quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A arca


O texto a seguir é um capítulo que acabou removido da versão final de meu romance Memórias de um diabo de garrafa por questões de ritmo de narrativa. É, entretanto, uma historinha muito bem apanhada, repleta de capa, espada e galanteria, dando conta da rocambolesca juventude do personagem Nuno da Silva, motivo pelo qual a incluo como pertence dessa nossa Feijoada Completa.

ERA UMA VEZ UM JOVEM IDIOTA chamado Fernão Perez, cuja missão no mundo era demonstrar da maneira mais convincente possível, o motivo pelo qual o inferno está cheio de gente bem intencionada.
   Nasceu numa choupana à margem do Rio d’Ouro, no vilarejo de Gaia, defronte do Porto, embora tenha passado a maior parte da vida em outras tórridas latitudes. O menino começou a viajar tão cedo, que a lembrança mais remota que tinha da infância não vinha de sua Gaia natal e sim de uma pescaria com crianças pataxós de sua idade, à beira de um riacho em Caravelas, no litoral sul da Bahia.
   Fernão sempre viveu entre gente marítima. O pai fora um daqueles heróis lusitanos que ajudou a consolidar as províncias nas Índias. Nunca chegou a conhecer o filho e morreu de terçã, nas Molucas, em 1529. O tio que o adotou era um piloto formado em Sagres, homem instruído que, durante as muitas viagens que fizeram juntos, iniciou-o nas letras e incutiu-lhe noções de latim, grego e navegação pelas estrelas. Também quase o convenceu a freqüentar a academia.
   Mas Fernão Perez era um gajo que enjoava em terra firme. Sua vocação era o mar, a rotina dos galeões de cruzeiro, o não estar em parte alguma, o eterno descompromisso com a vida. “Quem desembarca vira paisagem,” pensava. “Mas a paisagem é efêmera. Muda a cada dia. Passa. O segredo da eterna juventude é estar sempre em movimento.”
   De navio em navio, de porto em porto, Fernão Perez viveu dos oito aos vinte e três anos de idade. Nesse período, jamais fez questão de saber o itinerário ou a nacionalidade do barco em que se engajava. Desde que fosse um bom barco e não se demorasse demais nas escalas, lá estava ele, pronto a assumir o leme. Como piloto, o rapaz conduziu navios através do Atlântico, levando-os ao Caribe, ao Brasil, à Nova Espanha, à costa da África, e às Índias Orientais. Fernão conhecia o Atlântico como poucos, e seus serviços eram disputadíssimos entre os grandes mercadores ibéricos.   Em fevereiro de 1557, Fernão Perez foi contratado para substituir o piloto de um cargueiro, com a missão de transportar a mudança e a família de um fidalgo espanhol até Porto Belo, no Panamá. Ele jamais havia trabalhado para a companhia que o contratara e não conhecia o capitão e nem a tripulação com quem faria a travessia. Não era como gostava de navegar mas, como já estava sentindo os terríveis efeitos de uma prolongada permanência em terra firme, acabou aceitando a oferta.
   A viagem transcorreu sem incidentes até a ilha de La Hispanola, atual República Dominicana, onde fizeram a aguada. Dali em diante, porém, Fernão passou a estranhar as ordens que recebia. Em vez de seguir diretamente até Porto Belo, inexplicavelmente o capitão decidiu-se por uma rota mais longa, ziguezagueando através do Mar do Caribe.
   Fernão não tardou a alertar a tripulação do perigo que corriam. Já àquela época o Caribe estava infestado de piratas. E qual não foi a sua surpresa ao ouvir o capitão dizer, malicioso, que não era de todo mal topar com alguns piratas de vez em quando.
   Então era isso! Como podia ter sido tão tolo!
  Naquele mesmo dia, Fernão desceu ao porão apenas para constatar algo que já tinha por certo. A bagagem dos passageiros, sua mobília, pertences pessoais, jóias, obras de arte, enfim, toda a parafernália que acompanha uma família aristocrática numa mudança transoceânica, havia ficado alhures, em terra. As caixas embarcadas não continham mais que pedras ordinárias, do tipo das que se usava como lastro de navio.
   Não restava a menor dúvida: aquele capitão desejava ser atacado por piratas, a quem se entregaria de bom grado e, depois, culparia pelo roubo da carga. Era um truque antigo, já incluído nos alfarrábios, quase tão velho quanto o conto do paco, embora muita gente ainda continuasse a cair nele.
   A busca por piratas foi infrutífera. O navio rondou os antros mais recônditos do Caribe sem avistar vela de nave estrangeira. E isso era tudo o que Fernão mais temia. Ele sabia que, nesse caso, o capitão acabaria tendo que provocar o naufrágio do navio. Essa era a praxe, o único modo de apagar as provas do crime.
    Até então, Fernão fingira-se de tolo e fizera o jogo da tripulação, obedecendo passivamente às ordens que recebia. Mas ele simplesmente não se via no papel de responsável por um naufrágio. Não passava por sua cabeça a idéia de pôr em risco a vida de tanta gente.
   No mesmo dia em que os passageiros fizeram o seu primeiro protesto formal pela demora da travessia, apresentando argumentos os mais plausíveis expostos pelo tio-avô do contratante – que participara da Conquista do México com Cortés e, portanto, sabia exatamente onde estava –, o capitão reuniu-se com os oficiais de bordo e, depois, mandou chamar Fernão, a quem ordenou que seguisse uma rota que inevitavelmente os levaria de encontro a recifes no Golfo dos Mosquitos.
   Fernão fez-se de desentendido e explicou ao capitão que aquela rota era perigosa por tais e tais motivos. Já houvera navegado por ali e... Mas o capitão desdenhou de sua experiência e insistiu que a rota era segura. Novamente, Fernão Perez apontou para os recifes na carta náutica.
   – No entanto, essa é rota a seguir – disse o capitão.
   O piloto voltou a se negar e, por isso, foi destituído do cargo e aprisionado por insubordinação em uma despensa vazia na coberta do navio. Soubessem os tripulantes que ele estava a par do que tramavam, certamente o teriam atirado aos tubarões. Mais uma vez, o seu arraigado descompromisso com a vida lhe salvava a pele.
   Fernão decidiu não ficar para testemunhar o naufrágio. Alguns dias depois, tão logo ouviu o distante rumor das ondas arrebentando contra o litoral, ele simplesmente esgueirou-se pela escotilha da despensa onde estava aprisionado e atirou-se ao mar. Nadou lentamente durante mais de seis horas e conseguiu chegar à praia antes que surgissem as primeiras estrelas.

