sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Um time contra



Relíquia! O texto que segue pode ser considerado o marco zero de minha carreira como escritor de ficção. Com ele, concorri a um concurso de contos da revista Ele Ela que prometia uma passagem com estadia, tudo pago,  para assistir à Copa de 82 na Espanha... com a Xuxa! Assim como o time da historinha, quase ganhei a partida. Perdemos a Copa, eu perdi a Xuxa, o conto nunca foi publicado mas, em compensação, acabei chamado para trabalhar na revista. Comecei como estagiário e dali saí sete anos depois, como diretor executivo, para escrever meu primeiro romance e finalmente começar minha carreira literária.  

VIRA E MEXE E É HORA do vamos ver como é que fica, qualé a que vai ser. A bola na marca penal, o juiz venal, a torcida con­tra, e aquele goleiro sem-vergonha fazendo caretas para enervar. Faltando dois minutos para acabar o jogo, esse sendo o gol que decide tudo: o campeonato, sua vida e a de muitos. Você joga tudo nessa bola e a danada bate na trave, rola rente à linha do gol para cair, dócil, nas mãos do goleiro que, de repente, se tornou imenso (ou foi você quem diminuiu?). A torcida invade o campo, o juiz encerra a partida e, com aquele apito, liquida tam­bém a sua vida. Coisas do futebol.
   Este é um mundo de acasos. Tudo pode ser ou não, dependen­do, às vezes, de humílimas circunstâncias. Você pode dar certo ou errado independentemente de suas capacidades. A vida vive de conspirações e é sempre bom acender uma vela para cada. O se­gredo é não confiar nunca em nada.
   Formamos um time de cegos, aleijões, desengonçados, mas to­dos muito bons de bola. Somos o Time da Ladeira. Jogamos con­tra, sempre. Geralmente contra o Time do Alto. Jogamos contra eles, contra os paralelepípedos, contra a lei da gravidade... Somos um time contra. Perdemos muito, mas ganhamos também. So­mos um time contra, mesmo quando jogamos em casa. Aí, nesse ca­so, jogamos contra a bola, que rola ladeira abaixo.
   A beleza do futebol esta em resumir-se ali, no campo, todas as variantes da vida, teatralmente. Representamos, sempre. De­baixo de chuva, o campo que é um pântano, ou com o sol de rachar na nuca. Quase sempre perdemos na cara ou coroa. Vantagem es­tá saída de bola — aquela velha tática de pegar o goleiro desprevenido com um chute traiçoeiro, sopetão, à queima-roupa, nem bem ele ajeitou as luvas. Às vezes dá certo, outras não. Nunca ganhamos um campeonato de verdade, mas já fomos inúmeros segundos lugares. O importante é competir, diz o técnico. Pra mim é ganhar. Mas não entro em conflitos. Sou jogador regular, respeitador das hierarquias esportivas. Técnico falou, tá falado, endossa­do. Já juiz é outro papo. Juiz foi mesmo feito pra cuspir, xingar. Juiz foi feito pra apanhar. E são todos ladrões.
   Somos um timeco pentelho. Gostamos, mesmo, e de botar água no chope dos outros. Numa partida somos um fiasco, noutra quebramos a banca, pegamos os grandes desprevenidos: tática de guerrilhas. Há certos campos em que jogamos de facão à cinta. Nas várzeas abandonadas a grama vira capim oleoso: só à faca. Difícil, às vezes, é encontrar a bola. Nos divertimos demais.
   Formamos com Chupeta, Claudinho, Ademar. Eu, Capeta e Coração. Francelino, José Pires e Tremoço. Almanaque e Negão. Turma de sonsos, bons na pancada dissimulada e o escambau. Às vezes também jogamos o fino do futebol.
