terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Vodca e caviar

TODO MUNDO SABE QUE vodca, em russo, quer dizer "agüinha" e que caviar é o nome que se dá às ovas de um peixe muito mal-encarado, embora dócil, chamado esturjão, que grassa nas águas escuras de um mar fechado — o Cáspio — que banha o Irã, a Bulgária e a Romênia, apesar de também ocorrer nos mares Negro e de Azov e em certos rios da Sibéria. Contudo, pouca gente sabe por que a combinação de um destilado de facílimo preparo com as ovas de um peixe feioso, quase pré-histórico, é capaz de produzir momentos de prazer sensorial tão intensos aos seus afortunados degustadores.
   Para se ter uma idéia da estreita ligação que existe entre a vodca e o caviar, basta lembrar que, em passado não muito remoto, ambos estiveram virtualmente ligados por um dos órgãos vitais do esturjão.  É que, apesar de já saberem produzir álcool potável através da fermentação de sucos de frutas misturados com mel de abelhas, os russos só conheceram a destilação do álcool — inventada na França por volta de 1350 — em meados do século 15. Até então, a vodca era limpa por processos de precipitação, filtragem ou congelamento, no qual os óleos amílicos e as demais substâncias espúrias afloravam à superfície como uma nata de gelo e eram então facilmente separadas do espírito. Em seguida, a vodca era purificada usando-se o karluk, substância viscosa encontrada na bexiga natatória do esturjão.
   O karluk foi largamente utilizado nos séculos seguintes, a ponto de custar cerca de 100 vezes mais do que o caviar em princípios do século 19. Com o passar do tempo,  entretanto, surgiram outros métodos de purificação até que se chegou aos filtros de carvão ativado atuais.    
   Ligados virtualmente pela bexiga, a vodca e o caviar jamais se separaram. Para acompanhar comida tão requintada quanto gordurosa como o caviar, nada como uma bebida forte, mas extremamente pura, como a (boa) vodca, capaz de ajustar o paladar para outra rodada de caviar que, por sua vez, induzirá a uma nova rodada de vodca, numa aspiral ascendente, repleta de sutilezas em suas circunvoluções caprichosas, rumo ao Nirvana.
   A vodca, todo mundo sabe, é uma bebida muito simples. Não passa de álcool retirado de cereais, frutas, legumes, ou, até mesmo, cana-de-açúcar — duas vezes destilado, purificado e misturado com água. Mas é exatamente esta simplicidade que tanto pode transformar a vodca em um néctar divino quanto em uma beberragem amarga e corrosiva, incapaz de mover um carro de praça, mas suficientemente poderosa para garantir uma semana de ressaca a quem ousar enfrentá-la. O grande segredo da vodca é a sua pureza. Segundo os soviéticos, deve ser pura a ponto de só revelar o seu verdadeiro sabor quando ingerida em grande quantidade. É claro que existem vodcas aromatizadas, algumas excelentes, outras um desastre. Mas, para os puristas, a vodca deve ser invariavelmente incolor e inodora.
   Já o preparo do caviar implica maior complexidade. Os esturjões — que podem ser de três tipos: Acipenser sturio, Acipenser stellatus e Acipenser huso (ou, vulgarmente, osietra, sevruga e beluga) — são capturados durante a desova, na primavera e no outono. As fêmeas devem estar rigorosamente vivas no momento em que lhes são extraídas as ovas. No peixe morto, os invólucros dos pequenos ovos perdem a tenacidade e começam a se romper em poucas horas. O peixe também não deve ser submetido a grande esforço físico durante a captura. Depois de aturdido, recebe um corte preciso no ventre. O segredo deste corte é um conhecimento passado de pai para filho ao longo dos séculos. As ovas são retiradas — de cada movimento do cavieiro depende a qualidade do produto final — e salgadas. Com o sal, o invólucro das ovas se torna mais resistente. As ovas de primeira passam diretamente das mãos do cavieiro para as latas. Em seguida, as latas são refrigeradas a uma temperatura pouco abaixo de zero. O caviar não pode, em hipótese alguma, ser congelado. O calor também altera o seu sabor, apesar de o caviar para exportação ser pasteurizado de modo a aumentar o prazo de conservação.
   Diferentemente do que se pensa, a cor das ovas não influi na qualidade do caviar. A única exceção a esta regra é o caviar dourado de uma raríssima espécie de esturjão, o sterlet, cuja produção mundial não chega a 20 kg por ano e que pode custar cerca de 10 vezes o seu peso em ouro. Depois do sterlet, o caviar cinzento-prateado do Acipenser huso, ou beluga, é o melhor de todos, com ovos que medem 3,5 mm de diâmetro. Medindo até nove metros e pesando pouco menos de 1,5 tonelada, uma fêmea de beluga é capaz de pôr sete milhões de ovos de uma só vez. Já as ovas de baixa qualidade, com invólucro pouco resistente, servem para a preparação de caviar compacto, o pajusnaya, muito popular na Rússia e no Irã.