Fernão Perez alcançou Porto Belo quarenta e sete dias depois, faminto, sedento e estropiado como um penitente de Compostela. Ainda assim, e antes mesmo de buscar auxílio médico, estava decidido a chegar à milícia local e denunciar os criminosos. E teria feito exatamente isso não encontrasse logo à sua chegada, bem no meio da praça do mercado, um patíbulo recém-posto, no qual ainda estavam expostas as cabeças de gente que, para a sua surpresa, reconheceu como membros da tripulação do navio do qual desertara.
   De alguma forma, o roubo da carga fora descoberto na Espanha, e a notícia já chegara ao Novo Mundo. Quase todos os criminosos haviam sido capturados e os que escaparam estavam sendo caçados pelas autoridades espanholas. Seu nome, bem como o de outros três tripulantes do mesmo navio, constava de uma lista de perigosos assassinos, já que todos os passageiros haviam sucumbido ao naufrágio. De uma hora para outra, Fernão Perez deixava de ser um piloto renomado para se tornar um fugitivo da justiça espanhola.
   Ó raios!...
   Fernão Perez deixou Porto Belo naquele mesmo dia. Embora sem saber exatamente para onde ir, sabia que não podia permanecer na cidade. Não lhe restava escolha senão embrenhar-se terra adentro, atravessar o istmo, encontrar algum pequeno porto na costa do Pacífico – nunca o movimentado Porto do Panamá, onde certamente seria preso – e embarcar em um galeão para o Peru; ou para ainda mais longe. O Atlântico, único caminho de volta à terrinha, lhe estaria vedado durante alguns anos.
   Em sua perambulação em busca de um porto seguro, Fernão Perez serviu como carpinteiro em diversos povoados, oferecendo trabalho em troca de roupas e comida. Apresentava-se com diferentes nomes, e com diferentes histórias de vida, e tinha um espanhol tão escorreito que passava perfeitamente por um fidalguete de Castela.
   Em princípios de 1557, após incontáveis aventuras pelos mares e sertões da Nova Espanha, Fernão Perez, então sob o nome de Henrique Gomes, chegou ao pequeno porto de Sonsonate, na atual República de El Salvador. Pretendia ficar poucos dias, apenas o suficiente para conseguir se engajar em um navio. E teria de fato partido na semana seguinte, num galeão que rumava para Acapulco, não surgisse em seu caminho uma jovem de olhos verde-esmeralda, morena de cobre polido, basta cabeleira de ébano, a bela mestiça Maria Isabel de Pocomán.