   E um dia aconteceu. Nem bem sei como e que foi. Ganhamos um jogo no Quebra-Braço, fomos decidir o campeonato na praia de Copacabana. Aquele jogo era mole, campeonato vagabundo. Van­tagem, ali, era perder. Ganhamos também. Ai veio uma enfiada de jogos, a gente suando a camisa, jogando sem nem saber por que, lavando a roupa com sangue. Quando vimos, estávamos lá, decisão séria, definitiva: o Maracanã! Íamos enfrentar um time de embaixada, país que recentemente adotou o futebol. Time mul­tinacional.
   O dia, aquele dia, nasceu feito um urubu: feio, escuro, frio e úmido. Chegamos esbaforidos, tontos. Entramos por um portão lateral, pequeno, pois o porteiro não acreditou que fôssemos os futebolistas. Fomos direto para o vestiário: outra lu­ta. O Negão esquecera os crachás no barraco. Voltar não podia. Apelamos para a ignorância. Aquele guarda, até hoje, deve ver o mundo roxo.
   Enquanto nos preparávamos, chegou um sujeito do outro time. Vinha oferecer propina, articular as mamatas lá dele. Botamos o gringo pra correr: jogamos pela camisa, ô fedapê! Devíamos esperar tudo daquele time. Gringo jogando decisão quer ganhar de qualquer  jeito.
   Foi quando nos demos conta de que a coisa era séria. Vínhamos com o espírito de quem joga para perder, honradamente, de menos de três. No entanto, aquele cara brancarrão, de fala enrolada, despertou em nós certo senti­mento acoitado em grande esquecimento. As camisas do nosso ti­me, que eram vermelhas, viraram amarelo-canário. Valtencir, nos­so técnico, desandou a falar, lágrimas rolando pelo rosto esca­lavrado de bexiga. Falou do amor à pátria, de certas nobrezas do espírito que não andavam muito em voga na época, mas que, nem por isso, deixavam de ser bonitas. Sonhamos com a Copa, Copa outra, cá nossa, Copa de acertar as contas com a gringaiada. 
   Íamos vencer!
   Todos meio comovidos, nem reparamos quando o gandula veio avisar que já estava tudo pronto, time no campo, juiz e bandei­rinhas, só faltando a gente. Ele berrou novamente. Entramos.
   Há certas coisas na vida que um homem não esquece. Momen­tos pequenos que valem todas as horas de tristeza. O Maior do Mundo eu só conhecia lá de cima, perdido entre a multidão, pon­to de vista espectatrício, o comum. Eu não estava preparado para o que viria a seguir. Ninguém estava. Ninguém poderia estar.
   O túnel é uma boca escancarada para o céu. Ouve-se ao lon­ge o resfolegar da multidão. O túnel se abre ao raso da grama, tão linda, tão verde, salpintada de riscas de cal. O colosso daquele estádio nos engole como um útero gigantesco e temos vontade de nos enrodilhar em um canto, fechar os olhos, começar a chupar o dedo e nunca mais sair dali de dentro. Mas o que impressiona mesmo são os fogos e as bandeiras, aquele estouro de boiada que é a multidão. De onde  diabos tiramos tantas tor­cidas?
   Estávamos ainda entrando quando o Almanaque se retorceu todo, fazendo uma cara esquisita. Pensei que tivesse sido bale­ado de morteiro, levado garrafada, mas de quem? A torcida era nossa daquela vez! Agarrei o bicho antes dele cair, perguntei qual foi, e ele, lindamente, sorriso nos lábios: “Sei não... a emoção... a beleza... foi tanta... que gozei!”
   O jogo atrasou mais um tanto, tempo do Almanaque trocar de calção. Era hora de encarar os outros, na menina dos olhos de­les, verdes todos! Cada galalau parrudo de meter medo. Mais essa agora... mas tudo bem.
   Jogo é assim. Começa e você não vê. De repente acontece de se estar com a bola no pé e já não é mais aquecimento. Os cinco primeiros minutos joguei dopado de emoções. Nem me lem­bro do que aconteceu, trecho em branco da minha vida. Só repe­tia assim “que eu vou ganhar... que eu vou ganhar...” Depois acalmei, embora um pouco tarde demais.