   Tanto a vodca quanto o caviar têm a sua própria e intrincada mitologia. Costuma-se dizer, por exemplo, que a vodca é uma bebida inventada em laboratório; o que é uma meia-verdade. A vodca sempre foi a bebida nacional da Rússia, mesmo antes de 1731, ano em que o jovem Michail Vassilievich Lomonossov apresentou a sua tese de doutorado: Das Agradáveis Combinações do Álcool e da Água, onde estabelecia as proporções ideais para a mistura das duas substâncias. Por outro lado, uma verdade incontestável é a que o doutorando Lomonossov — que na época tinha apenas 20 anos — passava os dias cercado de garrafas de vodca e estudava até cair.
   Diz a lenda que nas festas da Rússia czarista, era comum a presença de tonéis de vodca aquecida especialmente para os aristocratas tomarem banho. Depois das abluções, lavada e embriagada, a nobreza russa rolava pela neve.
   O caviar, é claro, também foi convidado de honra das orgias do czarismo. Diz-se que todo o sterlet encontrado no Cáspio era embrulhado em pele de zibelina e levado às pressas ao palácio imperial de São Petersburgo. Certamente, chegava no exato momento em que os nobres se banhavam em tonéis de vodca aquecida ou rolavam na neve. É bem possível que usassem o caviar como xampu.
   A Rússia e a Polônia reivindicam para si não apenas a invenção da agüinha como também a fama de produzir a melhor vodca do mundo. O mesmo acontece, no caso do caviar, entre o Irã e a Rússia. O fato é que tanto a vodca polonesa quanto o caviar iraniano são excelentes. O que não impede que a Rússia continue fazendo a melhor vodca e o melhor caviar do mundo.
   Finalmente, a par de todas estas informações e implicações, o aspirante a gourmet poderá então alcançar o seu grande momento, celebrando o ritual da iniciação. É uma cerimônia simples, mas de uma simplicidade quase tão complexa quanto a da vodca, que começa na escolha dos produtos e termina no deleite total.
   A melhor vodca russa é a Moskovskaya. Em seguida, vem a Stolichnaya, Russkaya, Kubaskay, Pertsovka, Zubrovka. Segundo a opinião unânime de russos e poloneses, a vodca deve ser tomada muito gelada, pura, de um gole só e em copos pequenos. Qualquer mistura corromperá irrevogavelmente o grande charme da bebida, que é justamente o sabor tátil, de algo que não tem sabor, mas que é quente (ao mesmo tempo em que é gelado) e sensivelmente puro.
   O melhor caviar, o caviar de primeira, é aquele que se come na região onde é preparado. Para resolver esta questão, basta tomar um Ilyushin para Moscou e daí um trem para a pródiga região do Cáspio. Ou, então, se converter muçulmano xiita e viver no Irã. Com um pouco de sorte é possível conseguir ser recrutado para uma base do exército iraniano às margens do Cáspio e aí...
   Mas também é possível encontrar um caviar razoável nas grandes casas importadoras. Neste caso, o que se deve ter em mente é que o bom caviar — não importa a cor — tem de ser granuloso e íntegro, com as ovas não amassadas e sem minar aquela agüinha escura, indício claro de ovas rompidas. Segundo o costume, o caviar deve ser servido em recipiente cercado de gelo e comido com torradas de pão neutro, sem sal.
   Agora, ajuste a iluminação da sala, coloque para tocar o seu CD favorito, aquele com uma música suave e envolvente, capaz de provocar grandes vôos de imaginação, e encha o cálice com a vodca oleosa que você acabou de tirar do freezer e cuja garrafa deverá estar recoberta por um sólido bloco de gelo, garantindo a constante hibernação do espírito. Tome conforme o costume cossaco, de uma só vez, inclinando a cabeça para trás. Em seguida, pegue a sua torrada, besunte-a de caviar e dê uma mordida. Repita a operação o quanto puder, até sentir uma vaga sensação de imortalidade invadindo a alma, ao mesmo tempo em que a música vai se transformando em um murmúrio longínquo, um respirar pausado e profundo, assim como o eco da Criação. Viva este momento de grandeza e desfrute, finalmente, da plácida solidão dos deuses.
   Ah, ia me esquecendo: cuidado ao aterrissar.

2 comentários:

Senhor Prendado disse...

Alexandre,
Belo blog esse seu.Textos saborosos.
Bom ano novo para nós, que só fizemos por merecer.
Boa sorte com o blog!
Abs
JB (Senhor Prendado)

Alexandre Raposo disse...

Grato pelos augúrios. Que 2011 seja o melhor ano de nossas vidas!

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