Não me deterei na descrição pormenorizada deste singelo caso de amor. É uma história apaixonante, repleta de firulas, arroubos e arrulhos mas que não vem ao caso no momento. Digamos apenas que Fernão Perez, ou Henrique Gomes, ou quem quer que queiram – que, a esta época, nem mesmo ele sabia quem era – digamos que Da Silva e Maria se casaram numa terça-feira chuvosa, em julho daquele mesmo ano, e que a roda da carroça nupcial estoporou-se em um buraco do caminho, e que os noivos chegaram a casa a pé, encharcados, cobertos de lama, porém felizes como poucos casais foram tão felizes neste mundo.
   Habitavam uma granja modesta, no meio de uma aldeia miserável, mas viviam com dignidade. Da Silva continuava a fazer pequenos trabalhos de carpintaria, cuidando da restauração dos navios que chegavam, enquanto Maria criava galinhas, hortaliças... e filhos. Um por ano, e na seguinte ordem: Manuel, Vicente, João e Maria.
   Sonsonate era uma pequena povoação perdida no litoral da atual República de El Salvador, posto de abastecimento de galeões da rota Panamá-Acapulco. Era uma enseada segura, ponto ideal para a aguada, limpeza e manutenção de navios. Havia na aldeia um pequeno forte, em realidade um depósito da marinha espanhola, uma igreja sem vigário e doze casas de adobe. A maioria dos habitantes era de indígenas, mestiços, castiços, chamisos, cambujos, e aí-te-estás, com uma minoria de espanhóis degredados de segunda geração, gente que falava melhor o dialeto da terra que o idioma de seus antepassados.
   Era uma vida tranqüila, raramente perturbada pela chegada de uma tripulação mais desordeira. De modo geral, os navios eram bem-vindos, já que eram o seu único contato com o resto do mundo. Mas as coisas não continuariam assim durante muito tempo.
   Em 1562, alguns meses depois do nascimento da pequena Maria, num dia em que os homens da aldeia estavam fora, caçando maracajás, chegou a Sonsonate um pequeno cargueiro peruano. Transportava mercadorias variadas, encomendas da terrinha e a mala postal para Acapulco.
Ninguém sabia dizer ao certo como começou o conflito, embora a versão mais corrente fosse a de que um dos marinheiros tentara seduzir uma jovem mestiça e que o irmão desta, um rapazola de seus catorze anos, saíra em sua defesa. Outros afirmaram que o rapaz tentara surrupiar o bornal de um marinheiro e fora pego em flagrante. O fato é que o moço foi espancado até a morte, crueldade que provocou a indignação das mulheres, que atacaram os espanhóis com facas, cutelos, ancinhos e outros apetrechos de cozinha e jardinagem.
   Por mais bravas que fossem, porém, as mulheres não tinham como resistir aos marinheiros e a contenda acabou redundando em estupro coletivo, com algumas mortes. Por sorte, a casa de Maria fora invadida pelo proprietário do cargueiro, certo Custódio Rodrigues que, como sabemos, não era um sujeito dos mais fortes e já naquela época era incapaz de dominar uma mestiça saudável como ela. Daí que, no calor da luta, o português entreguista acabou perdendo um pedaço do nariz – o golpe visava um dos olhos mas Custódio esquivou-se na última hora – e, enquanto ele tentava estancar o sangue, a mulher e as crianças fugiam pelos fundos da casa.
Alertados por um mensageiro, os homens chegaram à aldeia três dias depois, após uma marcha em passo acelerado através da selva. Mas foi um esforço inútil. Àquela altura, o cargueiro já havia partido deixando atrás de si um rastro macabro: cinco mortos, três crianças seqüestradas, duas casas incendiadas e nenhuma provisão no estoque. Também sacrificaram todo animal de criação que não puderam levar para bordo.
   Da Silva interrogou cada sobrevivente. Assim, ficou sabendo que os atacantes somavam não mais que onze marinheiros e dois grumetes, que o casco do cargueiro estava muito sujo, encoberto de cracas e que, por isso, os espanhóis pretendiam fundear em uma pequena enseada não muito longe de Sonsonate, para a limpeza.
   O grupo de vinte guerreiros transpôs facilmente a serra que os separava do lugar onde estava acampado o inimigo. Se esperassem pela preamar, quando o cargueiro já estivesse a seco, também não teriam dificuldade para, em uma única investida, exterminar todos os patifes. Mas os homens de Sonsonate estavam sedentos de vingança e, não obstante as recomendações de Da Silva, atacaram os espanhóis antecipadamente, ainda à primeira hora do dia. Resgataram as crianças e mataram sete marinheiros. Outros seis, porém, conseguiram embarcar em um esquife, voltar ao cargueiro e fugir dali a todo pano.
   Fora uma vitória esmagadora, mas Da Silva estava quase certo de que sofreriam retaliações. Ele sabia que, pelas leis da Nova Espanha, um indígena ou mestiço que ferisse um espanhol pagaria o crime com a própria vida. Sabia também que, caso a agressão fosse perpetrado por mais de um indígena, toda a coletividade seria responsabilizada. Neste caso, os homens seriam queimados vivos e as mulheres e crianças enviadas para trabalhos forçados em minas no Peru, na Bolívia e no Chile. Assim funcionava o negócio nos tempos da colônia.