   Atuo na defesa. Mas posso também estar ponteirando as jo­gadas, no improviso. Quando eles marcaram o gol deles eu nem vi, estava voltando para cobrir o contra-ataque. A culpa foi toda minha. Silêncio que aquele estádio só viu em 50. Deses­peramos? Mas nem... Início de jogo, muita coisa ainda pela fren­te. Negão estava com a corda toda, incorporando Garrincha pe­la extrema direita. Nosso meio-campo estava perfeito, ponto forte desse nosso time. Malta de craques enrustidos, gente que conhece bem os esquadros do campo, os compassos da bola. A torcida se entu­siasmou. Aplaudiam felizes nosso futebol-arte, futebol que des­ce dos morros feito avalanche de lama, soterrando o mundo de gols. E era só o que faltava, o gol. E veio.
   Capeta roubou a bola na altura da linha média contrária. Eles estavam armando o ataque, e aquela tomada, de tão boba, foi inesperada. Capeta avançou, driblou o último beque e cruzou ela mansa, na medida, para os meus pés. Olhei em frente e havia só o goleiro, correndo em minha direção como um desesperado e aquele mundo de espaço entre as balizas. Estivesse de olhos fechados e fazia. E fiz como quis: encobri o gringo, matei no peito já dentro da pequena área e desfechei.
   O estádio veio abaixo. O que me deu foi uma sensação de que o jogo acabava ali, naquela hora, já vendo minha foto na pri­meira página. Abracei o Capeta, abracei o Tremoço, abracei o fotógrafo e de repen­te éramos um bolo de gente comemorando o empate. 
   Festa que fiz.
   Do empate em diante, porém, a coisa perigou. Eles vinham que vinham, muitos de uma só vez, tipo carrossel holandês. Batiam demais. O juiz nem... Foi quando percebi que o apito estava comprometido com as multinacionais. O homem não marcava falta nenhuma a nosso favor. Por outro lado, bastava chegar um pouco mais duro, jogo de corpo, carrinho, o que fosse, e era cartão no ato, mais a hu­milhação de ser repreendido severamente com ameaças de expulsão.
   Zé Pires tomou a bola na limpeza, pedindo licença, bem em frente à nossa área. Falta. Reclamamos todos. O juiz nem que­ria ouvir. Acenou para os policiais na beira do campo. Em vis­ta disso, dispersamos.
   Chupeta pedia barreira. Melhor: pedia duas barreiras, cada uma cobrindo um canto. Expliquei que era ile­gal, sem precedentes. O garoto suava frio. Vai que quem bateu foi um galalau de dois por dois, alimentado com Aveia Quaker, breakfast com presunto, ovos e suco de laranja, essas coisas de cinema. Chupeta subiu lá na última gaveta, espalmou para escanteio. Cobra­ram direto, olímpico. Chupeta engavetou nos peitos. Engavetou e caiu, verde. A bola pegou na boca do estômago, de jeito. E nós nem tínhamos massagista...
   Tudo perigava para o nosso lado. A torcida se irritava e chegava, às vezes, a aplaudir uma ou outra jogada do adversário. Diabos, também! Sem o apoio das massas, juiz comprado... a coi­sa descambava para o imponderável. O primeiro tempo terminou assim.
   Tremoço sangrava pelo nariz, às torrentes. Zé Pires com um ovo de avestruz no joelho. Todos estropiados. Fomos direto pa­ra o vestiário, ninguém queria entrevista.
   Valtencir nos esperava, lívido, cara de enterro. Queria saber o motivo da queda de produção do time. Ninguém tinha dis­posição para explicar. Negrão, desrespeitoso, mandou que ele fosse lá para ver, mostrou uma luxação na coxa esquerda. Perdía­mos a calma facilmente. Ninguém se falava sem antes mandar o outro à merda. Intervalo de partida.
