razão, não é mesmo?

ANTOINE
Claro que não. Não tivesse de paparicar esse bando de vagabundos, você poderia estar milionária. O seu show é fantástico!

LUCY
(fazendo um gesto com a mão como quem lê um letreiro)
“Ninguém pilota como Lucy Bryant!”

ANTOINE
Tirou as palavras de minha boca.

A música termina. Silêncio. Close em Lucy. Ela olha Antoine com ternura, quase compaixão. Pouco a pouco, entretanto, a sua fisionomia se transfigura em alerta. Ao fundo, quase imperceptível, ouve-se o ruído de um motor.

ANTOINE
Mas quem é o maluco que ousa aparecer a uma hora dessas?...

LUCY
(sobressaltada.)
Avião de assalto japonês, classe Suisei. E está com alguma coisa a obstruir o radiador.

Os pilotos ao redor se dão conta da novidade e acordam os que estão adormecidos sobre as mesas. Murmúrios. Apreensão.

LUCY
Rápido, para a pista!

CORTAR PARA:

EXT. PISTA. NOITE

Os pilotos correm portando archotes, com os quais acendem os sinalizadores, em realidade tambores de metal repletos de graxa, estopa e panos velhos, alinhados às laterais da pista. Todos olham ansiosos para o céu escuro. O Suisei aterrissa precariamente e pára a uns vinte metros do hangar. Mas não desliga o motor. De dentro do aparelho, surge um piloto. Traz uma faixa atada ao capacete de couro onde se vê estampado um sol nascente em vermelho.

MANFRED
(em surdina para Antoine)
Kamikaze...

O piloto japonês corre para a dianteira do avião, posiciona-se perigosamente sob a hélice em movimento e arranca um pedaço de metal retorcido, encravado à entrada de ar do radiador. Somente então ele se dá conta da pequena multidão que o observa ao longe. O piloto japonês volta-se lentamente para o hangar e levanta os óculos. A câmera fecha em seu rosto. Não deve ter mais que dezessete anos de idade.

LUCY
(consternada)
Oh, meu Deus!...

Antoine faz menção de se aproximar, mas o piloto japonês se amedronta, volta correndo para a cabina, embica o avião em direção à pista, ganha velocidade e decola. Todos observam, atônitos. O ruído do motor se perde em meio às trevas. Silencio.

LUCY
Maldita guerra.

PILOTO DA II GUERRA 1
Será que isso não vai acabar nunca?

PILOTO DA I GUERRA
(quase exasperado)
Vocês imaginam a idade daquele rapaz?

Todos se olham. Closes em diferentes rostos, diferentes gerações de pilotos de combate, abatidos em diferentes guerras. A aurora já desponta no horizonte ao fundo. Pouco a pouco, em profundo silêncio, os pilotos voltam para os seus aparelhos.  São como espectros a vagar pela pista de pouso. Antoine e Lucy observam a partida dos aviões. Beijam-se em seguida.

ANTOINE
Então... até a próxima vez.

LUCY
Até a próxima vez, meu amor.

ANTOINE
Lembre-se de escrever.

Lucy sorri com cumplicidade.

LUCY
O poço continua aberto, no horário de sempre, nos dias combinados.

Antoine acena e sorri, melancólico.

ANTOINE
Adeus.

Antoine caminha até o Laffayete, entra na cabine e da a partida no motor. Lucy observa o avião sumir no horizonte. Em seguida, retorna para dentro do hangar. A porta se fecha. A câmera sobe em grua. O outdoor se apaga. Panorâmica da pista ao amanhecer ao som de Tail End Charlie.
 
FIM 

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