De fato, algumas semanas depois do incidente na Baía Redonda, chegou a Sonsonate um mensageiro. O cavalo que montava vinha exaurido, espumando, arquejante, forcejando o galope vesgo das bestas estropiada, e tombou morto antes de alcançar as primeiras casas do arruado. O ginete, porém, não se importou com a sorte do cavalo e, tão logo lhe faltou a montaria, caiu sobre os próprios pés e correu até o centro da aldeia.
   O recém-chegado era um filho da terra, moço que partira havia alguns anos e vivia alhures, com a família da esposa. Cavalgava ininterruptamente já havia mais de dois dias e aquela era a terceira besta que sacrificava, apenas para poder chegar a tempo de avisar os parentes do perigo que corriam. Segundo ele, o cargueiro estava novamente a caminho de Sonsonate, desta vez reforçado por um pequeno exército de mercenários, especialmente contratados para castigar os rebeldes.
   Aparentemente, a chacina era inevitável. Mas nem sempre prevalece a lógica em uma batalha. Da Silva nunca fora um homem de pegar em armas. Mas conhecia umas tantas estratégias e sabia que, naquele caso, a iniciativa do ataque seria a única defesa que lhes restava.

O cargueiro surgiu no horizonte no fim de uma tarde abafadiça de domingo e, tão logo caiu a noite, três pequenas baleeiras deixaram o cais de Sonsonate. Carregavam em seu bojo a nata dos guerreiros da aldeia, mais um irredutível grupo de velhos e jovens pré-adolescentes que se agarraram à borda dos barcos e que teriam preferido ter as mãos amputadas caso não os deixassem participar da desforra.
  Os rebeldes aproximaram-se silenciosamente, remos fendendo a água em perfeito ângulo reto, guerreiros com o corpo recoberto de fuligem, baleeiras pintadas de betume para melhor se confundirem com a escuridão.
   Tudo aconteceu muito rapidamente. Os nativos galgaram o casco e ocuparam o tombadilho. Os sonolentos vigias não tiveram tempo de esboçar reação. O mesmo ocorreu com os mercenários adormecidos na coberta. Se houve luta, foi breve, inglória. Em quinze minutos, talvez menos, os rebeldes mataram – covardemente, é justo dizer – vinte e três espanhóis. Também fizeram seis prisioneiros. Ao mesmo tempo, apossaram-se de muita pólvora, arcabuzes, falconetes, espadas, lanças, balestras e balas de chumbo.
   Àquela altura, a ferida no nariz de Custódio Rodrigues estava bem infeccionada e Da Silva não teve dificuldade para identificá-lo como o homem que invadira a sua casa, semanas antes. Mas o que mais o indignou foi descobrir que aquele mesmo sujeito que tentara estuprar-lhe a mulher era também um velho conhecido, ninguém menos que o capitão do navio naufragado, principal responsável pelo exílio de Da Silva em Nova Espanha.
   – Francisco! Francisco Teixeira! Ora veja só como nos encontramos!...
    Custódio estava atônito. Mas, num primeiro momento, não teve ânimo de negar a identidade que o outro lhe atribuía.
   – Este mundo é mesmo pequeno! – prosseguiu Da Silva, irônico. – Então, como escapaste da forca em Porto Belo?
Custódio sorriu, embaraçado.
   – Ora, Francisco!... Chinquilho! – prosseguiu Da Silva. – Passei os anos mais miseráveis de minha vida por tua causa e vens agora fazer-se de “que sei eu, mãe, de minha touca?” É ter muita lata!
   – Se tiveste os anos mais miseráveis de tua vida, deves ter feito por merecer – respondeu Custódio com arrogância. – Mas não sou quem tu pensas que eu seja. Meu nome é Custódio Rodrigues. Sou um comerciante lusitano, estabelecido no Peru.
   – Pau que nasce torto morre torto, ó Francisco! – respondeu Da Silva, cuspindo de lado. – A última vez em que te vi estavas a tramar o assassinato de uma nobre família castelhana! Agora, te pego novamente a praticar covardias contra gente indefesa! Pirata! Miserável! Traidor!
   Custódio fez menção de golpear Da Silva, mas foi rapidamente dominado. Poucos segundos depois, era atirado ao porão como um fardo de roupas sujas.
   – Velhos amigos se encontram afinal, não estou certo?... – disse um indígena que assistia à cena, não por acaso um dos vinte e três primos-irmãos-postiços de Da Silva.
   Foi secundado por uma estrondosa gargalhada do resto do bando, que havia parado toda atividade para assistir ao violento bate-boca entre os dois portugueses.
 