   Quando voltamos ao campo, depois de um longo sermão cheio de inúteis determinações estratégicas, senti que alguma coisa havia mudado naquele meio-tempo. A torcida já não era a mesma e esforçava-se em enrolar as bandeiras. Quando os outros entraram, foram ovacionados até com alguns morteiros, gritos entusiásticos, etc, e tal. Pois bem.
   Bola no chão, tudo igual no marcador, mas um gosto amargo na boca, gosto de mau augúrio, prenuncio de goleada. Quarenta e cinco minutos que iriam rolar, dolentes, sem pressa. Tratamos de nos defender. Dez minutos de jogo e não havíamos chutado a gol nenhuma vez. Eles, por outro lado, desciam fácil, fustiga­vam os flancos, aperreavam o meio-campo. Não tínhamos mais fu­tebol, qualé? Foi quando percebi que não tínhamos mais era fôlego. A mente planejava as mais belas jogadas, mas as pernas não acompanhavam, traiçoeiras e preguiçosas. Afinal, convenha­mos, éramos um time de favelados, rotos, mal alimentados. Quan­do jogávamos, era por pura inspiração, disposição que tirávamos do fundo do peito, arte que vinha na raça, rolava no nosso san­gue ralo, rosado e anêmico. Brigávamos contra o impossível.
   Mas ainda éramos altivos. Demos muito trabalho.
   Por volta dos vinte minutos, Ademar foi expulso. Revidara uma dedada no cu com um chute despropositado. Saiu vaiado, o outro se retorcendo em sinceras dores.
   Com a brecha na defesa, eles penetravam feito comandos, in­filtravam-se como agentes secretos em nossos assuntos internos. Premeditavam revoluções. Aquele gol já estava marcado antes da bola tocar as redes. Tirampaço de fora da área, daqueles que arran­cam grama, levantam a cal na violência. Chupeta nem ousou inter­ferir nos destinos da bola: saiu da frente.
   A camisa grudava nas costas. A chuteira emprestada, muito estreita, esmagava o calo feito uma dívida externa, porejando juros e correção monetária. O corpo pesava, alma em prantos. Faltava pouco, muito pouco, para terminar o jogo, a desgraça iminente. Eu chorava, Capeta chorava, Valtencir roía o cabo do guarda-chuva. Chovia torrencialmente.
   Foi quando aconteceu o impossível: Francelino foi aterrado dentro da área deles. Não acreditei: o juiz decretara o pênalti! Não estávamos perdidos, havia uma esperança! Iríamos para a pror­rogação! Faltando dois minutos para encerrar a partida! Quem cobra, quem bate? Juro que não quis. Relutei até o último segun­do. Estava enjoado, machucado, sem libido nem inspiração. Mas não havia por onde. Demorasse mais um pouco e o juiz mudava de idéia.
   Tomei distância. Respirei fundo. A responsabilidade do mundo nas costas. Uma bateria de escola de samba pulsando nos ouvidos. Corri. Uma gota de suor, misturada à água da chuva, escorreu pela testa, entrou no olho, ardeu. Perdi um mi­lésimo de segundo na atrapalhação. Bati enviesado. O que houve já se sabe, hoje é escândalo nacional: errei, chutei raspado, entre a pelota e o chão. A burra bola rolou, sem determinação; bateu na trave. O mundo acabou naquele instante.

Voltamos a ser o Time da Ladeira. Sem pretensões. Não te­mos torcida, não temos dinheiro, mas jogamos do mesmo jeito. De­senvolvemos nossas jogadas na maciota, capciosos e experientes. De alguma coisa valeu. Aprendi a cobrar pênalti. Hoje não erro nenhum. Voltamos a jogar na ladeira contra o Time do Alto, con­tra os carros, contra a bola. Um dia o futebol volta a ser es­porte nacional e, então, estaremos preparados. Vencer ou morrer. Não amargo remorso. Ainda somos o que sempre fomos: um time con­tra. Contra tudo e contra todos.
   Até.

 Rio de Janeiro, 1982

Um comentário:

Armando Caruzo Plaster disse...

Esse campo da foto é do Lordose Futebol Clube?!?!
Deve ser Montagem... ;-)

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...