Dos cinco prisioneiros, dois eram grumetes com os seus catorze anos de idade, que Da Silva libertou, apesar dos protestos dos guerreiros. Outro era um negro escravo que de bom grado abraçou a causa rebelde. O quinto espanhol acabou identificado como o assassino de uma das mulheres e foi trucidado pela população nem bem colocou os pés em terra. Restava apenas Custódio Rodrigues, que Da Silva pretendia manter vivo até pensar em algo realmente cruel para fazer com ele.
   Na manhã seguinte ao ataque, Da Silva convocou os guerreiros à praça central da aldeia. Estavam todos muito confiantes e barulhentos, alguns portando as armas do vencidos, muitos embriagados com o vinho encontrado no cargueiro. Apenas Da Silva não compartilhava da mesma alegria.
   – Vocês lutaram bem e merecem os despojos do inimigo – disse ele, em perfeito idioma local. – Mas os espanhóis voltarão, desta vez em maior número, e ainda melhor armados.
   Ouviu-se um brado entre os guerreiros:
   – Que venham! Estaremos preparados!
   – Não! – gritou Da Silva, tentando se fazer ouvir em meio a tumulto. – Não estaremos preparados! Há no mundo mais espanhóis, mais cavalos, mais espadas e mais armas de fogo do que vocês são capazes de imaginar. E nossos inimigos não descansarão até que estejamos todos mortos.
   Novamente a multidão desdenhou do adversário e novamente Da Silva teve que gritar para ser ouvido:
   – Sugiro que abandonemos a aldeia. Temos o cargueiro, as baleeiras, e certamente encontraremos uma enseada tão boa ou melhor do que esta, costa acima. Se ficarmos aqui seremos chacinados.
   Desta vez, a multidão manifestou-se com alguma hostilidade. Quem era esse sujeito para dizer o que deveriam ou não fazer das suas vidas? Como ousava sugerir que abandonassem a sua terra? E a coisa já descambava para o insulto quando o mais velho de todos, um tio-avô de Maria que diziam ter mais de cem anos, adiantou-se e disse, autoritário:
    – Vocês, jovens, me envergonham diante dos deuses! Como se atrevem a atacar um irmão com palavras tão rudes? Vocês emporcalham a honra ao se virarem contra alguém que combateu ao seu lado, e com tanto valor!
   A multidão calou-se, constrita. O velho voltou-se para Da Silva e disse, humildemente:
   – Perdoe os nossos jovens. Eles não sabem o que falam.
Da Silva riu-se com seus botões da involuntária paráfrase bíblica.
   – Contudo, não creio que abandonar a aldeia seja o certo – prosseguiu o velho. – Vocês homens brancos, não têm apego à terra onde nasceram. De outra forma não andariam tão longe de casa, apoquentado a vida de gente que nem conhecem. Nós, indígenas, ao contrário, dedicamos ao nosso torrão natal uma adoração tão intensa, que preferimos morrer a abandoná-lo. Fora dela, seremos sempre párias, sempre vagabundos. Somente aqui existimos como seres-humanos.
   Da Silva baixou a cabeça, desconcertado. No fundo, ele bem sabia que o velho dizia a verdade.
   – Compreendo a sua preocupação com o nosso destino. Mas não se sinta culpado por nada. E esteja certo de que não o censuraremos caso decida partir com a sua família. Já basta o tanto que nos ajudou até agora. Nossa rusga com os espanhóis é antiga, muito anterior à sua chegada a esta aldeia. Lembraremos para sempre dos bons momentos que passamos juntos. Do fundo de nossos corações, desejamos que sejam muito felizes.
   Da Silva ergueu o rosto como se pretendesse dizer algo mas mudou de idéia em meio ao gesto.
   – Da mesma forma, não censuraremos a quem decidir acompanhá-lo – concluiu o velho, encarando a todos com olhos autoritários. – todo homem é dono do próprio  nariz. Quando esquecermos desse preceito, a vida não valerá mais a pena.
   Dito isso, apoiou-se no ombro do menino que o acompanhava e afastou-se tropegamente da multidão, subitamente silenciosa.

Animados pela vitória e pelas armas que apreenderam do inimigo, os nativos estavam excessivamente confiante, certos de que seriam capazes de resistir indefinidamente às milícias espanholas. Depois de duas semanas tentando convencer os rebeldes a segui-lo, cansado de esborrachar o nariz na porta de gente que não lhe dava ouvidos, Da Silva decidiu que era hora de preparar o cargueiro para a viagem.
   Certa tarde após a sesta, impressionado com um pesadelo, o piloto remou até o navio, trazendo consigo o filho mais velho, Manuel, então um menino com os seus cinco anos de idade.
Tão logo subiu ao convés, Da Silva entregou-se a uma minuciosa inspeção do massame, dos mastros e das velas, e, em seguida, dirigiu-se ao porão para verificar a correta distribuição do lastro e localizar qualquer provável infiltração no casco interno. Como encontrou tudo em ordem, dedicou sua atenção à despensa que, para a sua desilusão, encontrou praticamente vazia. “Os desgraçados pretendiam se fartar às nossas custas!...” disse ele com um sorriso velhaco.
   Da Silva estava ocupado calculando provisões para dois adultos e quatro crianças durante um mínimo de três semanas de navegação, quando ouviu o filho perguntar se podia ficar com algumas daquelas medalhas. Impaciente, Da Silva respondeu que sim, que o garoto podia ficar com tudo quanto pudessem carregar desde que não o importunasse naquele momento. O garoto insistiu, dizendo que eram medalhas muito bonitas e que “talvez papá quisesse ficar com elas.” E qual não foi a sua surpresa ao voltar-se e descobrir que o menino não portava medalhas e sim um punhado de reluzentes cruzados de ouro.
   A expressão de surpresa de Da Silva foi mal entendida por Manuel, que se pôs a chorar, certo de que seria castigado. O português compadeceu-se do filho, abraçou-o, beijou-lhe ambas as faces e explicou que papá não estava aborrecido e sim curioso em saber onde ele havia encontrado as medalhas.
   – Embaixo do chão – respondeu Manuel, golpeando o solo com o calcanhar. – Uma arca cheia delas.
   Da Silva olhou em volta mas não encontrou alçapão que levasse a um possível fundo falso. E já estava prestes a perguntar onde diabos o menino havia achado tanto dinheiro quando deu apenas com os pezinhos do filho sumindo por uma estreita passagem entre o casco e o piso do porão. Logo o português ouviu o ruído de um corpo miúdo arrastando-se por entre as entranhas do navio e, pouco depois, viu o garoto surgir novamente pela abertura, mãos repletas de moedas de ouro.
   Ao fim do dia, o pequeno Manuel já havia resgatado todo o tesouro secreto de Custódio Rodrigues, que totalizava uma pequena fortuna que Da Silva avaliou em cento e vinte mil pesos – o que, naquela época, era dinheiro para duas existências abastadas.

Da Silva, a mulher, os filhos – mais as famílias de dois irmãos de Maria que decidiram acompanhá-los na última hora – deixaram Sonsonate na antevéspera da chegada das milícias espanholas. Antes de partir, Da Silva reuniu-se com os melhores guerreiros da aldeia e ajudou-os a traçar a impossível estratégia de defesa, oportunidade em que recomendou que mulheres e crianças fossem retiradas para um abrigo na floresta e que os rebeldes cortassem pontes e armassem armadilhas nos caminhos que levavam à aldeia.
   É de se considerar que os sitiantes tiveram muito trabalho para dominar Sonsonate. Mas, como previra Da Silva, o combate acabou terminando em chacina. Os poucos guerreiros sobreviventes foram queimados vivos e as mulheres e crianças morreram de fome em seu remoto esconderijo na selva.
   Anos depois, quando soube do que ocorreu em Sonsonate, Da Silva foi tomado por um profundo sentimento de culpa, arrependido por ter incitado os amigos indígenas a atacarem os espanhóis na Baía Redonda, e por ter comandando a bem sucedida abordagem ao cargueiro. Da mesma forma, jamais se perdoou pela idéia do abrigo na selva. Caso mulheres e crianças tivessem ficado na aldeia, talvez ainda lhes restasse alguma possibilidade de sobrevivência, miserável que fosse. No afã de preservar a vida daquela gente, Da Silva havia condenados todos à morte.

Ninguém em Sonsonate compreendeu porque Da Silva decidira poupar a vida de Custódio Rodrigues. Ainda assim, seguindo as instruções deixadas pelo amigo, os nativos soltaram o prisioneiro tão logo ouviram as primeiras descargas da artilharia inimiga. E isso foi a pior que coisa quer poderiam ter feito com ele naquele momento.
    Os espanhóis sabiam que o líder da rebelião em Sonsonate era um português. Daí que, ao encontrarem Rodrigues vagando pela selva, e não obstante o que este alegasse, caíram sobre ele como teriam caído sobre Da Silva; ou sobre qualquer outro português que estivesse em seu lugar.
   Custódio sofreu o diabo nas mãos dos espanhóis que o capturaram e só não foi justiçado ali mesmo porque insistia com tal veemência em sua inocência, prometendo tantas propinas aos milicianos, que estes acabaram concedendo-lhe o benefício da dúvida, levando-o consigo, sob o suplício do látego, tão logo ardeu em chamas a última casa do povoado.

Pilotado por Da Silva, o cargueiro navegou rumo ao norte e chegou em segurança às proximidades da gloriosa cidade de Acapulco de Juaréz no mesmo dia em que Custódio Rodrigues chegava ao porto do Panamá para ser julgado por crimes contra a coroa.
   Numa enseada deserta, ao abrigo de escarpadas falésias, Da Silva desembarcou os parentes, o ouro, e incendiou o cargueiro, apagando todos os vestígios de sua chegada àquela parte do continente. Que fique registrado, a pedido do próprio protagonista, que foi a única vez em toda a vida em que ele deixou ir ao fundo um navio; e que se sentiu muito mal ao fazê-lo.
   Enquanto Custódio mofava na cadeia, Da Silva vivia como um nababo em Nova Espanha. Por essa época, a rota Acapulco-Manila acabava de ser inaugurada e a cidade experimentava um crescimento vertiginoso. Da Silva estabeleceu-se como intermediário, exportando ouro e prata para as Filipinas em troca de seda e porcelana chinesas que distribuía para as colônias.
   Os negócios iam bem, os filhos crescidos, a mulher novamente grávida, Da Silva com planos de erguer uma quinta num dos bairros mais nobres da cidade, os cunhados bem estabelecidos em outros pequenos comércios, quando o destino voltou a fazer das suas.
   Três anos haviam se passado e, àquela altura, sabe-se lá por que tortuosos e torturados meios, Custódio finalmente conseguiu provar que não era o português rebelde e sim o português dono do cargueiro que fora assaltado pelo português rebelde. Não tivesse um passado tão sujo, teria se safado mais rápido. Mas Custódio Rodrigues também era Francisco Teixeira, homem procurado por múltiplo homicídio, e teve que fazer uma volta mais longa para chegar aonde queria. O fato, porém, é que acabou conseguindo justificar a sua história, e logo Da Silva estava sendo novamente procurado pelos castelhanos.
   Ó raios!...
   Fosse um pobre miserável, teria sido preso. Mas, como dizia Francis Drake, “money talks louder”. Da Silva era um homem rico, bem estabelecido, assíduo colaborador da caixinha do município, e acabou sabendo da ordem de captura através de um sócio espanhol que tinha contatos nas milícias. Em “agradecimento”, Da Silva deixou ao “amigo” nada menos que toda a sua parte nos negócios, o que montava a mais de setenta por cento da fortuna que roubara de Custódio Rodrigues. É claro que Da Silva foi vítima de chantagem mas, considerando-se o que estava em jogo, é de se concluir que fez um ótimo acordo.
   Dias depois, Da Silva dividiu uma boa soma em dinheiro entre a mulher e os cunhados, abençoou os filhos e partiu num navio para Manila, com a promessa de que voltaria para buscá-los na primeira oportunidade. Foi uma decisão difícil, mas não lhe restava outra escolha. Se ficasse, certamente seria preso e condenado, com nefastas conseqüências para o resto da família. Por outro lado, uma viagem Acapulco-Manila-Timor-Lisboa é exaustiva, mesmo nos melhores jatos da atualidade. Imagine-se a mesma viagem em meados do século XVI, a bordo de um galeão a vela. A média de tripulantes que sucumbia à travessia era de cinqüenta por cento. Não havia uma estimativa para passageiros, mas era pouco provável que Maria e as crianças chegassem com vida à terrinha.
   Por sorte, Da Silva incluiu-se entre a metade sobrevivente do navio no qual embarcou. A caminho de casa, visitou a tumba do pai, nas Molucas, conheceu um meio-irmão, em Tidore, e passou um tremendo aperto entre os nativos de Balam-Bangan, em Java. Mais tarde, adquiriu uma caravela de segunda-mão em Timor Leste, a fiel e saudosa Santa Maria, com a qual dobrou o Cabo da Boa Esperança, voltou ao Porto, e com a qual pretendia resgatar a mulher e os filhos na primeira oportunidade.
   Em realidade, ele estava prestes a fazer exatamente isso quando, para a sua desilusão, foi seqüestrado por Francis Drake.

3 comentários:

Juliana R disse...

muito bom!

Alexandre Raposo disse...

Bom que gostou, Ju! Cortei essa parte com muita pena, mas ciente de que não tinha escolha. O resto da narrativa ficaria prejudicada com uma parábola tão comprida...

Unknown disse...

Oi, primo, gostei muito de saber mais sobre Nuno da Silva. Giacomo está com ele agora e foi ótimo ler a respeito do português. Beti van Wien Abril 26, 2012

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